100 mil vidas perdidas pela Covid: seletividade e racismo do Estado determinam quem vive e quem morre
Editorial
Em oposição à falta de ação governamental, sociedade busca garantir direitos humanos e proteção das populações mais vulnerabilizadas.
Neste final de semana o país alcança a trágica marca de mais de 100 mil mortos e quase 3 milhões de infectados pela Covid-19. Isso sem mencionar o enorme contingente de perdas fatais e pessoas infectadas não notificadas. Entre os números visíveis e invisíveis, são os corpos da população negra, periférica, dos povos quilombolas, de indígenas e de povos e comunidades tradicionais que têm sofrido mais intensamente a letalidade da doença.
Os dados brasileiros e os posicionamentos do poder público frente à esta grave crise epidemiológica, divulgados diariamente, compõem um retrato dramático e não acidental. Em um país regido por um sistema de desigualdade abissal que há tempos diferencia aquelas e aqueles que têm ou não o direito de viver, a pandemia só expôs com ainda mais força as vidas pelas quais o Estado brasileiro tem maior zelo.
Desde o primeiro caso da doença, mais de 150 dias se passaram e ainda não há por parte do governo nenhuma ação concertada dirigida a atenuar a vulnerabilidade e a crise social que atingiram a população que está nos quartos de empregadas, nos barracos, nos territórios quilombolas, nas aldeias, na maternidade solo, no trabalho informal e precarizado. Ao mesmo tempo em que o nível de vulnerabilidade destes setores da população se intensificou, de acordo com relatório da Oxfam, 42 bilionários brasileiros aumentaram sua riqueza em 27,6% no período de março a julho deste ano. De fato, medidas do governo tem privilegiado a proteção dos patrões, do capital externo e dos interesses de empresas que violam direitos humanos.
Enquanto o governo injetou mais de R$1,2 trilhão em favor dos bancos, cerca de 43 milhões de pessoas tiveram auxílio emergencial de R$600 negados. É preciso lembrar que esse auxílio, ainda que insuficiente, é uma conquista da atuação articulada de organizações populares sobre o Congresso Nacional - e não uma benesse do Estado. É válido ainda recordar que a proposta inicial do governo previa o auxílio no valor de R$ 200.
Em paralelo ao avanço da Covid sobre os povos da floresta, o desmatamento em terras indígenas aumentou 64% nos primeiros meses do ano, de acordo com dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), favorecendo grileiros e empresas de alta lucratividade vinculadas aos setores de plantações de monoculturas de árvores, agronegócio, petróleo e mineração. O projeto de lei que priorizava o auxílio emergencial à mulher provedora, por sua vez, foi vetado pela Presidência, enquanto empresas transnacionais tiveram suas dúvidas renegociadas. O plano emergencial de combate à Covid-19 para povos indígenas, comunidades quilombolas e demais povos e comunidades tradicionais foi também duramente vetado pelo Presidente da República. Nestas e noutras ações estão explícitas a seletividade e o racismo institucional do Estado que determinam as condições de vida ou de morte da população.
À medida em que escancarou a falência de um modelo econômico, político e social, a pandemia reforçou, de maneira incontestável, a necessidade de direitos econômicos e sociais garantidos, de um Sistema Único de Saúde (SUS) forte e de políticas de assistência e proteção social universais. O modelo privatista e de corte no orçamento para às áreas essenciais, por seu turno, mostrou-se insustentável.
Neste quadro, é a sociedade organizada que tem construído alternativas procurando amenizar os impactos da pandemia, defender direitos humanos e garantir proteção às populações mais vulneráveis.
No horizonte de trabalho da Terra de Direitos – em paralelo à reivindicação e luta para que o Estado desempenhe o seu papel de proteger direitos – a organização tem atuado, conjuntamente com redes e organizações sociais, para minimizar os efeitos de tão violenta crise estrutural e epidemiológica.
Em razão da gravidade das violações dos direitos humanos neste contexto de pandemia e o que elas representam à democracia, a Terra de Direitos tem realizado um conjunto de denúncias aos organismos internacionais. Em junho, a intensificação das violações de direitos humanos pelas recentes medidas adotadas pelo governo foi objeto de informe dirigido ao Alto Comissariado das Nações Unidas.
Logo depois, em julho, os ataques do governo Bolsonaro a mulheres jornalistas integraram uma denúncia coletiva apresentada no 44º sessão do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas. Na mesma seção a Terra de Direitos, junto a outras organizações e movimentos atuantes na região Amazônica, denunciou os retrocessos do estado brasileiro na governança climática e os prejuízos à política ambiental no Diálogo Interativo com o especialista independente em direitos humanos e em Solidariedade Internacional do Organismo, Obiara Okafor.
Em informe dirigido ao Relator Especial sobre Moradia Adequada vinculado ao Alto Comissariado da ONU Balakrishnan Rajagopal, a organização e parceiros destacaram, a ausência de medidas uniformizadas e de validade para todo território nacional que garantam a não realização de despejos e remoções de famílias durante a pandemia. Em razão da pressão da sociedade civil o relator emitiu declaração pública solicitando ao governo brasileiro que cesse com remoções neste contexto de pandemia.
Em outra frente de trabalho a organização tem atuado intensamente para pressionar o Estado na implementação de políticas públicas específicas para populações mais vulneráveis. Conjuntamente com o Conselho Indígena Tapajós Arapiuns (CITA), na condição de amicus curiae, a organização participou do histórico julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709, interposta pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), que reivindica que o governo adote uma série de medidas emergenciais para proteger os povos indígenas da Covid-19. Na sua manifestação, CITA e Terra de Direitos destacaram a necessidade do atendimento do SUS indígena ser assegurado para territórios indígenas não demarcados, realidade das treze etnias que habitam a região do “Baixo Rio Tapajós”.
Conjuntamente com a Coalizão Direitos Valem Mais, a organização lançou um apelo público aos Ministros do Supremo Tribunal Federal pelo fim da Emenda do Teto de Gastos (EC 95/2016) e protocolou no STF documento que analisa os efeitos da Emenda no enfrentamento da pandemia e no cenário pós-pandemia.
A reivindicação de um plano emergencial para povos indígenas, comunidades quilombolas e demais povos e comunidades tradicionais também esteve presente no monitoramento dos avanços e retrocessos do Projeto de Lei 1142/2020. Ainda na esfera legislativa, em conjunto com movimentos e organizações, a organização tem acompanhado a agenda de emergência para o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, apresentando notas técnicas e análise sobre os riscos para os direitos humanos resultante da aprovação de determinados projetos de lei. Como é o caso do debate legislativo em torno da Medida Provisória 910 , atual Projeto de Lei 2.633/2020, e suas consequência em especial para a gestão de terras na Amazônia e para terras quilombolas.
Em Curitiba (PR), a organização se somou à reivindicação por um Plano Emergencial de Assistência Social com ações dirigidas para comunidades periféricas e população em situação de rua. Contribuiu também na mobilização em torno de Ação Civil Pública, parcialmente deferida pela justiça, solicitando a adoção de medidas de proteção à população em situação de rua da capital paranaense, bem como no mapeamento de iniciativas solidárias e comunidades vulneráveis da cidade.
Eixos: Política e cultura dos direitos humanos