A auto-definição como direito indígena
Terra de Direitos
A decisão em primeira instância da Justiça Federal do Pará, que declarou inexistente a Terra Indígena Maró, no Oeste do Pará, é exemplo da falta de conhecimento histórico e cultural de autoridades do nosso país. Na última quarta-feira, o juiz Airton Portela determinou que o relatório produzido pela Fundação Nacional do Índio (Funai), que identifica e delimita a área de 42 mil hectares onde vivem indígenas das etnias Borari e Arapium, não tem qualquer validade jurídica.
Em resposta a isso, Tatiane Braga Ferreira, mestre em Agriculturas Familiares e Desenvolvimento Sustentável, pela Universidade Federal do Pará, disponibilizou parte de sua dissertação, "Manejo, gestão de recursos naturais e luta pela terra pelos Borari de Novo Lugar - TI Maró, Santarém, Pará", que exemplifica a falta de coerência na decisão da Justiça Federal. Leia:
Identidade Indígena Borari - Arapium
Por Tatiane Braga Ferreira
A auto-identificação indígena para os Borari-Arapium é uma estratégia, não somente de resgate de parte da cultura considerada perdida, mas prioritariamente, de defesa dos direitos constitucionais, como o direito à terra e a seus recursos naturais, bem como o direito de viver do modo como sempre viveram, já que a ocupação de seu território segue orientações cosmológicas e mitológicas que ordenam os espaços na aldeia e seus arredores, assim como a utilização dos recursos naturais daquela área de acordo com seus conhecimentos tradicionais e seus padrões de utilização, manejo e gestão dos recursos naturais, evidenciando sua ancestralidade e identidade indígena. O que os Borari-Arapium fizeram foi buscar, através da legislação nacional e daquelas ratificadas pelo Brasil, assim como através dos órgãos competentes, a garantia destes direitos, revelando as razões pelas quais entendiam serem os donos daquela terra, pois pertencem aos povos Borari e Arapium e aquelas terras foram primeiramente ocupadas por seus antepassados.
Neste sentido, Viveiros de Castro [i] argumenta que “[...] índio não é uma questão de cocar de pena, urucum e arco e flecha, algo de aparente e evidente nesse sentido estereotificante, mas sim uma questão de “estado de espírito”. Um modo de ser e não um modo de aparecer”. Para Viveiros de Castro, os povos indígenas mantinham suas identidades submersas por muitas razões: porque tinham sido ensinadas a não dizer mais que eram indígenas, ou ensinadas a dizer que não eram mais indígenas; porque tinham sido colocadas em um liquidificador político-religioso, um moedor cultural que misturara etnias, línguas, povos, regiões e religiões, para produzir uma massa homogênea capaz de servir de “população”, isto é, de sujeitos (no sentido de súdito) do Estado.
A luta pela terra protagonizada pelos Borari-Arapium está distante de ser apenas por espaço territorial. Essa luta deve ser entendida como a busca pela sobrevivência e manutenção de um território que abrange a articulação entre as dimensões sociais, políticas, culturais e a natureza. Pois, enquanto esta última oferece materiais (recursos naturais), que regulam o modo de viver dos Borari-Arapium, as dimensões sociais e políticas estabelecem a forma como esses materiais são utilizados, manejados e geridos, e a dimensão cultural expressa a cosmologia de como o território e seus recursos naturais são apropriados e explorados pelos indígenas.
A entrada de empresas madeireiras na região, onde se localiza a TI Maró, representa um exemplo da dimensão social do conflito por terra, pois enquanto os Borari-Arapium reivindicam o controle sobre suas terras, os empresários estão interessados em explorar os recursos madeireiros existentes na mesma. Foi diante desse cenário que os Borari-Arapium iniciaram sua luta pelo direito à terra que tradicionalmente ocupam e pelo controle dos recursos naturais, direitos estes de garantia do território, para além da posse da terra e da proteção dos recursos naturais. É neste sentido que as situações de conflito ora vivida pelos Borari-Arapium propiciaram um contexto no qual estes grupos indígenas estruturam um discurso identitário, com base na demarcação de fronteiras étnicas, se diferenciando dos demais grupos envolvidos na luta pela regularização fundiária na Gleba Nova Olinda.
