Notícias / Notícias



REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA - Comunidade de carrinheiros no Boqueirão luta para não ser despejada de barracão em Curitiba


Assim como a incrível casa de Ivan, a Sociedade Barracão é um modelo único em Curitiba. Trata-se de uma favela exclusiva de carrinheiros instalada dentro de uma antiga fábrica invadida - a Tecnicom Máquinas e Peças Industriais, cuja falência foi decretada em 1997, dando início, por linhas tortas, à história da comunidade. Não há nada igual nas 258 ocupações irregulares registradas pela prefeitura, mas ninguém consegue contar muito bem como tudo começou. Sabe-se apenas que dois anos depois de a empresa baixar as portas chegou o "Nego", que vendeu um puxadinho para o Sadi. A Eledir veio em seguida - e assim foi, até completar a lotação de hoje: 32 famílias, 150 moradores - 60 deles crianças e adolescentes -, todos espremidos em 1,7 mil metros quadrados, entre 5 mil quilos de lixo recolhido por semana, um Chevette avariado, um Corcel preto e uma sucursal da Igreja do Nazareno. Sem estrutura Apesar da curiosidade que moradias como a de Ivan provocam, a vida na Sociedade Barracão não é nada engraçada. Água e luz são clandestinas. Com muita sorte alguém ganha mais de um salário mínimo catando papel, o que exclui 100% dos condôminos de se alistarem na fila da Cohab, que exige três salários para se candidatar a um teto financiado. Além do mais, há 40 mil pessoas na fila. Sair do Boqueirão é ficar em companhia do sereno. Não é tudo. Como faz pouco tempo que o grupo decidiu se organizar como cooperativa - com a ajuda de três ONGs, a Terra de Direitos, Instituto Lixo e Cidadania e o Centro de Formação Irmã Araújo (Cefúria) - os detritos trazidos para dentro do terreno ainda são um problema de saúde pública. Cada catador acumula o material recolhido na frente de sua casa, dando aquele aspecto de "final dos tempos" ao local. Baratas e moscas de montão fazem parte do cotidiano; ataques de ratos já foram registrados. "Era do tamanho de um gato", garante a moradora Maria Gorete Narciso, 44 anos, cinco de Barracão. Mas os ratos não metem medo nos carrinheiros. Há pouco mais de um ano, a turma do Barracão deu de ter pavor é de homens de terno e de policiais militares. Arrisca um deles ser o portador da ordem de reintegração de posse dada pela juíza Carmen Lúcia Azevedo e Mello, da 6.ª Vara Cível, há pouco mais de um ano. O despejo é dado como certo. "Fico pensando que eles podem chegar a qualquer momento e que vou dormir na rua. Isso nunca me aconteceu", diz Francisco Torres, 55 anos, dono do menor barraco da área, um 2 X 4 metros erguido em 2004, depois que, sem emprego e desiludido com a família, deixou a cidade de Capitão Leônidas Marques, no Oeste do estado, e foi acolhido pela turma da sociedade, de onde não planeja arredar o pé. O sentimento de Francisco é comum a todos e aumenta à medida em que os casais têm filhos para criar. As crianças e a atividade carrinheira justificam a decisão dos moradores em permanecer no Barracão. O terreno, se urbanizado pela Cohab, não comportaria mais do que uma minúscula casa de 20 metros quadrados para cada família, mas é uma ilha cercada de benefícios por todos os lados. Há duas escolas públicas, uma creche, uma unidade de saúde - a da Vila São Paulo - e outra 24 horas, tudo perto. Por ali também passam as linhas de ônibus Iguape 2, Inter 3 e Canal Belém. E como há outros barracões linhas de ônibus Iguape 2, Inter 3 e Canal Belém. E como há outros barracões de empresas na vizinhança, o repasse de papel para reciclagem não deixa ninguém no prejuízo. Há quem tenha, inclusive, se especializado na arte da coleta, como o ex-mecânico Clóvis Rarafigo, que circula pelo Boqueirão e Hauer com uma moto-carrinho, feita por ele. O veículo lhe custa R$ 4 de gasolina por dia, além de economia de força física. "É a nossa profissão. A gente vive disso. Ando para caramba", diz Eledir Rodrigues, 40, no que é apoiada por Pâmela, Arlen, Dilce e Santina, companheiras de lida. Disso ninguém discorda. Tanto que a função social que o barracão desempenha para as 32 famílias acabou colocando a ordem de despejo no ponto-morto. Mas nem por isso deixa a situação mais confortável para os moradores. "A ordem está dada e nada impede que o despejo seja cumprido amanhã", pontua o assessor jurídico da Terra de Direitos, Vinícius Gessolo de Oliveira. O advogado identifica um rosário de equívocos no caso e elabora uma defesa judicial para revogar a liminar. Segundo ele, no momento da invasão o terreno não cumpria sua função social havia dois anos, ferindo os princípios do Estatuto da Cidade e do Plano Diretor de Curitiba. E os proprietários não requisitaram posse no prazo previsto pelo Código de Processo Civil. "O Poder Judiciário tem de entender que não se trata de reintegração. Por essa lógica, 30% de Curitiba teria de ser removida para outro lugar. Estão fazendo da questão um debate sobre limpeza do terreno, por causa do lixo. Mas a discussão é sobre o direito à habitação e de quanto vai custar para o município levar essas pessoas para um lugar ainda não urbanizado. Por que valorizar tanto esse terreno? As pessoas ali se organizaram