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Educação jurídica para quilombolas e indígenas é tema de debate em Santarém


Os muitos desafios relativos à educação jurídica voltada aos povos indígenas e quilombolas, o racismo e a vedação do avanço de pautas de interesse desses grupos pelo poder Judiciário e a construção de estratégias de defesa dos direitos humanos foram temas centrais dos debates do Seminário sobre Direitos Étnicos, Racismo e Justiça que aconteceu nesta segunda-feira (13) na Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), em Santarém (PA).

Promovido pela Terra de Direitos, pelo Conselho Indígena Tapajós Arapiuns (CITA), pelo Coletivo de Estudantes Quilombolas (CEQ) e pela Pró-Reitoria de Gestão Estudantil (PROGES) da Ufopa, o evento contou com cerca de 150 pessoas, em sua maioria estudantes, e deu sequência aos debates iniciados no 1o Encontro dos Estudantes de Direito Indígenas e Quilombolas da Ufopa, realizado pela Terra de Direitos no último fim de semana.   

Reafirmar a pluralidade

Na mesa “Educação Jurídica e os povos indígenas e comunidades quilombolas”, foram relatadas as dificuldades enfrentadas pelos estudantes integrantes de mais de 13 povos indígenas, que falam diferentes línguas, frente ao número insuficiente de docentes capacitados para trabalhar com esses grupos, além da inflexibilidade curricular que impede que os educandos possam estudar desafios relativos às suas próprias realidades. “Falar sobre educação jurídica é um desafio e tanto para nós, principalmente porque a Ufopa é uma universidade que ainda está em construção”, afirmou Jaime Mota, quilombola e estudante de Direito.  

Consolidar a proposta que a universidade tem em relação à pluralidade é uma lacuna central na leitura da professora Ana Karine, docente da instituição. Para ela, o ponto de partida da ação deve ser a Constituição Federal. “Dentro de rol de direitos indígenas a serem efetivados está a educação, e essa proteção constitucional tem de significar alguma coisa, principalmente em relação a um direito fundamental. Ele nos obriga a realizar momentos de reflexão sobre mecanismos que tornariam mais eficiente a educação jurídica na nossa universidade”, apontou. “A gente espera que discentes indígenas e quilombolas deixem seus territórios e venham para o nosso convívio sem trazer nada consigo, quando na verdade o certo seria que esse caminho não fosse de mão única, mas de mão dupla. Fundamental é não permitir que formação seja unilateral”. 

André Azevedo, que também integra o quadro docente, destacou que a presença de indígenas e quilombolas não é presente da universidade, mas uma conquista das comunidades. “O primeiro desafio é formar estudantes capacitados para a defesa dos direitos das comunidades. Isso está previsto no Projeto Político Pedagógico, mas ainda está carente o processo de efetivação. Nosso programa é pensado para enfrentar os problemas da realidade local ou tem se limitado a assegurar o ingresso dos indígenas e quilombolas?”, questionou.

“Com que Justiça vocês sonham?”

O racismo identificado nos espaços acadêmicos também é perceptível no Sistema de Justiça. A síntese permeou as intervenções da segunda mesa do Seminário, “Direitos Indígenas e Quilombolas, racismo e o Poder Judiciário”.

Poró Borari, estudante de Pedagogia, relatou a criação de um Diretório Acadêmico indígena da Ufopa e a formulação das primeiras ações afirmativas da universidade, além de casos de racismo vivenciados nos campi da universidade. Ele lembrou, ainda, que este é um momento de troca de gestão na universidade, e que é preciso garantir os direitos dos indígenas e quilombolas nesse processo. “Hoje, movimentos indígena e quilombola sofrem com tentativas de acabar com nossos direitos, PECs e PLs. O que podemos fazer na universidade frente a isso?”, ponderou.

