Os Direitos Humanos sob conflito
A atual contenda simbólica acerca do III Programa Nacional de Direitos Humanos bem transparece o campo minado em que vivenciamos aquilo que nos acostumamos – talvez por conforto, talvez por funcionalidade - a chamar de democracia. Resta demonstrado, dia após dia, que o aprofundamento do processo democrático, ou seja, o efetivo exercício da democracia, não parece pertencer ao conceito de “democracia” próprio àqueles sujeitos midiática e hegemonicamente competentes para determinar, no espaço público, o que é e o que não é pronunciável nessa “sua” democracia.
O Programa Nacional de Direitos Humanos possui dois vícios estruturais certamente imperdoáveis sob o ponto de vista de nossas classes dominantes. O primeiro deles diz respeito à concepção de Direitos Humanos sob discussão no Programa. O segundo concerne ao fato de que tal Programa resulta de uma experiência democrático-participativa que – ao menos aparentemente – deu certo. Tratemos do primeiro.
A expressão “Direitos Humanos” encontrou em nossa história política resistências diversas e, por vezes, antagônicas. Sua reivindicação discursiva no Brasil nos tempos do regime militar, em razão das condições em que se encontravam os presos políticos e do cerceamento arbitrário de um sem número de direitos, esbarrou – principalmente – nos setores sociais conservadores, apoiadores do regime e reprodutores do infeliz cacoete retórico da ordem e do progresso, mas também se deparou com obstáculos no próprio campo das esquerdas. Uma versão sobremaneira controversa, mas, à época, mais ou menos valorizada, do marxismo rechaçou – e talvez continue a rechaçar – o discurso de defesa dos Direitos Humanos sob a alegação de que ele representaria um recuo em direção à edificação do socialismo. Através de uma leitura meio enviesada, meio mecanicista do fundamental trabalho de Marx intitulado “A Questão Judaica”, esses “marxistas” relegaram os Direitos Humanos ao arsenal argumentativo dos “reformistas” ou mesmo dos “capitalistas”.
Deu-se, contudo, que a crise atravessada pelo campo socialista nos idos das décadas de oitenta e noventa, somada à peculiar conjuntura da redemocratização do país e de promulgação da Constituição Federal de 1988, engendrou uma processual aproximação entre os membros do campo das esquerdas e a defesa dos Direitos Humanos. A lógica premente da luta por direitos conduzida pelos nascentes Movimentos Sociais – aqui incluídas as redes de Organizações Não-Governamentais, como é o caso do Movimento Nacional de Direitos Humanos – ratificou de modo cabal a introdução das pautas referentes aos Direitos Humanos nos debates das esquerdas. Exemplo disso é a incontestável dedicação de sujeitos capitais à construção da prática socialista no Brasil, tal qual o Movimento dos(as) Trabalhadores(as) Rurais Sem Terra, às questões relativas aos Direitos Humanos.
Arquitetou-se, portanto, uma histórica cumplicidade entre as esquerdas e a defesa desses direitos. Isto, de modo que parte considerável dos espaços, pertencentes à “sociedade civil”, de reivindicação dos Direitos Humanos, organiza-se conforme princípios progressistas e críticos às iniqüidades decorrentes do modo de produção capitalista, muito embora a perspectiva da construção do socialismo não pertença, em regra, a vários dos sujeitos nesses espaços envolvidos. Importa, contudo, que é em tais espaços que mais e mais se multiplica uma concepção dos Direitos Humanos segundo a qual esses direitos surgem em processos históricos de tomada de consciência coletiva, de compartilhamento de lutas sociais, ou, noutros termos, de diálogo e reconhecimento.
Longe de serem a abstração acertadamente criticada por Marx - e interessante, sobretudo, à criação de uma aparência democrática capaz de dissimular a realidade da existência dO humano burguês, branco e heterossexual como único sujeito de direitos – os Direitos Humanos cultivados pelos Movimentos Sociais pressupõem uma inexorável dialética: a de que homens e mulheres se humanizam na medida em que lutam por direitos e de que tais direitos se tornam Humanos devido às lutas de homens e mulheres. É, enfim, contra essa concepção, hoje presente no Programa Nacional de Direitos Humanos, que os setores conservadores de nosso país se erguem. Afinal, é a legítima luta de homens e mulheres por sua libertação que tem voz no Programa. Algo verificável seja nas conclamações pela legalização do aborto e da união entre pessoas do mesmo sexo, seja na reivindicação pela fundação de uma Comissão de Verdade e Justiça hábil a democraticamente descortinar o recente passado inglório do Estado brasileiro.
O segundo vício, por sua vez, recai, não sem alguma ironia, sobre a disputa simbólica pela determinação das fronteiras da democracia, ou seja, sobre até onde é possível caminhar. Pouco tempo depois de nosso mais reacionário espécime partidário modificar, não ao acaso, seu título, de “Liberal” (do PFL) para “Democrata” (do DEM), a democracia – figura que nunca recebeu muito crédito das classes dominantes brasileiras, senão como preleção legitimadora de seus interesses – torna-se alvo de exasperadas contestações. Explico.
O III Programa Nacional de Direitos Humanos é resultado das propostas aprovadas durante a última Conferência Nacional de Direitos Humanos. Conferências constituem espaços promovidos pelo Estado e dos quais participam sujeitos governamentais e não-governamentais. São ambientes abertos à participação, em que propostas são aprovadas ou não, em razão de um procedimento previamente estipulado. Tais Conferências, contudo, assim como tudo na “democracia” que conhecemos, apresentam-se como finas lâminas de dois gumes. Se elas são o máximo de participação democrática que conseguimos conquistar junto ao Estado, costumam também representar uma fenda em que os movimentos sociais costumam cair, notadamente porque estão elas estruturalmente mais afeitas a legitimar o Estado como virtualmente participativo do que a possibilitar uma real participação.
Ocorre que – e é esta a morada daquele vício imperdoável – a Conferência de Direitos Humanos responsável pelo III PNDH foi construída, desde o início, nas etapas estaduais, por sujeitos suficientemente organizados para obter através dela, a primeira pronúncia estatal acerca daquilo que suas lutas consubstanciam como Direitos Humanos. Nunca o Estado brasileiro houvera citado a possibilidade – sim, trata-se tão somente de uma possibilidade - de legalizar o aborto ou de criar uma Comissão de Verdade e Justiça. Agora, com o III PNDH, não restam mais ao Estado brasileiro quaisquer desculpas para desconhecer a presença de tais discussões. De fato, neste instante, o que temem os setores conversadores de nossa sociedade - de Jobim aos seus militares, do DEM à CNA munida de seus proclamados demônios – não é efetivamente a legalização do aborto ou a Comissão de Verdade e Justiça. Esses setores habilidosamente sabem que mudanças assim no ordenamento jurídico requerem o processo legislativo, a decisão do Congresso Nacional, e não um mero decreto presidencial que apenas publica um Programa produto de uma Conferência. Eles temem, em verdade, o que resta aí de simbólico, mas, nem por isso, imaterial: o que remonta à probabilidade de, no jogo “democrático”, no qual jamais acreditaram ou investiram, mas do qual se utilizam como recurso de justificação e disfarce deste mundo tão desigual, eles terem perdido mais uma batalha.
Roberto Efrem Filho é mestre em direito pela UFPE, docente do Departamento de Ciências Jurídicas da UFPB e membro do Conselho Diretor da Terra de Direitos - organização de direitos humanos. Este artigo foi publicado pela agência Carta Maior.
Ações: Defensores e Defensoras de Direitos Humanos
Eixos: Política e cultura dos direitos humanos