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DESPEJOS FORÇADOS - Plataforma pede mudanças no Executivo, Legislativo e Judiciário


SÃO PAULO - O Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Pidesc), datado de 1966 e ratificado pelo Brasil somente em 1992, determina que todos os meios apropriados sejam utilizados para promover e defender o direito à moradia, protegendo a população de despejos forçados. Os países que assinaram o Pacto se comprometeram a implementar políticas públicas de acesso à moradia e a revisar sua legislação, de modo que a população afetada de um possível despejo sempre seja consultada, tenha direito à ampla defesa e a compensações adequadas. O Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU considera, portanto, que os despejos forçados são incompatíveis com o Pidesc e injustificáveis perante a comunidade internacional.A realidade brasileira do setor, no entanto, rasga e joga no lixo o Pacto Internacional, e ignora a Constituição Federal, que incorporou o direito à moradia como direito social. De acordo com a Comissão Pastoral da Terra (CPT), mais de 15 mil famílias sofrem constantes ameaças de despejo no país, sem autorização judicial. Somente em 2005, 2.189 casas e 2.167 lavouras foram destruídas durante processos de reintegração de posse. O Brasil tem hoje um déficit habitacional de 7 milhões de casas, enquanto 5 milhões de unidades habitacionais, casa e apartamentos, encontram-se desocupas no país. No campo, 90% das propriedades ocupam somente 20% do território nacional, enquanto 45% são ocupados somente pelo 1% das propriedades que têm mais de mil hectares. Para discutir alternativas e formas de combater os despejos forçados, 150 representantes de movimentos urbanos, rurais, quilombolas e atingidos por barragens se reuniram na última semana em Recife. De acordo com as entidades participantes, no Brasil os despejos forçados têm sido implementados por distintas razões, como a não aplicação de instrumentos que assegurem o cumprimento da função social da propriedade; a falta de segurança na posse pelos moradores de assentamentos informais de baixa renda; a não efetivação da obrigação legal de regularização fundiária e urbanização de assentamentos com essas características; o desenvolvimento de projetos de infra-estrutura; e conflitos fundiários e de direito de propriedade. Com o objetivo de unificar a luta pela transformação deste cenário, movimentos populares e organizações da sociedade civil estão construindo uma plataforma que trará estratégias de atuação em relação aos poderes executivo, legislativo e judiciário, visando àquilo que já é mote de uma campanha no setor: o despejo zero. O documento terá também uma série de recomendações ao Estado, para que se cumpra efetivamente o direito à moradia, e deve ser lançado no dia 3 de outubro, Dia Mundial do Habitat. "Em relação à legislação, por exemplo, para prevenir os despejos forçados são necessárias alterações no Código de Processo Civil. É preciso que todo processo de reintegração de posse conte com uma audiência de justificação de posse, onde as partes - proprietário e ocupantes - sejam chamadas. Essa audiência é facultativa e não vem sendo utilizada", explica o advogado Leandro Gorsdorf, coordenador da ONG Terra de Direitos. "Mas queremos ir além. No caso de ocupações de propriedades que não têm função social, o Incra deve ser chamado para fazer parte da ação. Quando for necessário, a Prefeitura, o Estado e a União também devem ser, porque pode haver um momento de mediação e negociação do conflito que hoje acaba acontecendo fora do processo. São mudanças que precisam estar previstas no Código", afirma Gorsdorf . Há ainda novos mecanismos de regularização fundiária, de reconhecimento da posse e de caracterização da função social da propriedade que podem ser estabelecidos por lei. Já em relação ao Judiciário, o objetivo do movimento é trabalhar com diferentes órgãos do poder, visando ao estabelecimento de um novo pensamento sobre o significado da função social da propriedade - que leve em conta a questão ambiental e trabalhista e não apenas a produtividade - e que este passe a ser utilizado nas decisões judiciais. "Também pretendemos trabalhar nos Estados com a elaboração de provimentos por parte das corregedorias de Justiça. Para que os corregedores orientem a ação dos juízes sobre como lidar com ações de despejo que envolvam coletividades", conta Letícia Osório, do Centro pelo Direito à Moradia contra Despejos (COHRE). "E, com base no princípio da precaução, garantir que se realizem inspeções judiciais nas áreas ameaçadas. Muitos juízes dão a liminar de reintegração de posse somente com base no pedido do proprietário. Estas são medidas previstas, assim como outras que estão no Estatuto das Cidades, que poderiam ser adotadas, mas que dependem de uma conscientização dos juízes em relação aos direitos humanos", avalia Letícia. Articulação no Executivo Em 2005, o Conselho Nacional das Cidades, vinculado ao Ministério das Cidades, aprovou uma resolução que propõe o estabelecimento de um processo de discussão entre os órgãos do Poder Judiciário e o Conselho das Cidades acerca da atuação do Judiciário em conflitos e despejos de grande impacto social. A resolução também propõe a criação de um grupo no âmbito do Comitê Técnico de Habitação com a participação de representantes do Comitê de Planejamento Territorial Urbano, para mapear os despejos no país e sugerir soluções estruturais. "Temos que retomar este processo o quanto antes. Um ponto positivo, no entanto, foi que, durante o seminário, o Ministério das Cidades se comprometeu a realizar o levantamento de todas as ações de despejos ligadas a áreas de propriedade da União. Em paralelo, nós também