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Estudos da Ferrogrão são retomados e povos indígenas o Pará continuam sem garantia de consulta prévia


O projeto estava paralisado desde março 2021 por decisão do ministro Alexandre de Moraes  

Manifestação pedindo a consulta prévia para a Ferrogrão na BR-163, em 2019 (Foto:Instituto Kabu)

 

Nos últimos meses os direitos dos povos indígenas têm sido intensamente ameaçados. Desde o Projeto de Lei 490 que trata da aplicação da tese do marco temporal, até o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF), de mesmo objeto, – ambas medidas que podem limitar as demarcações de terras indígenas e violar o direito constitucional ao território. Enquanto essas disputam acontecem, os povos indígenas ainda precisam lutar e resistir contra os planos de megaprojetos pensados para a Amazônia sob a justificativa de desenvolvimento econômico para o país, como da ferrovia EF-179 – conhecida como Ferrogrão. Uma decisão do ministro Alexandre de Moraes, no dia 31 de maio, autorizou a retomada das análises dos estudos e processos administrativos relacionados ao projeto. 

A ferrovia é, atualmente, um dos principais projetos a serem retomados pelo novo governo e tem ganhado manifestações favoráveis de alguns ministros.   

A decisão do Supremo Tribunal Federal ocorreu após o governo brasileiro, por meio da Advocacia-Geral da União (AGU), se posicionar a favor do andamento da obra a partir das informações apresentadas pela Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Na decisão o ministro relator Alexandre de Moraes também encaminhou o projeto para a unidade de conciliação do STF, o Centro de Soluções Alternativas de Litígios (Cesal). O projeto da Ferrogrão é discutido no STF por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade 6553 (ADI) - de autoria do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) - , que trata da alteração dos limites do Parque Nacional do Jamanxim, no Pará, para construção do traçado da rodovia.  

Com a decisão de retorno dos estudos, povos indígenas Kayapó, Munduruku e outros, além de comunidades tradicionais do Pará também voltaram a cobrar a realização da consulta prévia, livre e informada. Os povos indígenas Kayapó Mekragnoti receberam a notícia com expectativa que a etapa de consulta aos povos seja incluída nas análises dos estudos. Eles lutam desde o início do projeto da Ferrogrão para serem ouvidos sobre os impactos que já vem sendo causados aos seus territórios. Anhê Kayapó, liderança do povo Kayapó Mekragnoti, afirma que a principal exigência dos indígenas é o cumprimento do direito de consulta. “Sem saber de nada, aconteceu a decisão. Nós, o povo Kayapó, precisamos ser consultados. É só isso que a gente quer”. 

O direito de consulta está registrado na Convenção169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e é lei federal no Brasil desde 2004. O tratado internacional sobre direitos de povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais estabelece a necessidade de governos promoverem a consulta de boa-fé e com participação livre sempre que sejam previstos projetos, leis ou medidas que possam impactar os modos de vida tradicionais.  

No caso da Ferrogrão estes princípios vêm sendo violados desde as etapas iniciais. Em maio de 2017, a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) se comprometeu a realizar a consulta ao povo Kayapó após ofício enviado pelo Instituto Kabu, entidade representativa dos povos indígenas Kayapó Mekragnoti. No entanto, a promessa não foi cumprida e os indígenas foram, na verdade, retirados do processo de consulta sob a justificativa que a ferrovia estará distante mais de 20km da Terra Indígena Baú, em Novo Progresso (PA).  

A justificativa de não realização da consulta aos Kayapó sobre a ferrovia sustenta-se na Portaria Interministerial 60/2015, que estabelece a distância limite de 10km para a exigência de consulta aos povos, como parte do licenciamento ambiental da obra. O aspecto desconsiderado nessa situação é que estes povos indígenas, apesar de fora dos limites registrados na Portaria, utilizam-se das áreas que serão afetadas pelos impactos da Ferrogrão em seus modos de vida.  

A área do Parque Nacional do Jamanxim, objeto da ação no STF, apesar de não fazer parte da Terra Indígena, é uma área onde os indígenas desenvolvem algumas atividades cotidianas, como coleta de alimentos e caça, além de possuírem cemitérios ancestrais localizados dentro do Parque. É por esse motivo que o Instituto Kabu entrou como parte da ADI 6553 na condição de amicus curiae (amigo da corte), fornecendo argumentos contra a diminuição da unidade de conservação. A manutenção e preservação do Parque Nacional do Jamanxim significa a continuidade de seus rituais sagrados aos ancestrais e as práticas do bem-viver.   