e deram uso digno a ele", argumenta. O escritório Passos Advogados Associados - que representa a massa falida dos credores da Tecnicom, incluindo a prefeitura, para a qual deve cerca de R$ 60 mil em IPTU - espera que o município faça sua parte e leve os carrinheiros para outro terreno. Se a área de 14 por 37 metros for vendida por R$ 300 mil, seu valor aproximado, nem assim as dívidas serão cobertas. "O oficial deixou de cumprir a reintegração de posse porque não havia como retirar tantas pessoas. Precisaria de ajuda policial. Sabemos que há um problema social. Estamos de mãos atadas", diz Antônio José Carneiro, da Passos. A Cohab dá sua palavra de que não vai se omitir no amparo das famílias quando a reapropriação for cumprida, mas avisa que seu poder de fogo é limitado. "Não temos obrigação de oferecer terra a cada vez que uma área privada é invadida", explica João Elias de Oliveira, diretor-administrativo da Cohab. Hoje, um lote padrão de 126 metros quadrados custa de R$ 7 mil a R$ 10 mil para ser urbanizado e, lembra João, a PMC está atolada de problemas fundiários nas ocupações irregulares. A favela box do barracão é um deles - deduz-se. E também o mais original. HABITAÇÃO-Terceiro setor adota Sociedade Barracão e ajuda moradores a administrar lixo Para ongs, comunidade é sonho possível A Sociedade Barracão - formada por 32 famílias de carrinheiros no bairro boqueirão, em curitiba, caiu na rede. Explique-se. Uma das regras que regem o mundo das ONGs é fazer ações integradas, criando fóruns, jornadas e movimentos, na base do um por todos e todos por um. A área de ocupação irregular do Boqueirão está entre as que ganhou uma verdadeira força-tarefa para ajudá-la a chegar a um final feliz. Além do Instituto Lixo e Cidadania, da Terra de Direitos e do Centro de Formação Irmã Araújo (Cefúria), o local tem ganhado uma forcinha do Despejos Zero, selo sob o qual se abrigam, há pouco mais de meio ano, movimentos sociais voltados para o direito à habitação - algo perto de 40 grupos, entre conselhos, centros, comissões, associações e institutos. Uma verdadeira cruzada. Fazem parte dela membros do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da Universidade Federal do Paraná (UFPR), que adotaram a Sociedade Barracão como uma divisa a ser defendida. A reportagem conversou com Bernardo Paim, 21 anos; Rafaela Flach, 18 (ambos estudantes de Engenharia Ambiental); Thiago Bagatin, 23, aluno de Psicologia; e Rodrigo Ponce, 26, da Filosofia e participante do movimento Centro de Mídia Independente. Além do caso Barracão, o grupo acompanha a reintegração de posse da Vila União, em Almirante Tamandaré, invasão em área de manancial já com ordem de despejo; e 30 famílias do Bairro Novo já devidamente devolvidas à condição de sem-teto. O que os militantes fazem? "Pressão", respondem, deixando claro que a primeira medida revolucionária é manter o problema da habitação em pauta, como cabe a qualquer membro da rede Despejos Zero. "Oficinar" também é preciso. A moçada da UFPR vai a campo e promove workshops esporádicos com moradores de ocupação, de modo que está afiadíssima no assunto. Causa impressão. Conhecido, falado e mal-falado, o problema da moradia - indicam - faz parte da cota de invisibilidade de Curitiba, já que o assunto comumente é tratado com frieza. A depender desses entusiastas da função social da terra, a temperatura deve subir. Uma visita à Sociedade Barracão dá a medida do trabalho que agregados como o DCE-UFPR estão fazendo. Eles estão se misturando e descobrindo que a comunidade carrinheira extrapola a imagem da carrocinha com tração humana forrada por uma montanha de papel. Lá encontram gente como Arlen Veloso, 34 anos. Ela calcula andar até 60 quilômetros por dia desde que trocou Almirante Tamandaré pelo Boqueirão. "É sacrificado, mas aqui tem creche para meus filhos", diz. Ou ativistas como Waldomiro Ferreira da Luz, 44 anos, papeleiro, membro do Instituto Lixo e Cidadania - um sujeito que se abala do Bairro Novo para ter com o pessoal do Barracão. Tem motivos. Nos últimos três meses, Dori Tucunduva, do Cefúria, dá dicas sobre a separação do lixo e, de carona, põe na roda a proposta de criar uma cooperativa. Carlos Alencastro Cavalcanti, do Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis, faz dueto com Dori na gestão do lixo. "No começo, havia resistência. O trabalho tem de ser coletivo, mas precisa ser adotado por todo mundo. É um processo lento", diz Carlos. Para Dori, o mais importante já existe - a vontade de criar uma comunidade de catadores de papel, capaz de se autogerir e não depender da política predatória dos grandes depósitos. Alguns atravessadores cobram o olho na cara dos carrinheiros - que recebem R$ 0,20 por quilo de papel e muitas vezes pagam aluguel de carrinho por dia não trabalhado. "Toda nossa ação passa pelo resgate da auto-estima. Os papeleiros precisam saber seu valor, que fazem uma ação ecológica e prestam um serviço à cidade. O resto vem por acréscimo", acrescenta a representante do Cefúria. José Carlos Fernandes Autor/Fonte: Gazeta do Povo



Ações: Direito à Cidade
Casos Emblemáticos: Sociedade Barracão
Eixos: Terra, território e justiça espacial