Desse modo, os Borari-Arapium passaram a reivindicar formalmente seu território, organizando-se e articulando-se local e sistematicamente, para a mobilização de mecanismos, a partir da auto-identificação indígena e dos processos inerentes junto aos órgãos competentes: Ministério Público Federal (MPF) e Fundação Nacional do Índio (FUNAI), a fim de combater o processo de usurpação de seu território e dos recursos naturais nele existentes. As aldeias Novo Lugar, Cachoeira do Maró e São José III, que constituem a TI Maró fazem parte do movimento de ressurgimento de identidades étnicas indígenas que vem se delineando na Amazônia. Iniciado em meados da década de 1990, tal movimento reúne diversas comunidades do Baixo Rio Tapajós e Rio Arapiuns que afirmam sua ancestralidade indígena [ii][iii])[iv].
Os Borari-Arapium expuseram em seus documentos aos órgãos competentes os problemas que os afetavam e as demandas por direitos específicos assumidos a partir da afirmação pública da identidade étnica, direitos estes reconhecidos pela Constituição Federal de 1988. É neste sentido que me reporto a Almeida (2008)[v], ao salientar que o fator identitário leva as pessoas a se agruparem sob uma coletividade expressando e declarando seu pertencimento a um povo ou um grupo a fim de encaminharem demandas e reivindicações ao governo para o reconhecimento de suas formas intrínsecas de acesso à terra e outros direitos.
Vale ressaltar, aqui, o critério da auto-identificação como identificador dos grupos sociais, aos quais se aplica a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT (Art. 1º, 2), ratificada pelo Governo Brasileiro, em 2002, representa uma inversão de papéis entre o “sujeito de direito” e o “aplicador do direito”. O disposto no item 2 do art. 1º da Convenção 169 da OIT preceitua que: “A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser tida como critério fundamental para determinar os grupos aos quais se aplicam as disposições desta Convenção”.
A Convenção 169 da OIT não define quem são os povos indígenas ou tribais, mas estabelece o critério da auto-definição como instrumento para que os próprios sujeitos de direito se identifiquem. Portanto, não cabe a um Juiz decidir quem é ou não indígena!
Outro dispositivo de grande importância na Convenção 169 da OIT, em especial ao caso concreto da TI Maró, é o que dispõe o item I do art. 7º: “Os povos indígenas e tribais deverão ter o direito de decidir suas próprias prioridades no que se refere ao processo de desenvolvimento na medida em que afete suas vidas, crenças, instituições e bem-estar espiritual, e às terras que ocupam ou utilizam de alguma forma, e de controlar, na medida do possível, seu próprio desenvolvimento econômico, social e cultural” (CONVENÇÃO 169 da OIT).
O texto da Convenção, além de basear-se na auto-definição dos sujeitos sociais, reconhece explicitamente a usurpação de terras. Diante do exposto no item I do art. 7º da Convenção 169 da OIT, observamos que a extração de madeira na Gleba Nova Olinda contradiz a referida Convenção, seus argumentos ignoram ou desconhecem a Constituição Federal Brasileira e a Convenção 169 da OIT, que tratam do assunto.
[ii] SANTOS, I. M. C. dos. Pueblos indígenas del Bajo Rio Tapajós, rostros contemporâneos de Brasil. 2005. 150f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais). Quito: Faculd Latinoamericana de Ciencias Sociales, 2005.
[iv] VAZ FILHO, F. A. Povos indígenas e etnogêneses na Amazônia. In: LUCIANO, G. dos S.; OLIVEIRA, J. C.; HOFFMANN, M. B. (Orgs.). Olhares indígenas contemporâneos. Brasília, CINEP, 2010a. p. 104-159
Ações: Conflitos Fundiários,Defensores e Defensoras de Direitos Humanos
Casos Emblemáticos: Terra Indígena Maró
Eixos: Terra, território e justiça espacial
Tags: Indígena,Maró,Terra,direito indígena