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Artigo | Elas e o direito de envelhecer: a aposentadoria das trabalhadoras rurais

15/03/2017 Naiara Bittencourt e Alessandra Jacobovski

Contrárias à proposta de reforma da previdência, mulheres do Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Sem Terra ocuparam superintendência do INSS, em Maceió, durante mobilizações do dia 8 de março. (foto: MST)

“Estamos todas despertas! Contra o Capital e o Agronegócio. Nenhum Direito a Menos!”. O lema que levantou as manifestações do 08 de março de 2017 pelas mulheres camponesas revela a resistência contra os desmontes promovidos pelo governo ilegítimo de Michel Temer. As marchas e ocupações em frente às agências do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) em centenas de cidades brasileiras, no dia internacional de luta das mulheres, demonstra a unidade na denúncia contra a reforma previdenciária proposta pela Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 287/2016. Se a reforma já é prejudicial a todos os trabalhadores e trabalhadoras, são as camponesas as que sofrerão de forma ainda mais brutal com as mudanças.

Isto porque a PEC eleva a idade mínima de aposentadoria das trabalhadoras rurais de 55 para 65 anos, equiparando homens e mulheres e trabalhadores urbanos e rurais, sem levar em conta as diferenças básicas de gênero e do trabalho no campo e na cidade, historicamente construídas no Brasil; além de acabar com a aposentadoria por idade rural (hoje prevista no art. 48, § 1º, da Lei 8213/91).

O que muda?

Idade: No sistema vigente a aposentadoria por idade rural (prevista no art. 48, parágrafo 1º da Lei 8213/91) é devida ao trabalhador rural que completar 60 anos de idade e à trabalhadora rural que completar 55 anos, além de ser necessário comprovar 15 anos de trabalho rural. No atual sistema têm direito a esta modalidade de aposentadoria os chamados “segurados especiais”: os produtores rurais que exerçam atividade agrícola em imóveis rurais com até 4 módulos fiscais, os seringueiros e extrativistas vegetais e os pescadores artesanais (art. 11, inciso VII da Lei 8213/91).

Por sua vez, a PEC 287 propõe a mudança dos critérios de aposentadoria voltada aos segurados especiais ao estabelecer uma idade mínima de aposentadoria aos 65 anos para todas as profissões e para homens e mulheres, desconsiderando as diferenças de gênero e as diferenças sociais que justificam o tratamento diferenciado para as trabalhadoras no campo. Na prática, as trabalhadoras rurais serão as mais prejudicadas pela reforma na previdência social, uma vez que terão a idade de aposentadoria aumentada em 10 anos (de 55 para 65 anos)!

Tempo de contribuição e contribuição individual: Para terem direito à aposentadoria por idade rural prevista no sistema vigente, o trabalhador e a trabalhadora rural, além de completarem a idade mínima, devem apresentar 180 contribuições. Como os produtores rurais já fazem o recolhimento de 2% no momento da comercialização do produto agrícola, basta comprovarem quinze anos de trabalho rural em regime de economia familiar, não sendo necessário realizar a contribuição individual (exigência prevista no no art. 48, parágrafo 2º da Lei 8213/91).

Com a PEC 287, para os trabalhadores e trabalhadoras rurais acessarem o benefício serão necessários 300 meses de contribuições (o que equivale a 25 anos), além de se tornar obrigatório que tais contribuições sejam vertidas de modo individual, não sendo mais suficiente apenas a comprovação do exercício de trabalho rural. Isso quer dizer que mesmo que todos os integrantes da família exerçam a atividade rural em regime de economia familiar, isto é, que todos contribuam para o desenvolvimento da atividade rural no âmbito da família, cada integrante terá que verter a sua própria contribuição individual junto ao INSS para poder ter acesso ao benefício de aposentadoria.

