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Pelo direito de serem consultados sobre porto que poderá afetá-los, quilombolas se levantam numa grande mobilização comunitária


“O objetivo dessas oficinas é a gente ser consultado e dizer a situação para o governo, que a gente também existe aqui. A empresa está dizendo que nós não existimos. Mas nós existimos e estamos lutando para que o governo olhe para nós e respeite os nossos direitos.”

É assim que Manoel de Jesus, liderança da comunidade quilombola de Nova Vista do Ituqui, resume a importância das oficinas que estão sendo realizadas nas doze comunidades quilombolas do município de Santarém que poderão ser impactadas pela construção de um porto exportador de soja na entrada do Lago do Maicá.

Dileudo Guimarães, presidente da Federação das Organizações Quilombolas de Santarém (FOQS) durante oficina para Protocolo de Consulta sobre projeto de porto no Maicá.

Pela assessoria de comunicação Terra de Direitos / texto e fotos Bob Barbosa

Foi depois de muita luta que as pessoas que vivem nessas comunidades, representadas pela Federação das Organizações Quilombolas de Santarém (FOQS), confirmaram na Justiça o direito de serem consultadas a respeito da construção e instalação do porto no Maicá. Com assessoria jurídica da Terra de Direitos e diante da necessidade de se elaborar um Protocolo de Consulta, a FOQS vem realizando oficinas em cada uma dessas comunidades para que elas mesmas definam o modo como pretendem ser consultadas sobre o projeto de porto que ameaça o equilíbrio sócio-ambiental do lugar onde vivem.

Até o momento, oito das doze comunidades quilombolas realizaram as oficinas, que vem acontecendo nos próprios barracões comunitários. Como resultado, um relatório é escrito pelas moradoras e moradores, em cada uma das reuniões, contendo posições tiradas por consenso. Até agosto, outras quatro comunidades quilombolas farão suas oficinas. Na sequência, a FOQS, com representantes das doze comunidades, fará uma Assembleia Geral, ocasião em que, a partir dos relatórios, será elaborado um documento único: o Protocolo de Consulta.

 

 

Oficina para Protocolo de Consulta na comunidade quilombola do Arapemã

Maria Josiane dos Santos, moradora da comunidade quilombola de São José do Ituqui, explica a motivação que a fez participar da Oficina. “Logo que se expandiu a notícia de porto no Maicá, foi uma tristeza pra mim. Participei até da manifestação, com a minha filha, no dia 08 de março pelas ruas de Santarém. Se for relatar, os impactos são muitos, principalmente na nossa água e no nosso rio que nós e nossas crianças usamos diariamente. Se fizerem esse porto vai prejudicar a nossa saúde e também os nossos peixes no Lago do Maicá.”
 

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>> Mapa da área de influência do projeto do porto

O exuberante lago, que pode ser também considerado como um braço de rio, está localizado à margem direita do Rio Amazonas, entretanto, pela proximidade do “encontro das águas”, também recebe as águas azuis do Rio Tapajós. O Maicá é berçário de muitas espécies de peixes e também fonte de renda para comunidades do entorno que ali exercem, de modo sustentável, a pesca e o agro-extrativismo.

Morador da comunidade quilombola do Tiningú e representante da Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Estado do Pará (Malungu), Bena Mota também reforça a importância da consulta. “Nós precisamos ser consultados porque nós queremos dizer se queremos ou não esse empreendimento. E a questão de navio esperando, nós vivemos do peixe e se por acaso houver um vazamento de óleo, quem será prejudicado? Somos nós.”
 

>> Obras portuárias e impactos sociais no Tapajós

>> Resistência à privatização do Lago do Maicá

Segundo a própria empresa privada que está tentando implantar seu projeto no local, a Embraps, o porto poderá receber navios de até 260 metros de comprimento e de até 12 metros de calado. Outros números, contidos no  Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) da Embraps, impressionam. O pátio terá capacidade para estacionar 938 caminhões (carretas carregadas de soja). A previsão da empresa é de 4,8 milhões de toneladas de grãos de soja exportadas apenas no primeiro ano. A capacidade de armazenamento é de 440 mil toneladas nas estruturas anexadas ao porto.

