ACP do milho Liberty Link: um passo em direção à soberania alimentar
Terra de Direitos
Decisão parcialmente favorável do TRF4 dá impulso à fiscalização das sementes transgênicas e das ações da CTNBio. Advogados que acompanharam a Ação Civil Pública pela Terra de Direitos analisam o caso
“Dezesseis anos depois da liberação da soja transgênica, a pergunta continua a mesma: por que não realizar estudos?”. O questionamento da conselheira da Terra de Direitos, Maria Rita Reis, é apenas um exemplo da preocupação de pesquisadores e da sociedade civil com os impactos ambientais e sociais da liberação dos alimentos transgênicos. A disseminação das sementes geneticamente modificadas ocupa importante espaço no debate sobre a soberania alimentar e a proteção do meio ambiente no país.
Por isso, em 2007, a Terra de Direitos, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), a Associação Nacional de Pequenos Agricultores e a AS-PTA ajuizaram uma Ação Civil Pública (ACP) que questiona os critérios utilizados pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) para a liberação do milho Liberty Link, da empresa transnacional Bayer. Essa foi a primeira aprovação de comercialização de uma variedade de milhogeneticamente modificado (OGM) analisada pela CTNBio, instância federal colegiada multidisciplinar de caráter consultivo e deliberativo para o estabelecimento de normas técnicas de segurança e de pareceres técnicos referentes à autorização para atividades que envolvam pesquisa e uso comercial de OGM e seus derivados, com base na avaliação de seu risco zoofitossanitário, à saúde humana e ao meio ambiente
A ACP aponta as falhas na avaliação da CTNBio que decidiu pela liberação do milho transgênico. Os estudos não identificam satisfatoriamente os impactos de sua utilização nos diferentes biomas brasileiros e a alergenicidade (possibilidade de causar alergias) do milho, entre outros muitos pontos. “É preciso questionar a eficiência dos estudos que foram apresentados nas regiões que tiveram a liberação do milho transgênico. Tais estudos garantem padrões de segurança ambiental e efetividade da proteção à saúde humana? Essa é a pergunta chave desse processo”, aponta a advogada Katya Isaguirre, que atuou no caso pela Terra de Direitos.
O caminho percorrido pela ACP
A ação já passou por três julgamentos desde 2007. No primeiro deles, a ACP do milho Liberty Link (ACP 5000629-66.2012.404.7000) foi considerada parcialmente procedente pelo juizo de primeiro grau (instância em que o processo é julgado por apenas um juiz). No segundo, os desembargadores do TRF4 decidiram que a ACP era totalmente improcedente, mas sem unanimidade. Com a recorrência aos embargos infringentes (recurso disponível quando os votos dos desembargadores não são unânimes), o terceiro julgamento foi o que apresentou a resposta mais satisfatória aos questionamentos da ação. Neste caso, além de barrar a comercialização do milho Liberty Link nas regiões Norte e Nordeste do país, reconheceu expressamente o desrespeito ao artigo 14 da Lei de Biossegurança e ao princípio da precaução (artigo 225, §1º da CF) que prevê estudos mínimos de impacto dos OGMs na natureza e saúde humana).
O voto do Desembargador relator Cândido Alfredo Silva Leal Júnior no terceiro julgo da ACP, além de considerar o histórico do desenvolvimento cultural do milho (cultivado e transformado há milênios pelas antigas civilizações), expõe a necessidade de maior rigidez nos estudos para a liberação do milho Liberty Link no país. “Este é o primeiro motivo para não aceitar estudos parciais para liberação total: se o país é grande e queremos liberar o milho comercialmente em todo o país, devem ser contemplados nos estudos todos os biomas brasileiros. Se os estudos forem parciais, a liberação também deve ser parcial”, mencionou o desembargador.
A postura de Cândido Alfredo frente à CTNBio representa um grande passo no combate aos abusos cometidos pelas multinacionais fabricantes de sementes transgênicas. No entanto, um ponto não abordado pelo voto é a qualidade das análises realizadas em regiões em que o milho continua liberado. André Dallagnol, assessor jurídico popular da Terra de Direitos que acompanha a ACP, ressalta que não foram realizados estudos de impacto ambiental e na saúde da população nas regiões em que o milho Liberty Link foi liberado. “Os estudos realizados nas demais regiões do país não são completos”, salienta.
