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“Por que os quilombolas não estão, também, do outro lado da mesa dos tribunais?”


Em audiência que discutiu a forma de ingresso na magistratura brasileira,  advogada quilombola expõe pouca diversidade na ocupação de cargos de juízes.

Vercilene Dias é advogada popular e primeira quilombola mestra em Direito no Brasil / Foto: G. Dettmar/CNJ

A advogada popular e 1ª quilombola a ter um mestrado em Direito no Brasil, Vercilene Francisco Dias, questionou em audiência pública realizada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), nesta segunda-feira (10), o atual modelo de seleção de juízas e juízes. Representando a Articulação Justiça e Direitos Humanos (JusDh), a assessora jurídica da Terra de Direitos e da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) enfatizou a necessidade de maior representatividade da população negra nos cargos de carreiras do Sistema de Justiça, já que, representam a maior parcela da população brasileira.  

A audiência pública tinha o objetivo de reunir subsídios para repensar o modelo estabelecido para a seleção de magistrados na Resolução nº 75/2009 e foi estruturada em eixos: “Qual é o perfil do juiz que a sociedade quer e precisa? Qual é o juiz que os tribunais querem? Quais são as competências que devemos buscar?”.

Vercilene que era a única pessoa negra a fazer uma fala na audiência, iniciou seu discurso questionando o CNJ o “por que uma quilombola nunca pôde estar sentada do outro lado da mesa para discutir, com juízes e representantes das carreiras jurídicas, uma política de justiça mais adequada às demandas sociais que chegam até seus balcões?”. A advogada apresentou números do último Censo Sociodemográfico da magistratura lançado no fim do ano passado.

“Os tribunais brasileiros são majoritariamente compostos por pessoas brancas: cerca de 70% dos integrantes da carreira e 82% na Justiça Federal, ao passo que não representam sequer a metade da população brasileira no censo demográfico” destaca a Vercilene.

Ela ainda destacou que o judiciário brasileiro precisa de juízes com o perfil diverso, com formação em direitos humanos e  comprometidos com os interesses sociais.

“Precisamos de  magistradas e magistrados conscientes da existência de estruturas de poder que reproduzem violências fundadas sobre as diferenças de raça, gênero, sexualidade, classe e identidade étnico-cultural” enfatiza a advogada quilombola. O perfil dos magistrados foi objeto de pesquisa realizada pela JusDh em 2018.

“Por que uma quilombola nunca pôde estar sentada do outro lado da mesa para discutir, com juízes e representantes das carreiras jurídicas, uma política de justiça mais adequada às demandas sociais que chegam até seus balcões?"

A advogada, que tem recebido visibilidade  por ser a 1ª quilombola a ter o título de mestre em Direito no Brasil, trouxe aspectos importantes pela igualdade racial em seu discurso. Vercilene alegou que “o sistema de justiça está bastante distante de representar a diversidade da sociedade brasileira”.

“Eu sou a primeira mulher negra quilombola a conquistar um mestrado em direito no país e acredito que a primeira a falar sobre política de justiça em um espaço formal do sistema de justiça”, destacou. “Precisamos de   juízas e juízes que representem a diversidade étnica, de raça, de classe, de gênero, de território do nosso país”, complementou a advogada

Após seu discurso, o ministro que presidiu a audiência, Aloysio Corrêa da Veiga, relembrou a missão institucional do CNJ, e destacou que acima de tudo o órgão precisa estar aberto para escuta.

“Além da missão institucional de fiscalizar, o CNJ precisa criar e estabelecer políticas públicas de aprimoramento do Poder Judiciário. E para que nós possamos aprimorar o Poder Judiciário é necessário que a gente tenha como conteúdo, ouvir. Ouvir todos os segmentos da sociedade”, disse o ministro. “ A senhora, como primeira quilombola mestre em Direito, trouxe com brilho a sua participação a nossa consequência de poder ouvir a sociedade”, disse o ministro Aloysio, em manifestação após encerramento da fala da advogada

Judiciário com mulheres

A representatividade feminina também é uma preocupação debatida por expositoras presentes na audiência. A representante da Comissão de Mulheres da Associação de Juízes Federais (Ajufe Mulheres), a juíza Maria Cândida de Almeida ponderou que  quando as mulheres entram na magistratura dificilmente conseguem progredir nas carreiras. A juíza destacou que o processo democrático, estabelecido por lei no ingresso, deve garantir a presença equilibrada de homens e mulheres nos cargos mais altos do poder, participando assim do processo de tomada de decisões.

A juíza Maria Cândida de Almeida falou da dificuldade enfrentadas na carreira pelas mulheres. / Foto: G. Dettmar/CNJ

“A Declaração Universal dos Direitos Humanos já falava na igualdade de direitos entre homens e mulheres, igualmente o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de 1966, no Artigo 3º. Mas, todos esses mecanismos reconhecimento da participação feminina também tem que estar na tomada de decisões” [..] “A representatividade é uma questão de justiça, mas também é uma questão de democracia”, enfatiza.

Efetivação de políticas já existentes   

O desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), Luís Francisco Aguilar Cortez, reforçou a necessidade da efetivação de políticas públicas já existentes para tornar o judiciário um espaço mais plural e diverso, exemplificando a lei de cotas raciais nos concurso da magistratura.

Ele relatou que atualmente os tribunais não conseguem implementar a política de cotas raciais em todas as etapas do concurso. Segundo ele, é necessário uma prerrogativa mais explícita para que não existam brechas para subjetividade do concurso.

“Ao regulamentar a questão das cotas, no caso de pessoas com deficiência, todos que atingiram a nota mínima já passam para a fase seguinte. No caso das cotas de igualdade racial isso não está escrito e por isso o TJSP acabou ficando com medo de aplicar também ali os 20% e ter questionamentos que podem bloquear um concurso” destaca o desembargador.

Ainda segundo o desembargador, apenas o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul aplicou a medida efetivamente a reserva de vagas em todas as etapas do da seleção para ingresso na magistratura.  concurso.

Caminhos para mudança

Destaque na fala da advogada quilombola, é as provas meritocráticas atualmente aplicadas no processo seletivo são o principal ponto de questionamento. Em sua fala, ela sublinha que, atualmente, a seleção privilegia candidatos  que possuem maiores condições para se dedicaram aos cursos preparatórios. Para a advogada, é necessário pensar novos caminhos para além do concurso meritocrático. De acordo com Vercilene, a ideia associada à meritocracia presente no atual modelo de seleção é um fator excludente.

“Não é difícil perceber ou cogitar, por exemplo, que diferentes critérios vinculados à noção de mérito, fundados em valores como experiência socioeconômica, profissional e comunitária, tendem a produzir instituições de justiça mais permeáveis à diversidade de experiências sociais, étnicas e culturais da sociedade moderna, o que significaria um aprofundamento democrático da qualidade técnica da prestação jurisdicional” destaca a advogada quilombola.

A audiência realizada pelo CNJ é a segunda na história do Conselho e é acompanhada por uma comissão especial formada para as alterações na resolução que rege os concursos para magistratura.

*Sob supervisão de Lizely Borges



Ações: Democratização da Justiça

Eixos: Democratização da justica e garantia dos direitos humanos