Gazeta do Povo | Dos grilhões às amarras do agronegócio


A política pública de titulação dos territórios quilombolas sofreu corte de 80% no orçamento destinado a desapropriações, quando comparado ao ano passado. O corte orçamentário é indicativo de que o racismo persiste. Passados 484 anos do início da escravidão negra, outros 128 anos da sua abolição formal e inconclusa e, ainda, outros 28 anos da promulgação da Constituição que finalmente reconheceu aos quilombolas direitos às suas terras, o povo negro ainda terá de lutar muito para conquistar direitos básicos.

O ano de 2009 foi o primeiro em que houve alguma verba destinada a desapropriações, com R$ 5 milhões. Até o ano de 2012 o orçamento cresceu e chegou a pouco mais de R$ 51 milhões. Em 2013 o orçamento começou a encolher, passando a R$ 47 milhões, diminuindo para R$ 30 milhões em 2014, R$ 25 milhões em 2015 e, em 2016, irrisórios R$ 5 milhões. O corte inviabiliza a efetivação do direito à terra previsto no artigo 68 do ADCT da Constituição, e as 37 comunidades quilombolas do Paraná, bem como os demais 2.611 quilombos brasileiros, terão de esperar ainda mais tempo para terem seu direito à terra garantido.

Desde 2003, quando foi editado o Decreto Federal 4.887/03, dando início à política de titulação dos territórios, apenas 30 comunidades em todo o Brasil foram tituladas, nenhuma no Paraná. Seguindo esse ritmo, o Estado demorará 970 anos para titular todos os quilombos do Brasil. A ineficácia estatal é inaceitável, principalmente tratando-se de comunidades que ainda sofrem com as consequências dos quase quatro séculos de escravidão.

Nacionalmente, 36 territórios quilombolas estão na fase final do processo de titulação, o que deveria levar a desapropriar cerca de 800 imóveis em favor dos quilombolas. A estimativa do Incra para o pagamento das indenizações é de R$ 425 milhões. Assim, com um orçamento de apenas R$ 5 milhões em 2016, que corresponde a 1,17% da demanda existente, os conflitos pela terra podem aumentar.

De um lado, milhares de quilombolas, em comunidades espalhadas por 24 estados da Federação, continuarão a viver com muitas dificuldades e sem acesso a um direito. Por outro, proprietários de terras que incidam nos territórios quilombolas não têm perspectivas de quando serão indenizados. A solução dos problemas fundiários no Brasil depende de empenho do Estado e da sociedade como um todo para enfrentar quatro séculos de racismo e concentração fundiária.

A principal causa da morosidade do Estado é a dura, injustificável e racista oposição de boa parte do agronegócio e do senhoriato ruralista decadente à efetivação do direito quilombola, pois estes não aceitam que o Estado invista tempo e recursos em quilombos, ao passo que se beneficiam, desde a época das capitanias hereditárias, de bilhões em recursos públicos e da exploração do trabalho da população negra. Não haverá justiça ou democracia enquanto 1% dos proprietários de terras detiver 49% de toda a terra agriculturável no Brasil, como apontou o último censo do IBGE.

O povo negro é protagonista, pois construiu e ainda constrói com força, risos, suor e lágrimas boa parte da identidade cultural, da economia e da democracia do Brasil. Quilombolas querem terra para viver a seu modo, com dignidade, liberdade e alimentos saudáveis.


*Fernando G. V. Prioste, mestrando em Direito Socioambiental e Sustentabilidade pela PUC-PR, é advogado popular na organização de direitos humanos Terra de Direitos.

 



Ações: Quilombolas
Eixos: Terra, território e justiça espacial