Sul 21 | TRF adia decisão sobre terras da comunidade quilombola de Paiol de Telha


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Além de parte da comunidade de Paiol da Telha, quilombolas e apoiadores do Rio Grande do Sul também assistiram ao julgamento | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

 

Por: Blog Sul 21, por Débora Fogliatto
Fotos: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

 

 

Após aguardar as mais de três horas de julgamento, os quilombolas da comunidade Paiol de Telha, no Paraná, não obtiveram uma resposta final a respeito de seus territórios. Nesta quinta-feira (28), o Tribunal Regional Federal (TRF) da quarta região, em Porto Alegre, julgou a ação em que a Cooperativa Agrária Agroindustrial Entre Rios questiona o processo administrativo do Instituto de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) para a titulação da terra quilombola. A decisão consolidará uma posição sobre todos os territórios quilombolas da região sul, influenciando também outros processos.


A Cooperativa pediu pela inconstitucionalidade do decreto 4487 de 2003, referente ao artigo 68 da Constituição Federal, que regulamenta o direito às terras dos povos dos quilombos, mas a decisão do TRF não foi tomada, após o desembargador Carlos Eduardo Thompson Flores pedir vista para votar na próxima sessão. A relatora, Marga Barth Tessler, considerou que o decreto é inconstitucional, lembrando que, em janeiro deste ano, o Tribunal já havia votado pela inconstitucionalidade. Na sessão, advogados de ambas as partes, assim como um representante do Ministério Público Federal, argumentaram sobre o caso.

A comunidade Paiol de Telha

julgamento Paiol de Telha - Ana MariaEm 1860, onze escravos libertos herdaram a terra de Paiol de Telha da fazendeira que era proprietária. A comunidade cresceu e chegou a abrigar 700 famílias, que atualmente se encontram separadas. A maior parte, 300 famílias, vive na periferia do município de Guarapuava, em situação de miséria. Vinte e seis famílias conseguiram continuar no território, que atualmente está sob posse da Cooperativa Entre Rios.

Em 2005, a comunidade foi uma das primeiras a conseguir a titulação de terras pelo INCRA do Paraná, mas desde então a situação não mudou. Neste meio tempo, a Cooperativa entrou com o processo de inconstitucionalidade do decreto que garante direitos aos territórios quilombolas, afirmando que as terras foram vendidas a eles, que não teriam expulsado os moradores.

Nesta segunda-feira (25), mais de cem pessoas de Paiol de Telha vieram até Porto Alegre para acompanhar o julgamento, entre elas uma liderança da comunidade, Ana Maria Santos da Cruz. Ela explica que a terra é “muito boa”, e por isso a empresa teve interesse em utilizá-la. “A comunidade está se separando, pessoas foram expulsas de suas terras. Nós vivemos em situação de miséria, enquanto eles enriquecem lá”, lamenta. “Eles dizem que venderam, mas como íamos vender contra a nossa vontade?”, questiona Ana Maria.

O julgamento

As pessoas que vieram assistir ao julgamento fizeram música e reivindicaram seus direitos na frente do Tribunal enquanto a sessão não começava. Iniciado com uma hora de atraso, até o fim da tarde o julgamento não havia terminado. Além da relatora, sete desembargadores já votaram, sendo um pela inconstitucionalidade e seis pela constitucionalidade, enquanto seis optaram por aguardar pelo pedido de  vista de Carlos Eduardo Thompson Flores.

Primeiro a se manifestar, o advogado do Incra, Ricardo Dantas, destacou que o artigo 68 deve ser reconhecido, estabelecendo o Antes da sessão, membros da comunidade tocaram tambor na frente do Tribunal | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21direito das comunidades quilombolas a suas terras originárias. “Estamos tratando de um grupo, uma comunidade distinta, que vive em um local vulnerável, principalmente quando esse local virou interesse econômico”, defendeu ele, pedindo que o decreto 4487 seja mantido. O advogado também destacou que o decreto está em consonância com as leis internacionais referentes aos direitos pela “preservação de um grupo com características próprias”.