Segundo Priscila Facina Monnerat, do coletivo de mulheres do Assentamento Contestado do Movimento dos Trabalhadores/as Rurais Sem Terra (MST), em Lapa-PR,“um casal teria que desembolsar em torno de R$ 100,00 mensais para garantir a sua aposentadoria. Muitas vezes esta família não vai ter este dinheiro e vai envelhecer sem se aposentar”. Salienta-se que no meio rural a entrada de dinheiro depende da safra, o que gera dificuldade em realizar contribuições mensais com um valor fixo. Ademais, se a família tiver condições de realizar a contribuição de apenas uma pessoa, dificilmente será priorizada a contribuição da mulher.

 Impactos às camponesas

 Dupla Jornada e invisibilização do trabalho doméstico

É fato que as trabalhadoras rurais cumprem jornadas exaustivas de trabalho que somam  o cuidado com a casa e com a família, a manutenção de hortas no entorno da residência, o cuidado com os animais e o trabalho na roça ou na lavoura em si.

A articulação destes trabalhos implica o esgotamento prematuro das trabalhadoras e tem impactos severos à saúde e ao envelhecimento precoce. Ignorar a dupla ou tripla jornada é prolongar o tempo de desgaste  físico das trabalhadoras.

Trabalho extenuante no campo

O trabalho no campo é comumente realizado em condições difíceis, com sol, chuva, safras de plantação e colheita exaustivas, que englobam a família toda. No campo, as crianças começam a trabalhar desde cedo para complementar a subsistência familiar.

Segundo o IPEA, 70% das mulheres do meio rural começam a trabalhar antes dos 14 anos de idade. Para se aposentar com 65 anos, elas terão trabalhado por mais de 50 anos nas adversidades do meio rural.

Rotatividade e trabalho temporário

Sabe-se também que o trabalho no campo se caracteriza pela sazonalidade e rotatividade, com contratações rotativas, a exemplo dos bóias-frias. Isso implica interrupções constantes na arrecadação e dificuldade de somar o tempo mínimo de contribuição de 25 anos estabelecido pela reforma. É comum que as trabalhadoras permaneçam anos sem contribuir e, quando o fazem, arrecadam valores irrisórios e por pouco tempo, o que pode acarretar em aposentadorias em uma idade bem além dos 65 anos, com possibilidade de nunca se receber o benefício, e consequente dependência da assistência social.

Cerceamento da autonomia da mulher

 Priscila Monnerat explica outras implicações das mudanças propostas na PEC. “Para além da questão econômica, para quando uma trabalhadora do campo recebe a aposentadoria, muitas vezes é a primeira vez que ela tem a possibilidade de autonomia financeira”. A integrante do coletivo de mulheres do assetamento indica que, em muitos casos, o recebimento da aposentadoria “é a primeira vez que elas conseguem tomar decisões com seu dinheiro”. Isto porque ainda há relações patriarcais severas no campo brasileiro, em que o homem assume a função de gestor do dinheiro familiar durante toda a vida.

A aposentadoria permite uma relativa autonomia que, inclusive, enseja o término de algumas relações abusivas e violentas. Com a ampliação da idade e da necessidade contribuição individual é possível que as camponesas nunca recebam o benefício.

Todos estes impactos demonstram que PEC 287 representa nada menos do que o desmonte do sistema previdenciário e do direitos sociais que garantem o envelhecimento minimamente digno da população trabalhadora no Brasil. Além disso, a PEC é flagrantemente inconstitucional em sua forma, uma vez que artigo 60, § 4º, inciso IV, da Constituição Federal, dispõe que os direitos e garantias individuais não podem ser objeto de alteração por Emenda Constitucional. Isto é, a proposta de reforma é inaceitável em termos sociais, políticos e jurídicos e só será barrada mediante ampla mobilização social.

ASSISTA | Saiba mais sobre alguns impactos da reforma da previdência sobre as trabalhadoras rurais em entrevista com Priscila Facina Monnerat


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*Naiara Bittencourt é advogada popular da Terra de Direitos
 Alessandra Jacobovski é estudante de Direito da Universidade Federal do Paraná e estagiária na Terra de Direitos



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Ações: Defensores e Defensoras de Direitos Humanos, Biodiversidade e Soberania Alimentar

Eixos: Biodiversidade e soberania alimentar, Política e cultura dos direitos humanos