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Justificando | Qual o papel do sistema de justiça na garantia da democracia e dos direitos humanos?


“Passados 27 anos da Constituição de 1988, fundamentos essenciais da democracia brasileira são perigosamente ameaçados pela marcha golpista em curso. Não sabemos o que virá pela frente, os prognósticos não são favoráveis aos anseios democráticos, mas os movimentos sociais e a população brasileira saberão lutar e oferecer resistência. Como disse Gonçalves Dias, no célebre poema Canção do Tamoio, ‘a vida é luta renhida: viver é lutar’.”

A partir da análise do atual cenário político, as advogadas Giane Ambrósio Álvares e Luciana Pivato, ratificam a necessidade de discutir uma reforma e de democratização do sistema de justiça, já pautada pela Articulação Justiça e Direitos Humanos (JusDh) e pela Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político, no texto "Qual o papel do sistema de justiça na garantia da democracia e dos direitos humanos?", publicado na revista Justificando.

Segundo as autoras, o Poder Judiciário, quando não se presta a criminalizar a luta por direitos empreendida pelos movimentos sociais e para solucionar os conflitos de interesse do empresariado, tem apenas silenciado ou atuado para enfraquecer o governo, as demandas populares e os princípios constitucionais que impõem limites para a desenfreada sanha punitiva estatal.

Por isso, a reforma do sistema político deve ser ampla, expandir a democracia nas suas distintas possibilidades e abarcar o estado em sua complexidade, com foco em todos os poderes, em seus diferentes níveis e que não mire apenas o Executivo e o Legislativo, mas que tenha no horizonte também o sistema de justiça.

Com o desafio de ampliar o debate público sobre o sistema de justiça e os direitos humanos no Brasil para a construção de uma concepção sobre qual justiça queremos e precisamos, não pode estar restrita aos meios acadêmicos ou aos atuantes diretos do sistema de justiça, a JusDh lança o livro “Justiça e Direitos Humanos: Olhares críticos sobre o Judiciário em 2015”.

O lançamento acontece em Brasília, nesta segunda-feira (25), às 19h, seguido de um debate que será realizado com a presença de Marcelo Semer e Denise Dora. Confira o texto Giane Ambrósio Álvares e Luciana Pivato na íntegra e saiba mais sobre o evento:

 

Qual o papel do sistema de justiça na garantia da democracia e dos direitos humanos?

Fonte: Justificando 
Por Luciana Furquim Pivato, assessora jurídica da Terra de Direitos, e Giane Ambrósio Álvares, advogada

É longo o caminho percorrido no Brasil em busca da consolidação da democracia e dos direitos humanos. Desde nossa primeira constituição, em 1824, vivemos largos períodos de instabilidade e de descontinuidade das instituições políticas, com sucessivos retrocessos antidemocráticos e consecutivas quebras da ordem constitucional.

Da história recente do país, destaca-se que o regime militar (1964-1985) foi marcado por graves violações de direitos humanos, perpetradas por meio de prisões arbitrárias, tortura, execuções sumárias, desaparecimentos forçados e repressão generalizada da dissidência política e dos movimentos sociais.

No final desse período, dando um passo à frente, a sociedade civil reorganizou-se e mobilizou-se em prol do reestabelecimento da democracia, o que culminou na promulgação da Constituição de 1988, documento jurídico que, nas palavras de Luís Roberto Barroso, catalisou o “esforço de inúmeras gerações de brasileiros contra o autoritarismo, a exclusão social e o patrimonialismo”[1]. Fundando-se na soberania popular, na cidadania, na dignidade humana e no pluralismo, foi instituído o Estado Democrático de Direito no Brasil e reconhecido um amplo catálogo de direitos individuais, coletivos e sociais, cuja efetividade, todavia, está longe de ser atingida.

Passados 27 anos da Constituição de 1988, fundamentos essenciais da democracia brasileira são perigosamente ameaçados pela marcha golpista em curso. Não sabemos o que virá pela frente, os prognósticos não são favoráveis aos anseios democráticos, mas os movimentos sociais e a população brasileira saberão lutar e oferecer resistência. Como disse Gonçalves Dias, no célebre poema Canção do Tamoio, “a vida é luta renhida: viver é lutar”.

O Poder Executivo, fragilizado pela insaciável sanha golpista de seus opositores e por seus próprios equívocos, não encontra meios para governar e para fazer valer a soberania dos 54 milhões de votos recebidos no último pleito.

O Poder Legislativo, cuja composição reflete não a pluralidade existente na sociedade brasileira, mas os seus próprios interesses e os interesses do empresariado urbano e rural que financia suas campanhas eleitorais, por ocasião da sessão na Câmara dos Deputados que autorizou o prosseguimento do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, protagonizou uma das cenas mais bizarras da história do país, inclusive rendendo homenagens à ditadura militar e ao torturador da Presidenta da República.

