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Direito quilombola em pauta: racismo, sociedade e o papel do STF


Por Fernando Prioste e Pedro Martins, advogados populares da Terra de Direitos

Está na pauta do Supremo Tribunal Federal a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3239, que julgará a constitucionalidade do Decreto Federal 4887/03. O decreto, que regulamenta a ação do Estado para a titulação dos territórios quilombolas, deve ter sua validade julgada nesta quinta-feira (19), com a retomada do voto da Ministra Rosa Weber.

O julgamento teve início em 2012, mas foi interrompido com o pedido de vistas dos autos pela Ministra. A solicitação se deu após o voto do relator, o hoje aposentado Ministro Cesar Peluso.

A ADI 3239, ajuizada pelo antigo Partido da Frente Liberal-PFL (atual Democratas-DEM) em 2004, é uma real ameaça aos direitos das comunidades quilombolas, bem como aos direitos étnicos como um todo.

Os fundamentos utilizados na ADI pelo DEM abrangem aspectos jurídicos formais, materiais e políticos. Para os autores da ação, o decreto violaria a autonomia normativa ao prever a possibilidade de desapropriações para realização das titulações, possuindo assim conteúdo que seria reservado à lei. Ademais, argúem que o critério da autodefinição de identidade, direito garantido na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), não poderia ser utilizado, pois não haveria previsão legal para tal preceito.

De outro lado, as comunidades quilombolas sustentam que, passado mais de um quarto de século da promulgação da Constituição, esta não pode ter dispositivos inaplicados por ausência injustificada de lei complementar. Ao mesmo tempo, esses povos também argumentam que o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição tem aplicabilidade imediata por ser norma com natureza de direitos fundamental.

Para as comunidades quilombolas o critério da autodefinição, que já é utilizado para indígenas e comunidades tradicionais, é o principal, mas não único, elemento de identificação de uma identidade étnica, conforme disposto na Convenção 169 da OIT.

É necessário frisar que o julgamento envolve muito mais do que um debate técnico e asséptico sobre a exigência de lei complementar. Está em jogo, também, a interpretação histórica da escravidão no Brasil, seus efeitos atuais e o papel que o Estado deve desempenhar, incluindo aí o Supremo Tribunal Federal, para superar o racismo entranhado na sociedade e no Estado brasileiro.

Racismo e opressão
A abolição formal e inconclusa advinda com a Lei Áurea, pelo contexto e forma com que se deu, não teve como objetivo enfrentar os efeitos nefastos de uma sociedade que se construiu com base em quase quatro séculos de escravidão negra.

Após 1888 o Estado brasileiro, última nação americana a abolir oficialmente o regime da escravidão, optou por políticas que reforçaram a opressão física, social, política, cultural e econômica da população negra. A política de Estado para o “branqueamento” da população brasileira, baseada na ideia racista da superioridade branca, pressupunha que o desenvolvimento da nação se daria à medida que a população se tornasse branca.

Expoentes da intelectualidade como o abolicionista Joaquim Nabuco, o escritor Euclides da Cunha, o jurista Clóvis Bevilácqua, entre outros, contribuíram para disseminar essa ideologia racista na mentalidade nacional.

Houve desdobramentos jurídicos dessa política, como o Decreto nº 528, de 28 de junho de 1890. O Decreto condicionava a entrada de imigrantes asiáticos e africanos no Brasil à autorização especial do Congresso Nacional, ao mesmo em que era permitida a livre entrada de outras etnias, principalmente as de origem europeia. O Decreto-Lei nº 7.967/1945, revogado apenas em 1980, dispunha que a política de imigração deveria atender “a necessidade de preservar e desenvolver, na composição étnica da população, as características mais convenientes da sua ascendência europeia”.

As políticas estatais racistas que aprofundaram a opressão à população negra após a abolição formal e inconclusa da escravidão só tiveram fim, no plano formal, com a Constituição Federal de 1988.

Na abstração da lei afirmou-se que o Estado brasileiro tem por fundamento a construção de uma sociedade livre, justa e solidária que promova o bem de todos, sem preconceitos de origem e raça, afirmando expressamente o repúdio ao racismo. Foi apenas com a Constituição de 1988 que se reconheceu na lei a necessidade de valorizar e fomentar as culturas afrobrasileira e indígena, concedendo a esses dois segmentos étnicos da população brasileira o direito à terra, fundamental para a garantia de reprodução física, social e cultural desses povos.

Apesar dessa importante mudança no plano formal, vitória política do movimento negro brasileiro, a realidade mostra que o racismo ainda prevalece na sociedade e nas instituições públicas. Isso impede que direitos fundamentais, como o acesso à terra para as comunidades quilombolas, se realizem passados mais de vinte e cinco anos de vigência da Constituição.