Doto Takak Ire, atual presidente do Instituto Kabu, defende que a consulta aos Kayapó seja incluída nesta retomada dos estudos da ferrovia. “É importante que os indígenas sejam consultados segundo seu Protocolo de Consulta”. O Protocolo de Consulta é um dos instrumentos de luta Kayapó e foi com ele que os povos indígenas conseguiram garantir medidas de mitigação após a pavimentação da BR-163 (Rodovia Cuiabá-Santarém) que trouxe diversos impactos para seus territórios. A proposta da Ferrogrão é que a ferrovia siga paralela à BR-163.   

Esta nova etapa de conciliação e mediação do projeto Ferrogrão no STF traz novos contornos para as discussões de viabilidade e impacto socioambiental da obra. Para Pedro Martins, assessor jurídico e coordenador do Programa Amazônia da Terra de Direitos, isto precisa ser observado com cautela, principalmente, na questão dos direitos dos povos indígenas e comunidades tradicionais. “Precisamos ter atenção para que a mediação do conflito pelo STF, através da CESAL, não signifique a flexibilização do direito de consulta. Nesse momento, o STF não pode promover a negociação dos termos da consulta, nem mesmo restringi-la às partes da ação e os amici curiae, já que estamos tratando de obra com potencial impacto para toda bacia do Tapajós” 

Agronegócio x preservação ambiental  

O projeto da EF-170, conhecida como Ferrogrão, prevê a conexão da região produtora de grãos no Centro-Oeste (Sinop-MT) aos portos do Tapajós (Miritituba–PA) por um complexo ferroviário de 930 quilômetros de extensão. O projeto estava paralisado desde março de 2021 por decisão liminar do próprio ministro Alexandre de Moraes na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 6553). A ação questiona a lei 13.452/2017 que alterou os limites do Parque Nacional do Jamanxim.  

Muito tem sido discutido pelos governos estaduais e federal sobre os benefícios econômicos do projeto, principalmente para setor do agronegócio, mas pouco sobre as irregularidades que rondam a obra, como no caso das violações de direitos territoriais e étnicos de povos indígenas e comunidades tradicionais da região, e sobre a potencial destruição da Floresta Amazônica. De acordo com pesquisas, ao menos 48 áreas protegidas, entre Terras Indígenas e Unidades de Conservação, serão impactadas pela ferrovia.  

A decisão monocrática de Alexandre de Moraes, ministro-relator da ADI 6553, aconteceu no mesmo dia que a ação estava na pauta para ser julgada pelo STF e revela alguns aspectos preocupantes, principalmente para a questão socioambiental e climática brasileira.  

Primeiro que, ao decidir pela retomada e conciliação da questão, Moraes afirma “Não há dúvidas, entretanto, da importância do papel estruturante do projeto FERROGRÃO, para o escoamento da produção de milho, soja, farelo de sola, óleo de soja, fertilizantes, açúcar, etanol e derivados de petróleo”. Junto a isso, o ministro traz informações sobre como a ferrovia irá contribuir com a descarbonização.  

A controvérsia desse discurso é que o setor mais beneficiado, o agronégocio, foi o responsável por 97% da devastação de floresta no país em 2021, segundo o Mapbiomas. 

Outro aspecto é o posicionamento favorável do novo governo Lula a este projeto, tendo como exemplo o primeiro discurso do Ministro do Transporte, Renan Filho, em que defendeu a Ferrogrão como projeto prioritário da pasta. Ao mesmo tempo, Lula continua utilizando o discurso de proteção ao meio ambiente e combate a crise climática, especialmente a partir da preservação da Amazônia, nas relações internacionais do Brasil.  

Alessandra Korap Munduruku, moradora da aldeia Praia do Índio - uma das Terras Indígenas localizada em Itaituba (PA), município que será o ponto de chegada da ferrovia Ferrogrão - afirma que os governos precisam cumprir com o direito de consulta dos povos e cumprir com os discursos de preservação ambiental. “O próprio presidente Lula e o governador do estado Pará falam como se fossem os salvadores da Amazônia, mas na realidade, eles não são. Eles têm que fazer o papel deles que é de parar essas grandes infraestruturas que vem para o nosso território porque o mundo todo está de olho na Amazônia. Não é só discutir lá fora [exterior] se aqui na Amazônia eles estão aprovando petróleo, ferrovia, e enquanto isso não estão consultando os povos”.   

O contraponto do discurso de preservação ambiental também é encontrado na decisão de Moraes, em que ele pontua que a recente decisão levou em consideração o parecer técnico do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade - órgão que gerencia e deveria garantir a proteção das unidades de conservação. “A AGU se manifestou pela inconstitucionalidade da redução do Parque Nacional do Jamanxim com base no precedente da ADI 4717, mas ao mesmo tempo requereu a continuidade do licenciamento da Ferrogrão. Não há melhor exemplo que traduza a contradição climática do Governo federal.”, afirma Pedro Martins, assessor jurídico de Terra de Direitos.



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Eixos: Terra, território e justiça espacial