 

 

 Na orla de Santarém, silos da empresa estadunidense Cargill

Para se ter uma ideia do gigantismo do projeto da Embraps, o porto da Cargill que domina a paisagem da orla de Santarém tem menos da metade da capacidade de armazenamento - 140 mil toneladas - já contando os três enormes silos construídos sobre onde, um dia, foi a praia de Vera Paz. Dados extraídos do próprio site da  Cargill e do RIMA da Embraps.

Construído a partir de 1999 e em atividade desde 2003, o porto da Cargill também é citado durante as oficinas. Ana Cleide Vasconcelos, pescadora e presidente da Associação Comunitária Remanescentes de Quilombo de Arapemã, lembra que “era muito bonita a praia de Vera Paz. Depois que foi construído aquele porto da Cargill acabou com a beleza que tinha lá e os pescadores que viviam e pescavam no local se deslocaram para lugares mais longe porque nem podem mais ficar lá.”

 

Praia de Vera Paz, local onde hoje estão os silos da Cargill. Foto extraída do blog Saudade Perfumada, sobre a obra de Emir Hermes Bemerguy

>> Poemas de Emir Bemerguy sobre a praia de Vera Paz

Dez anos depois da Cargill instalar sua mega estrutura sobre a praia de Vera Paz, foi a vez, em 2013, do Lago do Maicá entrar na mira do agronegócio. Através da Embraps, uma empresa inexistente até então, o santuário do Maicá começa a ser cobiçado para servir de elo na cadeia de exportações de grãos. A Embraps, cujo nome pode confundir os mais desavisados, não é uma empresa pública. Trata-se de uma empresa privada, cujo sócio majoritário é um produtor de soja que mora no município de Sorriso, no Mato Grosso.

A empresa foi criada com o objetivo específico de construir o porto no Maicá. Sua sigla, Embraps, faz referência à cidade em que acabara de estabelecer sede enquanto pessoa jurídica: Empresa Brasileira de Portos de Santarém. Segundo matéria publicada em 2016 pelo jornal local O Impacto, a recém criada Embraps vai investir 652 milhões de reais no empreendimento. As obras de acesso, vias públicas para trânsito das carretas até o porto, ruas e avenidas que ainda não existem, não entram nesse cálculo - ficam na conta dos recursos públicos.

 

 

Da invisibilidade à consulta, uma cronologia

Março de 2013

A Embraps apresenta um estudo e solicita um pedido de licença ambiental para o seu projeto de porto, junto à Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Estado do Pará (SEMAS). Esta pede então para que a Embraps apresente um Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e o seu respectivo Relatório de Impacto Ambiental (RIMA).

Novembro de 2013

A SEMAS publica o Termo de Referência para a empresa proponente do projeto do porto no Maicá elaborar o EIA e o RIMA. A Embraps contrata a Fundação de Amparo e Desenvolvimento da Pesquisa (FADESP), instituição privada de apoio à pesquisa científica, para a elaboração do EIA/RIMA.

Dezembro de 2014

Antes da conclusão do Estudo de Impacto Ambiental (EIA), a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ) habilita a Embraps, que havia pedido autorização para construção e exploração de terminal privado no Lago do Maicá. O empreendimento foi considerado “apto” pela agência reguladora, que logo em seguida comunica a Secretaria de Portos da Presidência da República “(...) a habilitação da Empresa Brasileira de Portos Santarém Ltda, única participante do Anúncio Público n. 23/2014, realizado em 12/12/2014”.

 

Projeção extraída do Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) do porto da Embraps

Outubro de 2015

A Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Estado do Pará (SEMAS) publica em seu site o RIMA do porto da Embraps, requisito para a concessão do licenciamento de um empreendimento. No EIA, entretanto, consta que “na área diretamente afetada pela implantação do Porto da Embraps não foram encontradas populações tradicionais legalmente reconhecidas.”

Janeiro de 2016

A Federação das Organizações Quilombolas de Santarém (FOQS) envia ao Ministério Público Federal, Ministério Público Estadual e Semas, questionamentos sobre os estudos ambientais do Complexo Portuário da Embraps, reivindicando a aplicação da Convenção n° 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

A Convenção 169 prevê a realização de consulta prévia, livre e informada para povos tradicionais quando houverem medidas administrativas que possam afetá-los - indígenas e quilombolas são reconhecidos pela legislação brasileira como povos tradicionais.