André se refere às pesquisas realizadas nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste que dão atenção exclusiva à produtividade e à eficiência agronômica do milho Liberty Link, deixando de analisar os impactos sociais e ambientais da utilização da semente. “A legislação impõe controles que não estão restritos à avaliação de produtividade. Há muitas questões que precisam ser repensadas, por exemplo, a exigência de estudos de impacto ambiental para o caso de plantio de transgênicos, a revisão das normativas de distanciamento etc”, aponta Katya Isaguirre
O que a lei exige
A comercialização do milho Liberty Link, da maneira como foi feita pela CTNBio, fere diversos marcos legais do Brasil, que existem graças a exaustivos debates e estudos sobre a promoção da soberania alimentar. Dentre as legislações desrespeitadas está a Constituição Federal de 1988, a Lei Nacional de Biossegurança (Lei 11.105/05), a Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/81) e o Protocolo de Cartagena. “Os critérios para garantir maior segurança, não só em relação ao Milho, mas a todos os OGM's que são submetidos à CTNBio, estão na Lei e são o principal objetivo da ACP”, pontua André Dallagnol.
A Constituição Federal de 1988 garante o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e impõe ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo. Para Katya Isaguirre, este direito constitucional corre riscos. “A questão, assim, está diretamente inserida no debate do atual modelo de produção agroalimentar que vem apresentando limites de insustentabilidade”, aponta.
Já o artigo 14 da Lei Nacional de Biossegurança determina à CTNBio uma série de obrigações, dentre elas a de “estabelecer, no âmbito de suas competências, critérios de avaliação e monitoramento de risco de OGM (organismos geneticamente modificados) e seus derivados”, regra que, no caso da liberação do milho Liberty Link, foi desrespeitada. “Essa “ausência” de estudos em todas as regiões do Brasil, conforme expressou o relator no voto, é por si só suficiente para demonstrar que os procedimentos de avaliação de risco precisam ser repensados a fim de que a CTNBIO garanta à sociedade o que, de fato, justifica sua própria criação: a de ser uma comissão técnica responsável pela biossegurança no país”, argumenta a advogada.
Outro importante documento desrespeitado pela CTNBio é o Protocolo de Cartagena, que estabelece um patamar mínimo de análise de risco. Maria Rita Reis, que esteve à frente do caso na época do ajuizamento da ACP, questiona, também, a postura das transnacionais, que realizam estudos prévios à liberação comercial sobre a eficiência agronômica da semente, mas se negam constantemente a realizar estudos de impacto ambiental. “Essa postura, além de desrespeitar a legislação brasileira e internacional, autoriza a sociedade a colocar em dúvida a posição dos que defendem a segurança dos transgênicos”, aponta.
A ACP, os transgênicos e a soberania alimentar
Para Maria Rita Reis, o atual cenário institucional ligado à comercialização dos alimentos transgênicos é mais preocupante que o de 2007, ano do ajuizamento da ACP do Milho Liberty Link. Os ministérios que representam os interesses dos camponeses, do meio ambiente e da saúde, tiveram seu papel enfraquecido, segundo a advogada. Em contrapartida, Maria Rita aponta que a sociedade está mais atenta ao tema. “Vozes anteriormente favoráveis aos transgênicos têm revisto sua posição, ainda que esse fato seja pouco divulgado. Há uma percepção crescente, por parte da sociedade, de que o modelo agrícola do agronegócio é um problema”.
A produção agroecológica tem sido cada vez mais debatida e positivamente avaliada. Aos poucos, deixa de ser considerada periférica e se coloca no lugar de estratégia produtiva institucionalizada. Para Katya Isaguirre, a aprovação do Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Planapo) indica que o Estado reconhece caminhos para outro modelo de alimentação saudável e adequado. “As diferentes experiências de produção orgânica e agroecológica no país e no mundo demonstram que esse modelo é viável”, explica.
No percurso que leva à soberania alimentar, a vitória da ACP do milho Liberty Link é um importante passo. O constante desrespeito ao princípio de precaução (segurança de que o impacto da comercialização das sementes não causará prejuízos ao meio ambiente e à saúde humana) aponta o quão insustentável é o uso de OGM. “O que precisa ser analisado é que, sem patamares seguros para a saúde humana e a biodiversidade, não existem condições de coexistência”, aponta Katya.
Ações: Biodiversidade e Soberania Alimentar
Eixos: Biodiversidade e soberania alimentar