Falta de acesso aos alimentos impacta comunidades quilombolas em diferentes Estados brasileiros
Sara Campos
Direito humano fundamental assegurado na Constituição brasileira, a soberania e a segurança alimentar e nutricional têm sido algumas das violações aos direitos quilombolas praticadas pelo governo brasileiro.
Comunidades tradicionais de norte a sul do país são responsáveis pela produção de alimentos que conservam a sociobiodiversidade dos biomas brasileiros. Com a chegada da pandemia, esse tipo de atividade sofre ameaças cada vez mais amplas. A falta de opções para escoamento da produção e de acesso às políticas públicas voltadas à agricultura familiar, como Programa de Aquisição de Alimento (PAA) e Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), muitos quilombolas têm sofrido com a escassez de alimentos gerada pela falta de renda e perspectivas de comercialização de suas produções no campo.
Assegurada na Constituição brasileira, a soberania alimentar e a segurança alimentar e nutricional, que juntas integram o direito à alimentação, têm sofrido violações. A verba destinada à aquisição de alimentos para as comunidades quilombolas foi vetada em diferentes momentos pelo presidente Bolsonaro.
“Os quilombolas já tinham pouco acesso às políticas públicas. Após a pandemia, o cenário ficou ainda mais devastador. Os projetos de lei com temas da agricultura familiar foram vetados pelo presidente e isso acaba afetando a soberania alimentar e a renda das pessoas destes territórios. Temos quilombos com situações de vulnerabilidade extrema e pessoas cuja única fonte de renda estava na venda da mão-de-obra para terceiros. Agora elas estão desamparadas sem conseguir colocar comida na mesa” destaca Biko Rodrigues, coordenador nacional da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq).
O morador do Quilombo África, no município de Moju, no Estado do Pará, Magno Nascimento testemunha na prática o impacto da pandemia durante as atividades agrícolas de sua comunidade. Ele enxerga dificuldades a longo prazo que impactam na produção. “O próximo ano é o período em que as comunidades poderiam fazer o manejo dos açaizais e cuidar de outras etapas do preparo das roças. Um dos maiores problemas trazidos pela pandemia é a impossibilidade produtiva”. Magno também avalia que as barreiras sanitárias estabelecidas por alguns municípios foram desafios adicionais que dificultam o escoamento da produção.
“Tradicionalmente nós produzimos em sistemas de mutirões de grupos de trabalho. A orientação do isolamento social fez com que as pessoas freiassem suas atividades”.
Na visão do quilombola, há a efetivação de um modelo político prometido em campanha pelo presidente Bolsonaro. “Quilombolas poderiam ter melhores condições de enfrentamento da pandemia. Poderiam ter máscaras, álcool em gel e outros equipamentos de proteção, inclusive alimentos que assegurassem esse momento com melhores condições. Entretanto, o modelo político cruel e racista prevalece”.
A falta de regularização de territórios também figura entre os gargalos enfrentados pelas comunidades. “Muitos não conseguem acessar recursos para produção devido a não regularização do território, pois não possuem título definitivo. Não existe política pública específica que garanta o escoamento das produções agrícolas. Grande parte dos quilombolas produz para subsistência e comercializa os ingredientes excedentes”, esclarece Vercilene Dias, advogada popular da organização Terra de Direitos.
Uma construção coletiva que reuniu advogadas e advogados quilombolas e de diferentes organizações de direitos humanos, e entidades da sociedade civil resultou no pedido que atualmente tramita no Supremo Tribunal Federal (STF). A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 742 aborda diversas violações aos direitos dos quilombolas, entre elas a falta de assistência médica, o acesso a materiais preventivos contra a COVID-19 e a falta de soberania alimentar.
“A Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) se mostrou como único instrumento apto a provocar o Poder Judiciário para impedir que os direitos fundamentais quilombolas sigam sendo violados pelas omissões do governo federal no combate à pandemia de Covid-19 nos quilombos”, afirma a advogada popular Maira Moreira. Há expectativa das comunidades quilombolas de todo o Brasil sobre essa ADPF, “pois as situações concretas de precariedade e falta de acesso à insumos básicos de proteção dessas comunidades se repetem nas 5.972 localidades quilombolas identificadas pelo IBGE, indicando a necessidade de um Plano Nacional de enfrentamento da pandemia nas comunidades quilombolas”, destaca a advogada.
Para embasar o pedido junto ao STF foram utilizados dados do último censo do IBGE, driblando a escassez de dados específicos sobre a população quilombola no país. Foram necessários dois meses para o levantamento de dados de comunidades pelas entidades da sociedade civil. “Tivemos que levantar argumentos sobre a falta de dados oficiais numa jornada de intensas discussões. Trabalhamos rapidamente na construção e conclusão da peça em menos de um mês, o que resultou em um trabalho coletivo de sucesso”, avalia a advogada.
Entre os juristas consultados para a elaboração da peça estão nomes como Daniel Sarmento, doutor em Direito Constitucional; Carlos Marés, especialista em defesa dos povos indígenas e Deborah Duprat, reconhecida publicamente pela defesa dos Direitos Humanos. “Tivemos um longo processo de escuta, conversando com juristas experientes. Esses especialistas nos ajudaram no aprimoramento de nosso pedido”, destaca Biko Rodrigues, da Conaq.
Ações: Quilombolas
Eixos: Política e cultura dos direitos humanos