Não obstante este triste espetáculo e sem descurar dos merecidos aplausos para aqueles que ali estiveram para defender a democracia, deve-se ter em mente que é essa maioria parlamentar que decidirá sobre diversos projetos de lei e emendas constitucionais versando sobre direitos dos trabalhadores, das mulheres, da população LGBT, dos negros, das comunidades tradicionais, das crianças e adolescentes, do meio ambiente, entre outros.

Neste cenário, o Poder Judiciário, quando não se presta a criminalizar a luta por direitos empreendida pelos movimentos sociais e para solucionar os conflitos de interesse do empresariado, tem apenas silenciado ou atuado para enfraquecer ainda mais o governo, as demandas populares e os princípios constitucionais que impõem limites para a desenfreada sanha punitiva estatal.

Desde 2008, em razão da expansão da atuação judicial sobre dimensões dos espaços políticos e tendo em vista também a judicialização de pautas centrais de direitos humanos, a criminalização das lutas sociais e da pobreza e a desregulamentação de direitos já conquistados, movimentos sociais e entidades de direitos humanos passaram a refletir sobre o papel do sistema de justiça na efetivação de direitos, concluindo pela necessidade de ações coletivas e estratégicas, voltadas não apenas para a litigância em direitos humanos, mas também para a incidência sobre a agenda política de justiça no país[2].

Fruto dessas discussões, em 2010, com a participação e parceria de movimentos sociais e de organizações de direitos humanos com atuação na litigância nacional e internacional[3], foi criada a Articulação Justiça e Direitos Humanos (JusDH). Pautando sua estratégia de atuação no questionamento sobre a adequação democrática da estrutura, organização e cultura das instituições e agentes do sistema de justiça, esta articulação busca problematizar a relação deste sistema com os fundamentos do Estado brasileiro e com os direitos fundamentais consagrados pela Constituição de 1988[4].

Com esse objetivo de democratizar o sistema de justiça, a JusDh tem apresentado publicamente suas críticas sobre diversos temas relacionados ao sistema de justiça, do que são exemplo a necessidade de transparência e participação social nos processos de indicação de ministros para o Supremo Tribunal Federal[5]; as denúncias sobre a ampliação de privilégios, caráter corporativista e esvaziamento do Conselho Nacional de Justiça, que marcam a minuta em discussão no judiciário para reforma da Lei Orgânica da Magistratura Nacional[6]; a ineficácia da Resolução do CNJ nº 170 para coibir os escandalosos patrocínios privados  de eventos da magistratura[7].

As organizações e movimentos populares que se reúnem na JusDh lutam para chamar a atenção para o fato de que o processo de reforma do sistema de justiça continua a ser construído à margem do debate público com a sociedade brasileira.  Passados 12 anos da Emenda Constitucional nº 45, que inaugura esse ambiente de reforma no Judiciário, o que ainda se busca é a adequação do Poder Judiciário à globalização econômica, preocupando-se muito mais em aumentar a eficiência, eficácia e previsibilidade dos resultados do sistema judicial para a garantia das operações financeiras no país, que em transformá-lo em espaços democráticos e preparados para o conteúdo de direitos humanos que nele deságua.

Cresce cada vez mais o protagonismo do Judiciário nos processos de decisão sobre os rumos da política e da economia do país. Todos os dias deparamo-nos com notícias e reportagens sobre as posições de juízes, desembargadores e ministros, lidas pela sociedade como inquestionáveis, como se jamais equivocadas quanto suas visões a respeito dos direitos humanos e dos princípios e regras do Estado Democrático. Mas a pergunta que se faz é: no atual arranjo institucional do Brasil, quem controla o Poder Judiciário? Quem julga os julgadores?

É nesse sentido que, em parceria com a Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político, discute-se a necessidade de reforma e de democratização também do sistema de justiça: uma reforma do sistema político ampla, que expanda a democracia nas suas distintas possibilidades, direta, representativa e participativa. Uma reforma que abarque o estado em sua complexidade, que coloque no foco todos os poderes, em seus diferentes níveis e que não mire apenas o Executivo e o Legislativo, mas que tenha no horizonte também o Sistema de Justiça.

Tendo em vista que o momento de grave crise política vivenciado no Brasil coloca-nos diante da possibilidade concreta de retrocessos em nossa recente estrutura democrática, resta imperativa a necessidade de organização do campo popular para a defesa dos direitos e dos mecanismos democráticos conquistados em razão de muitas lutas populares.

Nesse contexto, também por que parte do Poder Judiciário atua com explícita agenda político-partidária, indispensável engendrarmos mecanismos que garantam transparência e participação social no âmbito do Poder Judiciário, o mais hierárquico e carente de cultura democrática dentre todos os poderes da República.

