Notícias / Notícias



E cadê os “Direitos Humanos”?


Antes de tentar responder ao questionamento central de Dona Fulana (e do senso comum conservador assim considerado), valer-me-ei de outro questionamento, quiçá mais relevante para a compreensão das coisas como o são. Lá vai: onde NÃO estão os Direitos Humanos?

Roberto Efrem Filho, na Agência Carta Maior

Quem quer que já tenha vivenciado a experiência histórica de se comprometer com um grupo, uma organização ou um movimento, auto-identificado como “de Direitos Humanos” certamente já teve de lidar com esse questionamento. De costume, ele, o questionamento, vem antecedido por relatos um tanto genéricos, um tanto equivocados, tal qual o seguinte, meramente ilustrativo, mas mantenedor de indiscutíveis cumplicidades com a realidade:

“Dona Fulana, senhora casada, mãe de dois filhos, membro da high society provinciana local, sofreu ontem um assalto na Avenida X. Abordada por dois bandidos armados, que lhe tomaram colar, relógio, aparelho de celular e uma quantia próxima a duzentos reais, Dona Fulana assustou-se muitíssimo, temendo por sua própria vida. Ao ser entrevistada sobre o fato, em tom de indignação evidente, questionou (Fiat lux!): - Quando essa violência toda terminará? E agora, onde estão os ‘Direitos Humanos’? Só servem mesmo para defender bandidos? E nós, pessoas de bem, não somos humanas?”

Mas então, onde estão os Direitos Humanos? Antes de tentar responder ao questionamento central de Dona Fulana (e do senso comum conservador assim considerado), valer-me-ei de outro questionamento, quiçá mais relevante para a compreensão das coisas como o são. Lá vai: onde NÃO estão os Direitos Humanos?

Tendo em vista que a saúde constitui um Direito Humano, que a moradia, a educação, a alimentação, a comunicação, a terra e o trabalho também o constituem; tendo em vista que a grande maioria da população deste mundo não conhece a realização desses direitos; tendo em vista, aliás, que a experimentação da amplitude desses direitos conforma apenas uma minoria dos sujeitos ora viventes sobre este chão, é possível rascunhar a resposta adiante: os Direitos Humanos não estão em quase lugar algum – e, muito provavelmente, tímidos como são, também não apareceram nas festinhas de aniversário, nas aulas de matemática desprovidas de professor, nas noites de violência doméstica, na fome ou no tráfico, no vício ou no roubo, na vida, enfim, dos bandidos que, armados – com calibres produtores dos lucros de alguma nação central – assaltaram tão impiedosamente Dona Fulana.

Contudo, tendo em vista igualmente que, bem possivelmente, Dona Fulana tenha usufruído desses direitos – à saúde, à moradia, à educação etc. - durante a sua vida de “cidadã de bem”, ou seja, tendo em vista que Dona Fulana perfaz aquela exceção, aquele lócus mínimo onde estão os Direitos Humanos, talvez seja o caso de reverter a ordem da pergunta e lançar sobre Dona Fulana, portanto, o questionamento que nos move a escrever este texto: e aí, Dona Fulana, a senhora tão bem vivida, por favor, diga, onde estão os Direitos Humanos?

Guardada a ironia discursiva e respeitada Dona Fulana, repleta de seu moralismo de classe, dá-se que nós, membros de grupos, organizações e movimentos “de Direitos Humanos” não somos competentes para encarnar “os Direitos Humanos”. Primeiro porque eles, os Direitos Humanos, não são encarnáveis numa ou noutra pessoa, segundo porque nosso papel é justamente o de reivindicar a efetivação desses direitos e, na luta, criar novos direitos junto aos setores sociais subalternos, desprovidos de participação real em nossa formação pseudo-democrática. Inclusos nesses setores subalternos estão os sujeitos oprimidos neste mundo organizado de modo cruel, e também estão os “cruéis bandidos”, porque somos capazes de compreender que a produção geral da marginalidade está intrinsecamente vinculada a determinações sociais.

Daí ser possível afirmar, sem medo, que os Direitos Humanos são sim direitos de bandidos, mas que também são de estudantes, trabalhadores, mulheres, homens, pessoas negras, indígenas, quilombolas, homossexuais, bissexuais, transexuais, travestis, de sem-terras, sem-teto, nordestinas, chinesas, africanas e, inclusive, de Dona Fulana. Mas não porque teve roubados seus colar, relógio, aparelho de celular e uma quantia próxima a duzentos reais; e sim porque é, também Dona Fulana, humana: uma mulher num mundo como este – e isto só já dá pano para muita manga – capaz de, reconhecendo-se como um membro de grupos oprimidos, o que somos todos(as) nós, em comunhão, lutar pelos Direitos Humanos.

Roberto Efrem Filho é mestre em direito pela UFPE e docente do Departamento de Ciências Jurídicas da UFPB.



Ações: Defensores e Defensoras de Direitos Humanos

Eixos: Política e cultura dos direitos humanos