No Brasil, a Convenção n° 169 da OIT foi ratificada pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo n° 143, de 20 de junho de 2002 e pelo Decreto Presidencial n° 5.051 de 19 de abril de 2004. Segundo o Supremo Tribunal Federal, tem status supralegal à medida que os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil estão tutelados de forma especial na Constituição de 1988.

Mãe e filha no intervalo da Oficina para Protocolo de Consulta, no Arapemã

Fevereiro de 2016

Após pressão dos movimentos sociais do oeste do Pará e intervenção do Ministério Público Estadual (MPE-PA), a audiência pública marcada para 23 de fevereiro que estava sendo organizada pela SEMASpara tratar do licenciamento ambiental do projeto do porto no Lago do Maicá, foi adiada sem previsão para nova data.

O Ministério Público Federal (MPF) e o Ministério Público Estadual (MPE-PA) ingressam na Justiça Federal – Subseção de Santarém, com Ação Civil Pública (ACP) contra a Embraps, a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ), o Estado do Pará e a União, pedindo a “suspensão do licenciamento para construção do Terminal Portuário”.

MPF e MPE apontam na ACP que, deliberadamente, não foi considerado no EIA/RIMA a existência de territórios quilombolas e outras populações tradicionais na área diretamente afetada pelo empreendimento. Também indicam na ACP que o processo de licenciamento ambiental do porto da Embraps, em vez de ser conduzido pela SEMAS, deveria seguir o parâmetro previsto na Portaria Interministerial n° 60, de 24 de março de 2015, que estabelece “procedimentos administrativos que disciplinam a atuação dos órgãos e entidades da administração pública federal em processo de licenciamento ambiental de competência do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – Ibama”.

A própria SEMAS, responsável em dar a licença ambiental para a Embraps, sabia da existência de territórios quilombolas na área de influência do porto, pois o INCRA já lhe havia informado:

“Sobre a presença de territórios quilombolas em Santarém, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, Superintendência Regional de Santarém – INCRA/SR-30, informou para a própria SEMAS/PA que as comunidades quilombolas Arapemã, Saracura, Maria Valentina, Bom Jardim, Murumurutuba, Tiningu e Mururu estão situadas em local de possível influência do empreendimento portuário, na região do Maicá, sob a responsabilidade da EMBRAPS (OFÍCIO/INCRA/GAB/SR(30)/N° 71/2016 – fls. 217 do ICP).”

Mapa e dados extraídos do OFÍCIO/INCRA/GAB/SR(30)/N° 71/2016

>> A publicação LICENCIAMENTO AMBIENTAL E O DIREITO À CONSULTA PRÉVIA, LIVRE E INFORMADA: O CASO DA CONSTRUÇÃO DO COMPLEXO PORTUÁRIO DO MAICÁ, NO MUNICÍPIO DE SANTARÉM, PARÁ, que é uma das fontes desta reportagem, é de autoria de Cândido da Cunha, Juliana Maia e Júlia Ribeiro.
 

Abril de 2016

A Justiça Federal, atendendo ao pedido do Ministério Público Federal (MPF) e Ministério Público do Estado do Pará (MP/PA), ordena a paralisação do licenciamento do porto da Embraps. A suspensão fica em vigor até que os responsáveis pelo porto comprovem a realização da consulta prévia, livre e informada das comunidades quilombolas e povos tradicionais afetados pelo empreendimento, conforme prevê a Convenção 169 da OIT, da qual o Brasil é signatário.

“A consulta às comunidades tradicionais tem como finalidade assegurar a participação plena e efetiva destes grupos minoritários na tomada de decisões que possam afetar sua cultura e seu modo de viver”, assim expressa na decisão o juiz Érico Freitas Pinheiro.

A liminar assinala ainda que a Antaq reconheceu que estava quase concluindo o procedimento de outorga, sem que os quilombolas tenham sido consultados a respeito do porto. A decisão também ressalta que a Convenção 169 se aplica plenamente aos ribeirinhos e quilombolas, como os afetados pelo porto do Maicá.
 

>> Justiça determina suspensão do licenciamento

>> Repórter Brasil - O quilombo que parou um porto
 

Maio de 2016

O Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) nega recurso da Embraps para retomar o projeto do porto no Maicá. Com a negativa, fica mantida a decisão da Justiça Federal de 1a instância de suspender o empreendimento, até que os responsáveis pelo porto comprovem a realização da consulta prévia, livre e informada das comunidades afetadas pelo empreendimento, conforme prevê a Convenção 169.

