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Entre gerações: apanhadoras(es) de flores articulam defesa de seus saberes tradicionais


Lideranças da comunidade Macacos reunidos para oficina final de construção do Protocolo Biocultural | Foto: José Odeveza

“Desde sempre foi assim”, “ minha mãe fazia e contava que meus avós faziam assim”, “aqui na comunidade toda vida foi assim”, esses são relatos das apanhadoras e apanhadores de flores sempre-viva mais antigas da comunidade de Macacos, em Minas Gerais. As frases que se repetem entre as casas de famílias que ali vivem foram ouvidas ao longo de todo o trabalho de resgate e registro das práticas tradicionais da comunidade. Com isso, Macacos está prestes a se juntar ao pequeno rol de povos tradicionais brasileiros a construírem um protocolo biocultural - documento político que reúne toda a forma de vida e prática tradicional da comunidade que é passada oralmente entre as gerações. 

As apanhadoras (es) de flores sempre vivas se reuniram nos dias 05 e 06 de agosto deste ano para finalizar o levantamento de informações para consolidação do protocolo biocultural comunitário.

Um protocolo biocultural é um instrumento desenvolvido coletivamente a partir dos saberes construídos ao longo das gerações de um povo ou comunidade. Por ser construído pelos povos e comunidades tradicionais com diferentes especificidades, como linguagem e práticas, protocolos bioculturais não precisam se enquadrar num determinado tipo de formato, o importante é que a construção faça jus a forma de comunicação do povo que detém os conhecimentos tradicionais e respeite o acordo coletivo de construção do documento.

No Brasil, segundo estudo da pesquisadora Jaqueline Andrade da Universidade Federal do Paraná (UFPR), com a construção do protocolo biocultural da Comunidade de Macacos existem agora cinco protocolos finalizados. Sendo os demais: Protocolo Biocultural Comunitário da Reserva Extrativista (Resex) do Riozinho do Anfrísio (2013); Protocolo Comunitário Biocultural das Raizeiras do Cerrado (2014); Protocolo Comunitário do Bailique (2013); Protocolo de Serviços Ambientais dos Ashaninka da Terra Indígena Kampa do Rio 205 Amônea (2016).

No Cerrado uma das precursoras neste trabalho são as Raizeiras, que em 2014 lançaram um documento pelo direito consuetudinário - que é de costume - de praticar a medicina tradicional. O protocolo das Raizeiras é tido como um instrumento de grande importância, já que ao longo dos anos grandes indústrias farmacêuticas usurparam diferentes saberes da medicina tradicional que fazia o uso sustentável da biodiversidade do bioma Cerrado. 

A construção do Protocolo Biocultural da comunidade de Macacos se iniciou em 2019 a partir do reconhecimento dos seus direitos como comunidade tradicional e de sua contribuição para salvaguardar a biodiversidade do Cerrado. A comunidade desde então tem se mobilizado para reafirmar a importância de suas práticas tradicionais de uso comum dos campos e acordar regras de uso e manejo dos agroambientes que compõem seus territórios de ocupação tradicional. 

Protetores da serra, das águas e da biodiversidade 

Atual matriarca da comunidade Macacos -MG | Foto: José Odeveza

Ao longo da construção do protocolo biocultural da comunidade de Macacos é observado como os conhecimentos tradicionais foram transmitidos de geração a geração, e ao mesmo tempo, vieram sendo aprimorados a partir das experiências concretas da comunidade. Com isso, a comunidade elaborou e vive de uma sistema agrícola sustentado em práticas de manejo e cuidados de conservação de campos, matas e nascentes. 

A organização da vida na comunidade leva em consideração os tempos de chuva e de seca, com cálculos próprios e atividades específicas em cada momento. Com saberes que permitem a identificação da hora certa para plantar, criar e coletar flores e realizar o extrativismo de produtos voltados para o auto-abastecimento como plantas medicinais e frutas nativas. Ao narrar os cuidados com os campos, as matas, com as nascentes na serra, os membros da comunidades rememoram situações vividas desde a infância e por meio delas seu sentimento de pertencimento aos lugares que identificam por nomes próprios e que fazem parte de sua história e de seus ancestrais. 

Na comunidade de Macacos os guardiões da memória ensinam que as boas práticas para produzir e reproduzir a vida na Serra do Espinhaço vem de muito tempo, que o cuidado com a natureza é um aprendizado que vem de muitas gerações, é o modo com que cada um, cada família recria os vínculos de pertencimento com o lugar. 

Em 2020 as apanhadoras (es) de flores foram reconhecidas como o primeiro Patrimônio Agrícola Mundial do Brasil concedido pela Organização das Nações Unidas (ONU) a partir de sua agência que atua na temática de Alimentação e Agricultura (FAO). O selo é denominado Sistemas Importantes do Patrimônio Agrícola Mundial (SIPAM), e reconhece os patrimônios agrícolas desenvolvidos por povos e comunidades tradicionais em diversas partes do mundo. 

Para a presidente da associação de moradores da comunidade de Macacos, Eliana Amorim, a construção de um protocolo biocultural valoriza e preserva a ancestralidade da comunidade. “Esse momento foi muito importante para a comunidade porque agora ele se junta como mais um instrumento de defesa do território. A comunidade espera que possamos fazer valer nossos direitos como por exemplo o acesso pleno aos parques onde realizamos a panha das flores”, afirma a liderança. Atualmente as apanhadoras (es) de flores vivem sob ameaça da proibição da panha após a criação de uma parque de proteção integral sobreposto as áreas das comunidades sem a devida consulta prévia, livre e informada - como garante a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a qual o Brasil é signatário.  

Proteção Jurídica

O entendimento da capacidade de proteção das comunidades e de seus saberes tradicionais pelo protocolo biocultural ainda é algo pouco explorado no Brasil. No entanto, o direito consuetudinário, que é um conjunto de costumes e práticas sociais que são aceitos como norma jurídica mesmo que não estejam escritos em códigos e leis, é válido em todo o país. O Protocolo Biocultural é uma forma para garantir que esses costumes são praticados ao longo dos anos pelas comunidades e por isso devem ser respeitados. 

Nas comunidades e povos tradicionais esses acordos subentendidos são transmitidos num movimento vivo e contínuo, ao longo do tempo, e por isso regulam a dinâmica da vida social comunitária. Na convivência entre gerações e no processo de socialização no interior da família e comunidade são transmitidos valores, normas de convivência e as boas práticas produtivas. 

A assessora jurídica da Terra de direitos que atua junto às comunidades apanhadoras de flores, Alessandra Jakobovski, explica em um mini vídeo, qual a importância jurídica de um Protocolo Biocultural. 

O lançamento e a divulgação do protocolo biocultural da comunidade de Macacos ainda está em fase de planejamento. No entanto, é notável que os ganhos para a memória e continuidade da vida da comunidade estão presentes e são reforçados ao longo do processo da própria construção do protocolo. Um dos comunitários mais antigos, Edson José Abreu, que não faz mais a panha de flores pela idade e problemas de saúde, conta com alegria que “a construção do protocolo foi como revivenciar os dias que vivemos nas lapas ao lado das sempre-vivas”. 

 



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