O Poder Judiciário, como instituição da administração pública brasileira, deve se sentir provocado a reagir diante dos milhares de brasileiros e brasileiras que reivindicam maior participação nas decisões sobre os rumos da coisa pública, incorporando mecanismos que sejam capazes de torná-lo mais plural e de dar eco às vozes que demandam direitos e participação.

Firme no propósito de intensificar o debate público sobre o funcionamento e os impactos da atuação do sistema de justiça no âmbito dos direitos humanos e da democracia e preocupada com a produção e a disseminação de informações sobre a atuação do Poder Judiciário, a JusDh já lançou três livros sobre “Justiça e Direitos Humanos”.

Em 2010, o primeiro volume da série apresentou onze experiências de assessoria jurídica popular em temas de direitos humanos como gênero, saúde, educação, acesso à terra, direitos indígenas e quilombolas. O segundo volume, publicado em 2015, trouxe análises de membros da JusDh e de pessoas que desenvolveram ações de destaque em espaços do sistema de justiça sobre os desafios à construção de mecanismos de participação social e democratização da justiça no Brasil. A terceira edição da série, intitulada “Justiça e Direitos Humanos: olhares críticos sobre o Judiciário em 2015”, a ser lançada no próximo dia 25 de abril, em Brasília, é mais um passo importante na consolidação de uma metodologia própria de organizações e movimentos sociais no relato de suas experiências e na sistematização de avaliações sobre a atuação do sistema de justiça no Brasil[8].

O livro trará a lume casos emblemáticos, relacionados a conflitos fundiários urbanos e rurais, batalhas travadas contra empresas, punição de assassinatos de defensores de direitos humanos e criminalização de movimentos sociais que, por seu simbolismo ou impacto sobre os direitos humanos, mereceram destaque, apontando para possibilidades e desafios na efetivação do diálogo entre Judiciário e sociedade. Além dos casos, o livro apresenta entrevistas com os juristas e intelectuais, Leonardo Avritzer, Denise Dora e Kenarik Boujikian, que apontam fragilidades e possibilidades no sistema de Justiça.

Com o desafio de ampliar o debate público sobre o sistema de justiça e os direitos humanos no Brasil e firmes na convicção de que a construção de uma concepção sobre qual justiça queremos e precisamos não pode estar restrita aos meios acadêmicos ou aos atuantes diretos do sistema de justiça, convidamos a todos para o lançamento do livro e para o debate que será realizado com a presença de Marcelo Semer e Denise Dora.



Contamos coma presença de todos e todas e pedimos a colaboração dos leitores para a divulgação dos propósitos e objetivos aqui delineados!

 

Giane Ambrósio Álvares, advogada, mestre em Processo Penal pela PUC/SP e membro da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares. Escreve a Coluna ContraCorrentes, aos sábados, com Rubens Casara, Marcelo Semer, Marcio Sotelo Felippe e Patrick Mariano.

 

 

Luciana Furquim Pivato Advogada da organização Terra de Direitos, membro da JusDh e da Renap, especialista em direito penal e criminologia pela Universidade Federal do Paraná e Instituto de Criminologia e Ciência Criminais.
Foto: Fotos Públicas.

 


 


[1] BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 5.ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p.482.
[2] PRIOSTE, Fernando Galhardo; FRIGO, Darci. Justiça e Direitos Humanos: perspectivas para a democratização da justiça. Terra de Direitos e Articulação Justiça e Direitos Humanos, 2015, p. 12/13.
[3] Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais (AATR), Ação Educativa, Conectas Direitos Humanos, Centro de Assessoria Jurídica e Popular Mariana Criola, Dignitatis, Geledés, Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SDDH), Terra de Direitos, Aliança de Controle ao Tabagismo, Artigo 19, Associação Juízes para a Democracia (AJD), Colégio de Ouvidorias da Defensoria Pública, Fórum Justiça, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (RENAP), Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político.
[4] PRIOSTE, Fernando Galhardo; FRIGO, Darci. Justiça e Direitos Humanos: perspectivas para a democratização da justiça. Terra de Direitos e Articulação Justiça e Direitos Humanos, 2015, p. 14.
[5] Leia mais em: Carta Aberta por transparência e participação social nos processos de nomeações de Ministros/as do Supremo Tribunal Federal
[6] Lei mais em: Reformas do Judiciário: sem debate público não construiremos o Judiciário que precisamos
[7] Leia mais em: Empresas e Judiciário: patrocínio de eventos da magistratura e a autonomia dos juízes
[8] JUSDH. Justiça e direitos humanos : olhares críticos sobre o judiciário em 2015. Org. PIVATO, Luciana. ESCRIVÃO, Antonio. XIMENES, Salomão. Curitiba: Terra de Direitos, 2016. 

 

 



Ações: Democratização da Justiça, Defensores e Defensoras de Direitos Humanos

Eixos: Democratização da justica e garantia dos direitos humanos