A necessidade de resistência frente ao cenário de retirada sistemática de direitos na conjuntura atual foi reiterada por Isabela Cruz, estudante quilombola da Universidade Federal do Paraná (UFPR). “O agronegócio avança de forma organizada e o poder público vai retardar o máximo possível os direitos. A universidade não vai dar nada, e no cenário de governo golpista, menos ainda”. Para ela, as e os estudantes quilombolas e indígenas precisam atuar de forma ainda mais organizada e consequente frente a esse cenário. “Reescrever teoria do Estado, Teoria do Direito Penal, apontar falhas nos processos administrativos que dizem respeito às titulações dos nossos territórios. A gente pode parar de esperar da universidade. Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come, se unir o bicho some”.

Luciana Pivato, advogada e integrante da Terra de Direitos e da Articulação JusDh – Justiça e Direitos Humanos, apresentou os desafios relativos à democratização da Justiça, que envolve transformações estruturais no Judiciário para além da advocacia popular. Ela resgatou o histórico de formação e pautas da rede, formada por mais de 20 entidades da sociedade civil organizada, como o combate a privilégios, a composição do Judiciário e a cooptação do Poder Judiciário por empresas, entre outras. “Esse é um campo que a gente tem explorado para fazer luta. Esses sujeitos que estão ali vieram historicamente de um campo da sociedade que não é o nosso. É preciso mudar e combater essas questões lá dentro, se não a gente sempre vai perder”, defendeu. 

Pivato apresentou, ainda, dados sobre a formação e a composição atual do Judiciário: segundo o Censo da Magistratura Nacional divulgado em 2013, de 16 mil juízes, 0,1% são indígenas e 1,4 % são negros. Além disso, 64% dos juízes são homens. “A gente tem que olhar a estrutura de Justiça que temos nesse país. Se queremos falar de soberania popular, é preciso trazer todo mundo para essa roda. Com que Justiça vocês sonham?”.

Quais estratégias?

As possíveis atuações e estratégias para a defesa dos direitos humanos foram debatidas na última mesa do Seminário. Ione Nakamura, integrante do Ministério Público Estadual do Pará, reforçou que os direitos humanos devem ser entendidos em perspectiva inclusiva, e apresentou possibilidades de atuação estratégica em sua defesa, como a litigância internacional junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) – esfera supralegal de direitos internacionais da qual o Brasil é signatário –, as assessorias jurídicas dos movimentos e os programas de proteção aos defensores de direitos humanos.

Integrante do Ministério Público Federal em Santarém, Luis de Camões considerou que, via de regra, as decisões judiciais que aprofundam as desigualdades são fruto, muitas vezes, de um “abismo de conhecimento” que existe do Judiciário em relação a essas realidades. “Muitas vezes as pessoas envolvidas nos processos só tiveram acesso à realidade a partir de um papel. Ensino jurídico não só forma para litigar, como passa ao largo dessas discussões”, defendeu.

Na avaliação de Raione Lima, militante da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e estudante de Direito, construir unidade na luta, perpassando e aglutinando pautas específicas para o enfrentamento do inimigo, deve ser a estratégia central da defesa dos direitos humanos. Ela destacou que o contexto de golpe e de retrocessos de direitos é vivenciado pelos povos da Amazônia com mais intensidade, por envolver um modelo de desenvolvimento que não leva em consideração as vidas dos povos que a habitam. “Uma estratégia é mostrar que na Amazônia não existe só o ambientalismo verde, mas um meio ambiente formado também por trabalhadores e trabalhadoras com potencial de organização para defender o que é nosso”.

Outras ações consideradas importantes por Lima são a realização de protocolos de consulta, instrumentos jurídico-políticos que as comunidades podem utilizar para provar que são sujeitos de direitos de consultas relativas a transformações em seus territórios, e a ocupação dos bancos da universidade. “Não somos nós que devemos nos adequar a ela. Ela é quem tem que se adequar e nos receber”, completou.  


Ações: Democratização da Justiça

Eixos: Democratização da justica e garantia dos direitos humanos