Além da consulta prévia, a decisão do desembargador federal Antônio Souza Prudente também confirma a necessidade de que o licenciamento do porto de Maicá seja feita na esfera federal, pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama), por se tratar de empreendimento no rio Amazonas, o maior rio federal do país.

Dona Raimunda, de Murumuru lê propostas da comunidade para o Protocolo de Consulta. Escrevendo no quadro, o advogado Pedro Martins

Junho e julho de 2016

Com assessoria jurídica da Terra de Direitos, através da advogada Layza Queiroz e do advogado Pedro Martins, a Federação das Organizações Quilombolas de Santarém (FOQS) organiza nas doze comunidades quilombolas do município de Santarém e que estão na area de influência do projetado porto da Embraps uma série de oficinas preparatórias para a elaboração de um documento que norteie a Consulta Prévia, Livre e Informada. Um Protocolo de Consulta.

Para Fátima Corrêa da Silva, da comunidade quilombola de São Raimundo do Ituqui, "o porto no Maicá não é nada bom para nós, principalmente nós que viajamos de bajara, pois vamos ser “embargados”. Se nós formos encostar lá, vamos ter esse espaço grande ainda? Não. Porque vai chegar um navio e: “Por favor tire essa bajara daí”. Isso não está tirando o nosso direito? Está tirando! Os pescadores da minha comunidade utilizam o furo do Maicá (local previsto para o porto) para passarem com suas bajaras, e assim ficarão prejudicados." Na Amazônia, bajara é a embarcação que, pelo tamanho, situa-se entre a canoa e o barco com redes de dormir. Geralmente usa “motor de rabeta”.

Ivanildo Pinto, da comunidade quilombola de São José do Ituqui, que também participou das oficinas, reforça: "a gente, as famílias que vivem no Rio Ituqui e no Lago do Maicá, está preocupado com esse porto que querem fazer aí. A gente está sabendo que vai durar dois anos a construção desse porto, o Maicá vai virar um lameiro só. Vai prejudicar todas as populações tradicionais que vivem aqui nesse rio. Se acontecer um porto desses, pior vai ficar para nós, pescadores, porque teremos que rodar lá fora para passar livremente com nossas embarcações. A gente hoje passa por ali para levar nosso pescado para a cidade e às vezes precisa encostar na beira onde seria o porto."

Advogada Layza Queiroz durante atividade da Oficina para Protocolo de Consulta, em Nova Vista do Ituqui

"Está havendo uma boa participação do público das comunidades nas reuniões. As pessoas perguntam, dão suas propostas, questionam e tem uma boa participação na questão do falar. A gente vê que as pessoas sentem-se preocupadas com o que esse empreendimento pode levar de problema para as nossas comunidades", fala Dileudo Guimarães, da comunidade quilombola de Bom Jardim e presidente da FOQS.

Dileudo, que vive da agricultura familiar em sua comunidade, complementa: "depois das oficinas a gente vai juntar em uma Assembleia as lideranças que as comunidades escolheram em cada uma dessas reuniões. Vamos ver os relatórios de cada comunidade e aí então unificar essas opiniões, essas ideias, para aprovação. Todos estão tendo conhecimento do que o Maicá representa para nós, porque é daí que a gente tira o pescado para o sustento e para a venda."

Dileudo acompanhando mais uma Oficina para Protocolo de Consulta

Maria Alba, do Arapemã, sintetiza o espírito de coletividade que permeia os encaminhamentos feitos pelos quilombolas nas oficinas: “Queremos ser consultados todos juntos, em assembleia, não nos sentiremos à vontade com consultas sendo feitas separadamente.”

Manoel de Jesus, presidente da Associação de Remanescentes de Quilombo Maria Valentina, que engloba as comunidades de Nova Vista, São Raimundo e São José, todas no Rio Ituqui. Maria Valentina foi uma escrava fugida da fazenda Taperinha que foi morar na comunidade de São Raimundo. A maior parte das famílias dessa comunidade e de São José é descendente dela.

 

“Quem sabe faz a hora, não espera acontecer” (Geraldo Vandré)

 



Ações: Conflitos Fundiários, Quilombolas

Eixos: Biodiversidade e soberania alimentar, Democratização da justica e garantia dos direitos humanos, Terra, território e justiça espacial