O art. 68 do ADCT da Constituição Federal e o Decreto Federal 4887/03 vão muito além da necessidade de reparar erros do passado, até mesmo porque o longo e execrável processo de escravidão jamais poderá ser plenamente reparado.

A garantia constitucional de acesso à terra para comunidades quilombolas, nos moldes do Decreto Federal 4877/03, é fundamental instrumento de superação do racimo, na medida em que confere às comunidades meios para garantir a posse da terra que viabiliza o desenvolvimento de uma existência digna.

O caso Paiol de Telha

A grande maioria das comunidades quilombolas está hoje em situação de vulnerabilidade por terem sido vítimas de processos violentos de expropriação de suas terras. Tais processo se deram, em grande parte, por ações ilícitas, mas, muitas vezes, contaram com a conivência do Estado. O caso da comunidade Paiol de Telha, localizada no município de Reserva do Iguaçu, estado do Paraná, é prova desse processo de espoliação.

Em 1860 os ancestrais da atual comunidade Paiol de Telha receberam, por doação em testamento, a liberdade e três mil hectares de terras. A doação testamentária foi feita pela escravocrata Balbina de Siqueira, que faleceu sem deixar filhos. Os negros e negras que até então eram escravos passaram a viver em liberdade e com acesso à terra, ainda que estivessem totalmente excluídas das políticas públicas do Estado que fomentaram, por exemplo, a colonização europeia no estado do Paraná.

Ocorre que na década de 1970 imigrantes alemães e seus descendentes empreenderam um violento processo de expropriação das terras quilombolas, conforme narrado no livro “O Sangue e o espírito dos antepassados”, de Miriam F. Hartung.

O violento processo de expulsão contou com a conivência do Estado brasileiro, pois além de utilizar a polícia para expulsar os quilombolas de suas terras, também convalidou a expropriação com ações de usucapião, sem que a comunidade tivesse a possibilidade de se defender judicialmente com paridade de armas.

Ainda hoje a comunidade quilombola Paiol de Telha luta para reaver suas terras e sua dignidade social e histórica, perdidas com o processo de expropriação. Juridicamente a única possibilidade que a comunidade tem hoje é a titulação do território com base no Art. 68 do ADCT da Constituição e no Decreto Federal nº 4887/03.

Acesso à terra

Dizem os opositores dos direitos quilombolas que os erros do passado não justificam a política de titulação. Nas palavras do Ministro Cesar Peluso, essa ação “usurparia” direitos dos proprietários sobre o pretexto de realizar “justiça social” sem amparo constitucional.

Os opositores dizem mais: alegam que é necessário pôr um termo a essas disputas históricas por terra, e que não é possível reparar esses processos de expropriação sem criar um conflito social e sem aguçar uma pretensa divisão racial da sociedade. Afirmam ainda, como no caso do Paiol de Telha, que as terras estão sendo bem aproveitadas, cumprindo a função social, sustentando que destiná-las aos quilombolas seria um retrocesso.

Tais argumentos, em verdade, reforçam a necessidade de fortalecer a política pública de titulação. A vitória política do povo negro nos embates da constituinte, transmudada em fenômeno jurídico com a inscrição do direito à terra na Constituição, não pode se afastar, quando de sua aplicação, dos fins a que se destina. Não aplicar o direito conquistado resultaria na repetição das ações de Estado, que após à abolição formal e inconclusa da escravidão, perpetuaram o racismo institucional sob outras matizes.

Se a Constituição, inovando, reconheceu às comunidades de quilombos a propriedade definitiva das terras que estejam ocupando, por óbvio, terras que estiverem sob domínio de particulares deverão ser desapropriadas para que assim sejam tituladas aos quilombolas. O próprio sentido de existência do direito pressupõe que a terra a ser titulada deve garantir, ao mínimo, a possibilidade de trabalho e moradia para a perpetuação da comunidade e da sua própria cultura, ou seja, seus modos de viver, criar e produzir.

Não há sentido jurídico em reconhecer e efetivar um direito constitucional sem que se leve em consideração os fins a que se destina. A titulação de terras às comunidades quilombolas deve representar o mínimo necessário para a existência digna de quem vive do trabalho com a terra.

Coloca-se à Corte Constitucional a responsabilidade de não impedir que o Poder Executivo efetive o direito constitucional dos quilombolas. Nessa esteira, o STF não pode se reduzir a uma posição de pura passividade. Caso declare a inconstitucionalidade formal do decreto, deixará os remanescentes das comunidades quilombolas no vazio normativo que inviabilizará, quando não impedirá por completo, a realização do direito constitucional de acesso à terra.

Com isso, a Constituição que cria direitos de acesso à terra para quilombolas será amortecida, amordaçada e escondida, assim como está o rascimo de cada dia desta apenas declarada sociedade livre, justa e solidária.



Ações: Quilombolas
Eixos: Terra, território e justiça espacial