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Vidas negras importam? As mulheres negras e o desmonte do SUS

20/07/2018 Mariana Santos Witkowski e Gabriela Martins

Esse material faz parte do Especial Julho das Pretas: mulheres negras movem a Terra

Segundo o artigo 196 da Constituição Federal de 1988, a saúde é direito de todos e dever do Estado, e deve ser garantida mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Porém, com medidas de austeridades que foram implantadas com o golpe institucional orquestrado no Brasil a partir de 2016, o desmonte do Sistema Único de Saúde já é uma realidade. Um dos grandes indicativos é a promulgação da Emenda Constitucional 95, que estabeleceu o congelamento dos investimentos públicos para os próximos 20 anos e isenta o Estado do compromisso em superar as desigualdades sociais.

Para pensarmos os efeitos desta medida na vida da população negra, precisamos entender que esta população é  a que mais sofre com a desigualdade e a pobreza no país. Segundo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) três em cada quatro pessoas negras estão no grupo dos 10% mais pobres do Brasil.

Tais indicativos são resultados de um processo de colonização baseado na exploração e desumanização, principalmente contra pessoas negras e indígenas.

Impactadas

 Segundo Maurício Barreto, professor aposentado do ISC/UFBA e pesquisador sênior do Centro de Pesquisas Gonçalo Moniz (CPqGM/Fiocruz/BA), é necessário entender que “[…] nos últimos 20 anos houve uma redução dos efeitos perversos da pobreza sobre a saúde, então são importantes os programas, ações e planos de governo que fizeram com que reduzisse a pobreza absoluta no Brasil e os efeitos perversos da pobreza”.

No entanto, o aprofundamento da crise em razão da política econômica adotada pelo governo ilegítimo retrocede em importantes avanços históricos. Após sair do Mapa da Fome em 2014, o Brasil pode retornar ao mapa em 2018. Cerca de 50 milhões de brasileiros, o equivalente a 25,4% da população, vivem na linha de pobreza e têm renda familiar equivalente a R$ 387,07.

Entre os cortes realizados pelo governo está o Programa Farmácia Popular, essencial a saúde e tratamento da população de baixa renda brasileira. Desde o início da implantação da Emenda Constitucional 95 o programa sofreu 17% de cortes, com a diminuição brutal no número de municípios atendidos – de mais de 400 em 2016 para 117 em 2017. Além disso, 340 farmácias populares foram fechadas pela portaria nº 1.630, que entrou em vigor em junho de 2017.

O retrocesso à pobreza absoluta e a falta de acesso aos equipamentos de saúde afeta diretamente a vida da população negra, e consequentemente, das mulheres negras brasileiras, considerando que este grupo representa quase 70% dos/as usuários/as do Sistema Único de Saúde (SUS).

Segundo Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), a população que mais utiliza o SUS possui renda entre um quarto e meio salário mínimo, dado que evidencia que a população de mais baixa renda e a população negra são, de fato, dependentes do Sistema Único de Saúde. Por outro lado, apenas 17,2% da população negra tem acesso a planos de saúde privado, demonstrando, mais uma vez, a desigualdade em relação ao acesso à saúde privada no país.

Por ser a principal fonte de acesso a saúde de mulheres negras no Brasil, o desmonte do SUS interfere diretamente em nossa sobrevivência, principalmente por entendermos que o acesso a este direito ainda é desigual devido ao racismo institucional. Segundo o artigo de Maria do Carmo Leal, Silvana Granado Nogueira da Gama e Cynthia Braga da Cunha, da Escola de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz, as mulheres negras são as que mais sofrem pela falta de acolhimento nas unidades de saúde, constatando que um terço das mulheres negras gestantes não conseguiu atendimento na primeira tentativa, e quando atendida, recebeu menos anestesia do que mulheres brancas. O artigo também demonstra que as mulheres negras também estão mais sujeitas a mortalidade materna, realizaram menos consultas de pré-natal e estão mais expostas à gravidez precoce.

Mais vulneráveis

Outras pesquisas também demonstram a vulnerabilidade das mulheres negras em relação a morte materna decorrente de causas evitáveis, como infecções, hemorragia e hipertensão. Segundo dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), do total de 1.583 mortes maternas em 2012, 60% eram de mulheres negras e 34% de brancas (MS/SVS/CGIAE).

 Em exames preventivos, por exemplo, a Pesquisa Nacional de Saúde de 2013 estimou que 60% das mulheres brasileiras, de 50 a 69 anos de idade, realizaram exame de mamografia nos últimos dois anos anteriores à pesquisa. Porém, os exames de prevenção ao câncer de mama tiveram uma taxa significativamente inferiores ao se tratar de mulheres negras e sem acesso ao ensino básico, por exemplo. “[...] . Esse cuidado com a saúde foi mais observado entre as mulheres brancas (66,2%) e com ensino superior completo (80,9%). As menores proporções foram observadas entre as mulheres pretas (54,2%), pardas (52,9%) e sem instrução ou com ensino fundamental incompleto (50,9%).

Após muitos debates e enfrentamentos, o movimento negro brasileiro conquistou junto ao Ministério da Saúde, em 2009, a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da População Negra, que considera as desigualdades étnico-raciais e o racismo institucional como fatores determinantes na vulnerabilidade dessa população e disparidade das condições e acesso à saúde. Desproporções que afetam negativamente os indicadores supracitados e comprometem a participação da população negra no SUS, especialmente das mulheres negras, geralmente com tripla ou quádrupla jornada de trabalho e atendimento inadequado às suas especificidades.

A Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da População Negra, sofre grande ameaça com o desmonte do Sistema Único de Saúde, através da Emenda Constitucional 95. A vida da população negra e pobre está em risco, as vidas das mulheres, sobretudo as negras, de LGBTI, as vidas das juventudes que sonham e querem viver, estão todas em risco, sob tutela do governo federal que lida com descaso com os direitos sociais básicos e fundamentais, já garantidos pela Constituição Federal.

Resistência

Na tentativa de barrar e denunciar a onda de retrocessos imposta de cima para baixo, um levante de mais de 100 organizações da sociedade civil reunidas na Coalizão Anti-austeridade e pela Revogação da Emenda Constitucional 95 articulou a criação da campanha Direitos Valem Mais, Não Aos Cortes Sociais.

A iniciativa tem como ponto central a revogação da Emenda Constitucional 95 e a defesa e promoção dos direitos humanos no Brasil, denunciando os efeitos dos cortes sociais a população brasileira. Propõe-se debates amplos com a sociedade em busca da revogação da EC e pelo fim da política econômica de austeridade.

Conheça a campanha em www.direitosvalemmais.org.br.

*Mariana Santos Witkowski é cientista social e compõe o Coletivo Nacional de Juventude Negra – Enegrecer. Na Terra de Direitos, integra a equipe Administrativo-Financeira.

Gabriela Martins é filiada à Rede Mulheres Negras do Paraná, Conselheira Municipal dos Direitos da Mulher – Curitiba e integrante da Rede Feminista de Saúde.



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Eixos: Política e cultura dos direitos humanos