Na mesma linha, o coordenador da ONG Terra de Direitos e assessor jurídico popular do caso, Fernando Prioste, lembrou que o direito à terra está previsto na Constituição Federal. “Para nós, é a visão dos próprios negros oprimidos que deve decidir o que é um quilombo”, afirmou, diante dos 15 desembargadores de pele branca. “Não acredito que as pessoas precisem provar que têm direito à terra que já ocupavam há cem anos, quando a Constituição de 1988 foi promulgada”.

Ele também destacou que cerca de 20 famílias permanecem no território sem nenhum recurso. A miséria em que essas pessoas, que são netos, bisnetos e tataranetos dos escravos libertos, vivem atualmente, disse Prioste, é a prova de que não receberam nada por suas terras, e, portanto, não as venderam conforme a empresa havia argumentado. “Nós vamos julgar a inconstitucionalidade desse decreto. Mas hoje, passados 125 anos da abolição da escravatura, é a sociedade brasileira que irá nos julgar pela decisão tomada aqui”, concluiu.

O advogado Eduardo Bastos de Barros, que defendeu a inconstitucionalidade do decreto, afirmou que os imigrantes alemães, cujos descendentes são proprietários da Entre Rios, “passaram por tantas dificuldades quanto os descendentes de quilombolas”. “A história da Cooperativa também é de sofrimento”, garantiu. Ele ainda insistiu que a empresa comprou as terras dos filhos de ex-escravos, adquirindo direito à posse. De acordo com Barros, o  decreto é uma “ofensa gravíssima à Constituição” e a maioria das pessoas que atualmente vive nas terras “nunca ouviu falar de um quilombo”.

 

 

 

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Mesmo com o Tribunal lotado de pessoas aguardando, a decisão não foi tomada hoje | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

 


Desembargadores votam contra relatora

A relatora Marga Tessler, então, defendeu seu voto a favor da inconstitucionalidade do decreto, lembrando do voto do ministro relator Cesar Peluso, quando o caso foi julgado pelo Supremo Tribunal Federal, em 2012. Na ocasião, o julgamento foi adiado após o voto do relator. Ela argumentou que a Constituição só menciona povos tribais e indígenas no artigo 68 e que é “impossível” que se possa tratar o assunto como desapropriação. ”Firmo posição da inconstitucionalidade integral do decreto 4487, por desconhecer os direitos de terceiros”, concluiu, referindo-se aos proprietários atuais das terras. “Não é possível que se permaneça com esse dispositivo”.

Discordando da relatora, o desembargador Luiz Carlos Lugon lembrou que o direito às terras para as comunidades quilombolas é um direito fundamental, questionando a denominação “remanescentes de quilombos” até então empregada. “Os quilombolas têm direito à titulação de suas terras, e não está proibido usar desapropriação para fins sociais, como é, sim, o caso aqui”, afirmou. “Não vejo absolutamente nada de inconstitucional nesse decreto e não acredito que tenhamos motivos para vincular as palavras do ministro Cesar Peluso. Peço vênia para divergir da relatora”, concluiu.

Da mesma forma, Paulo Afonso Vaz, seguido por outros cinco desembargadores, também pediu vênia e discordou da relatora. “O direito à terra dos quilombolas também é um direito fundamental”, lembrou. Thompson Flores pediu vista para marcar sua posição na próxima sessão, e foi seguido por outros quatro desembargadores. Com isso, apesar do quadro ser favorável aos direitos dos povos quilombolas, as pessoas que vieram de Paiol de Telha até Porto Alegre retornam para casa sem saber se seu futuro será diferente.

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Ações: Quilombolas
Casos Emblemáticos: Comunidade quilombola Paiol de Telha
Eixos: Terra, território e justiça espacial