vamos fazer um monitoramento dos despejos, através do recebimento de denúncias e do que for publicado pela mídia, visando a ações preventivas", conta Letícia. No meio rural, o objetivo é reduzir a violência no campo. "O que já existe em termos de portarias e medidas provisórias regulamenta a ação da polícia quando já há uma decisão judicial. A proposta do governo coloca a polícia como garantidora da ação do oficial de Justiça no local, e queremos transformar esta ação para que ela garanta a segurança dos moradores", explica Letícia. "Há uma lógica imposta nacionalmente, pelos Estados e pela União, através da ação da Polícia Militar ou da Polícia Federal, quando chamada, que resulta em um tratamento policial aos conflitos e despejos. Queremos a inversão desta lógica para a primazia dos direitos humanos, o que passa por definir que política de segurança pública nós queremos", completa Leandro Gorsdorf, da Terra de Direitos. O que ficou claro pelo seminário de Recife foi que os responsáveis pelos despejos forçados não consideram a pobreza e a miséria como violações de direitos humanos, mas consideram as ocupações das terras e casas para fins de reforma agrária a habitacional como tais, agindo fortemente contra elas enquanto a miséria e a pobreza continuam. "O problema é a concentração de terra. No campo, é preciso fazer a reforma agrária; na cidade, a reforma urbana, com a regularização fundiária. Mas é preciso ficar claro que o modelo de desenvolvimento que tem sido historicamente colocado pelo governo brasileiro não responde a isso. Agronegócio e reforma agrária não podem coexistir. Da mesma forma que, numa política de reforma urbana, não é possível a existência da especulação mobiliária. Temos que trabalhar pra deixar explícita a relação de impossibilidade entre esses modelos, porque eles se anulam, e aí não avançamos", conclui Gorsdorf. O seminário de Recife teve a promoção de dezenas de organizações, entre elas: Instituto Pólis, UN Habitat/Rolac, Plataforma Dhesca Brasil, Fórum Nacional da Reforma Urbana (FNRU), Comissão Pastoral da Terra (CPT), Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), Movimento Nacional de Luta pela Moradia, Central dos Movimentos Populares (CMP), União Nacional por Moradia Popular (UNMP) e Confederação Nacional das Associações de Moradores (Conam). Leia abaixo a íntegra da carta aprovada ao final do encontro: Carta de Recife por um Brasil sem Despejos Movimentos sociais e organizações da sociedade civil reunidos em Recife, durante a realização do Seminário Nacional Direitos Humanos e Prevenção de Despejos Forçados, vêm denunciar as inúmeras situações de despejo que vêm ocorrendo no Brasil. Os despejos são um problema crescente e suas conseqüências desencadeiam uma séria de violações desrespeitando a dignidade e os direitos humanos. São causados pelo modelo neoliberal de desenvolvimento econômico excludente, que produz alta concentração de terra e renda e que favorece aos detentores da propriedade no campo e na cidade. A terra ao invés de cumprir a sua função social serve ao mercado, destinando-se à especulação imobiliária, à manutenção de latifúndios e à implementação de grandes empreendimentos. As corporações, o agronegócio, os banqueiros, especuladores, latifundiários e o Estado são os grandes responsáveis pelas situações de despejo. A atuação do Estado, seja através de grandes projetos de desenvolvimento, da não implementação de políticas públicas sociais, do não cumprimento de normas de direitos humanos leis e do uso do aparelho repressivo nos conflitos, aumenta a desigualdade, a exclusão social e territorial, favorecendo as situações de despejo. Diante da necessidade de enfrentar esse quadro, os movimentos sociais e entidades da sociedade civil organizada reafirmam os seguintes princípios: - O Respeito à dignidade da pessoa humana; - O protagonismo dos movimentos sociais reforçando a democracia brasileira e a efetivação dos direitos humanos; - O direito à terra e à moradia como um direito humano fundamental; - O Cumprimento da função social da terra e da propriedade; - A prevalência dos direitos humanos sobre os direitos patrimoniais; - A relevância das necessidades reais das comunidades envolvidas (estado de necessidade social) nos conflitos fundiários; - O respeito e reconhecimento da cultura e dos territórios tradicionais e étnico-raciais; - O respeito a idosos e crianças e a não discriminação a mulheres, afro-descendentes, pessoas com deficiência, GLBTs e indígenas; E propõe a sociedade civil e ao Estado Brasileiro (poderes executivo, legislativo e judiciário): - Nenhuma ação de despejo seja cometida contra a população - Não a criminalização dos movimentos sociais - Não ao tratamento policial dos conflitos pela moradia e terra - Garantia de recursos para a implementação de políticas sociais pelo Estado - Reconhecimento dos direitos humanos fundamentais e aplicação da função social da propriedade pelo poder judiciário e pela autarquia responsável pela reforma agrária - Mudança do modelo energético - Garantia do direito a terra e a moradia pelo Estado - Regularização fundiária de assentamentos no campo e na cidade, de terras quilombolas, indígenas e de comunidades tradicionais pelo Estado - Reforma agrária e urbana Nesse seminário unificamos nossas bandeiras de lutas, reconhecemos a nossa própria história, demarcamos as nossas posições aqui expressas e ficamos convictos da necessidade e da importância da continuidade do processo de luta social. Pela organização e resistências dos movimentos sociais! Por um Brasil, com direitos humanos, sem despejos! Recife, 14 de julho de 2006 Autor/Fonte: Carta Maior



Ações: Conflitos Fundiários, Direito à Cidade

Eixos: Terra, território e justiça espacial