Carta Capital | Confronto ou emboscada?


Reportagem da revista Carta Capital relata o massacre de trabalhadores rurais sem terra no Paraná, no último dia 7. O texto aponta que, apesar de declarações da Polícia Militar do Paraná de que trabalhadores rurais sem terra teriam disparado contra policiais, boletim de ocorrência mostram que armas apreendidas dos trabalhadores não foram disparadas.  Em entrevista, o coordenador da Terra de Direitos e integrante do Conselho Nacional de Direitos Humanos, Darci Frigo, indica a necessidade de justiça na investigação e punição dos atores do massacre. “São milhares de famílias que querem exercer um direito reconhecido”, fala.
 

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Confronto ou emboscada?

 

As dúvidas sobre o conflito que resultou na morte de dois sem terra

 

Nos BOs, o registro das munições intactas. O MST protesta e pede justiça. Foto: Joka Madruga/ Futura Pres

Fonte: Carta Capital
Por René Ruschel

Quedas do Iguaçu, na região central do Paraná, voltou a ser cenário de guerra, sangue e morte. Um confronto entre a Polícia Militar e integrantes do Movimento Sem Terra (MST), em 7 de abril, culminou no assassinato de dois trabalhadores. Outros sete ficaram feridos, todos assentados no acampamento Dom Tomás Balduíno. O local tem um histórico de conflito entre o MST e a Araupel S.A., especializada em reflorestamento e beneficiamento de produtos em madeira. Os assentados afirmam que a PM, auxiliada por seguranças particulares da empresa, preparou uma emboscada na área em litígio. O comando da polícia insiste que o primeiro tiro partiu dos assentados.

Em nota oficial, o MST descreve: “A emboscada ocorreu, enquanto os trabalhadores circulavam de caminhonete e motocicleta, a 6 quilômetros do acampamento, dentro do perímetro da área decretada pública pela Justiça, quando foram surpreendidos pelos policiais e seguranças entrincheirados”.

O coronel Washington Lee Abe, comandante do 5º Comando Regional da Polícia Militar, sediado em Cascavel, reiterou que o primeiro tiro partiu dos assentados. “Apenas reagimos ao ataque.” Os assentados apresentaram como contraprova os autos de apreensão das armas que supostamente pertenciam às vítimas. As pistolas apreendidas, descrevem os BOs, “estavam com as munições intactas”.

O clima de guerra agravou-se uma semana antes do dia fatídico. Em 31 de março, cerca de 20 policiais da Força Nacional de Segurança Pública, instalados na região desde janeiro a pedido do governo do Paraná, deixaram a cidade. Enquanto estiveram na área, durante 90 dias, nada aconteceu. Em 1º de abril, em uma reunião na prefeitura de Quedas do Iguaçu com a presença do chefe da Casa Civil do governo estadual, Valdir Rossoni, do secretário de Segurança Pública, Wagner Mesquita, e diretores da Araupel, além de integrantes do alto escalão do comando militar, teria sido anunciado o aumento do número de policiais militares na cidade. A pauta da reunião, dizem fontes, era para discutir a questão da terra, mas nenhum integrante do MST, parte importante no processo, foi convidado a participar. Após a reunião, uma força-tarefa de 60 policiais desembarcou na cidade.

Rossoni, deputado federal eleito pelo PSDB, recebeu 50 mil reais de doação de campanha da Araupel. A madeireira doou outros 310 mil ao diretório do PSDB e 150 mil ao governador reeleito, Beto Richa, segundo a prestação de contas das campanhas apresentadas à Justiça Eleitoral.

A disputa entre o MST e a Araupel dura mais de uma década. No início dos anos 90, por causa do não cumprimento da função social da terra, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) desapropriou perto de 27 mil hectares e instalou o primeiro projeto de assentamento para cerca de mil famílias. Uma parte dessas terras pertencia à empresa. Em 2000, a Araupel ofereceu outra área ao poder público.

 

 

 

Os Boletins de Ocorrência indicam: as vítimas não atiraram

Após um estudo técnico, o Incra concluiu que o terreno era viável para a implantação de um projeto de reforma agrária, mas, ao executar a etapa de avaliação de legitimidade da área, constatou que no passado houve titulação indevida. “O estado expediu títulos de terras que não eram de sua competência. Esse é o caso da Araupel. Além disso, o terreno estava localizado em área de fronteira, propriedade da União. Em síntese: a Araupel não era dona de toda aquela extensão”, afirmou Josely Trevisan Massuquetto, procuradora-chefe do Ministério Público no Incra. Em 2004, o instituto impetrou uma ação declaratória de nulidade de registro imobiliário.

No início de 2005, uma nova medida foi impetrada: o pedido de imissão de posse, ou seja, o direito de o Incra tomar a área questionada. A Justiça Federal concedeu a tutela em prazo relativamente curto. Antes da decisão, o juiz responsável pela sentença visitou o terreno. E teria se indignado com a situação de penúria e miséria absoluta dos sem-terra. Segundo Massuquetto, “ele viu a mais absoluta ausência do princípio constitucional dos direitos à pessoa humana”.

Desde então, uma série de projetos foram implementados na área em litígio, que abriga atualmente mais de 3 mil famílias. Em maio de 2015, a Justiça Federal de Cascavel reconheceu o domínio da União, confirmou a posse do Incra e aprovou os projetos em andamento. A Araupel ingressou com recurso no Tribunal Regional Federal. No ano passado, movidos pela decisão favorável da Justiça e pelo reconhecimento de que a área pertence à União, os sem-terra instalaram dois novos assentamentos: Herdeiros da Luta e Dom Tomás Balduíno, onde ocorreu o conflito.

Nos últimos dias, a situação em Quedas do Iguaçu é de apreensão, mas a violência cedeu espaço a uma relativa calmaria. Por determinação do Ministério da Justiça, soldados da Força Nacional retornaram à cidade para garantir a paz. A PM aguarda o resultado dos laudos cadavéricos, enquanto o MST protesta. “Não se trata apenas de uma questão social, mas de justiça. São milhares de famílias que querem exercer um direito reconhecido”, afirma Darci Frigo, do Conselho Nacional de Direitos Humanos.

O MP estadual solicitou ao Grupo de Atuação Especial ao Crime Organizado a investigação das causas e responsabilidades pelas mortes. Para o coordenador do Centro de Apoio aos Direitos Humanos do Ministério Público, Olympio de Sá Sotto Maior Neto, a apuração está prejudicada, uma vez que o acesso ao local dos crimes foi liberado pela polícia 24 horas após os fatos. A Araupel não atendeu aos pedidos de entrevista.

 

 



Ações: Conflitos Fundiários, Defensores e Defensoras de Direitos Humanos
Eixos: Terra, território e justiça espacial