A Cidade como um Bem Comum Pilar Emergente do Direito à Cidade
O Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU) divulga mais artigo visando contribuir com o debate em torno de uma nova agenda para as cidades, tendo em vista as eleições presidenciais, para os governos dos estados e para o Distrito Federal, e também a necessidade de construção de uma nova plataforma articuladora das forças democráticas e progressistas, frente aos retrocessos políticos e sociais que o país vem atravessando, com o crescente avanço das ideias neoliberais. Neste artigo, assinado por Nelson Saule Júnior o tema é a cidade como um bem comum e como pilar emergente do direito à cidade.
A Cidade como um Bem Comum Pilar Emergente do Direito à Cidade*
1.Da Evolução dos Direitos Urbanos para o Direito à Cidade
1.1. A concepção dos direitos urbanos na Emenda Popular da Reforma Urbana
A concepção de direitos urbanos estava contida como o elemento chave no pensamento da reforma urbana concebido no processo de redemocratização do Brasil em especial na Constituinte que resultou na Constituição Brasileira de 1988 traduzido em especial na histórica emenda popular de reforma urbana de 1987.
É uma concepção embasada nos direitos humanos que foi um dos temas centrais no pacto político que ocorreu na Constituinte pela qual todo cidadão deve ter direito a uma condição de vida urbana digna e justiça social. Houve uma conjugação de necessidades individuais, coletivos e de interesses difusos para caracterizar o significado de vida urbana digna. Cabe ao Estado assegurar a moradia transporte público, saneamento , energia elétrica, iluminação pública, comunicações, saúde, educação, lazer e segurança, e no campo dos interesses difusos proteção ao patrimônio ambiental e cultural e a gestão democrática das cidades.
Nessa concepção de direitos urbanos constava uma clara conexão com o cumprimento da função social da propriedade com a pretensão do direito a condições de vida urbana digna condicionar o exercício do direito de propriedade ao interesse social no uso dos imóveis urbanos e subordinar esse exercício ao princípio do estado de necessidade O estado de necessidade pressupõe um conflito entre titulares de interesses lícitos e legítimos, em que um pode perecer licitamente para que outro sobreviva que pode ser aplicado justamente nos casos de conflitos de moradia e propriedade prevalecendo a moradia em razão do estado de necessidade das pessoas que não tem local digno para morar.
Esse concepção de direitos urbanos foi uma referencia na luta pela reforma urbana nos processos políticos que ocorreram em vários Estados e Municípios no período de elaboração das Constituições Estaduais, Leis Orgânicas e dos planos diretores dos anos 90 e contribuiu para a visão que passa a ser construída sobre o direito à cidade na elaboração do Estatuto das Cidades.
1.2. A Concepção do Direito à Cidade no Estatuto das Cidades
O período de elaboração do Estatuto das Cidades no Congresso Nacional perdurou mais de 10 anos ( 1989 – 2001) em razão da resistência de grupos políticos conservadores de tornar viável a implementação da politica urbana voltada ao pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade e da cidade. Nesse período as discussões e formulações sobre as conexões entre direitos humanos , meio ambiente e sustentabilidade feitas na ocorrência das Conferencias Globais das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento ( Rio de Janeiro -1992) e sobre Assentamentos Humanos – Habitat II (Istambul – 1996) , e da Conferencia Nacional das Cidades (Brasília – Câmara dos Deputados – 1999), e as experiências de gestões municipais participativas vivenciadas em diversos Municípios brasileiros por governos do campo democrático e popular foram fundamentais para a passagem da visão de direitos urbanos para a do direito à cidade que foi adotada no Estatuto das Cidades.
Nessa evolução esse direito é qualificado como o direito a cidades sustentáveis trazendo a dimensão da sustentabilidade para nossas cidades que deve ser alcançada através de uma política urbana que garanta o seu exercício. São compreendidos como seus componentes a terra urbana, moradia, saneamento ambiental, infraestrutura urbana, transporte e os serviços públicos, o trabalho e o lazer. Os elementos da condição de vida urbana digna é o que predomina nessa visão do direito à cidade que foram transportados da visão dos direitos urbanos.
A gestão democrática das cidades prevista no inciso II do Artigo 2o do Estatuto das Cidades também é um dos componentes do direito à cidades sustentáveis através de uma interpretação integrada das diretrizes da política urbana definidas nessa legislação.
Quanto as pessoas consideradas como titulares do direito à cidades sustentáveis é adotada a mesma compreensão estabelecida para o direito ao meio ambiente. Esse direito tem como titulares as presentes e futuras gerações.
Em razão do Estatuto das Cidades ter sido pioneira como uma legislação nacional que incorpora o direito à cidade na dimensão legal e institucional essa concepção foi uma fonte inspiradora para o processo de internacionalização do direito à cidade que teve como espaço privilegiado os Fóruns Sociais Mundiais organizados no Brasil na cidade de Porto Alegre nos primeiros anos da década de 2000.
2. Questões para uma Visão Nacional e Internacional do Direito à Cidade
Algumas questões precisam ser aprofundadas para uma consolidação da visão do direito à cidade no Brasil e na construção de uma visão universal no processo de internacionalização desse direito dentre as quais destacamos as seguintes:
Qual deve ser a compreensão do termo cidades no âmbito do direito à cidade? Para termos essa compreensão devemos considerar os seguintes: território (urbano e rural), as tipologia de cidades , tamanho e densidade populacional, organização institucional (política e administrativo) das cidades. Por exemplo no Brasil temos uma enorme limitação legal de compreensão de cidades que é definido como sede de Municípios pelo artigo 3º do Decreto-Lei 311 de 1938: A sede do município tem a categoria de cidade e lhe dá o nome.
Quem são as pessoas que devem ser reconhecidos como titulares do direito à cidade considerando os seguintes aspectos: geracional, nacionalidade, diversidade de habitantes que vivem , trabalham e usufruem das cidades, período de residência ou permanência na cidade?
Qual é a categoria do direito à cidade no campo dos direitos humanos ? Individual, coletivo ou difuso?
Como as pessoas podem exercer o direito à cidade e para qual finalidade?
Qual deve ser o objeto ou bem de proteção legal e jurídica do direito à cidade? Em vários países como também no Brasil temos cidades declaradas como de patrimônio histórico ou cultural que resultam numa proteção legal e jurídica para preservar a memória e identidade dessas cidades.
3. A Evolução da Concepção Internacional do Direito à Cidade
3.1. A Visão da Carta Mundial do Direito à Cidade
Essas questões tem norteado a construção da visão do direito à cidade no âmbito internacional. Nos espaços de discussão e articulação sobre as questões urbana nos Fóruns Sociais Mundiais essas questões foram relevantes para a visão sobre esse direito contida na Carta Mundial do Direito á Cidade, bem como nos últimos anos na visão da Plataforma Global do Direito à Cidade e da Nova Agenda Urbana aprovada na Conferência das Nações Unidas Habitat III na cidade de Quito no ano de 2016.
A Carta Mundial do Direito à Cidade define esse direito como o usufruto equitativo das cidades dentro dos princípios de sustentabilidade, democracia, equidade e justiça social. Quanto a sua classificação no âmbito dos direitos humanos é definido como um coletivo dos habitantes das cidades, em especial dos grupos vulneráveis desfavorecidos, que lhes confere legitimidade de ação e organização, baseado em seus usos e costumes.
Uma evolução positiva na Carta Mundial do Direito à Cidade é reconhecer com um componente desse direito a cidade sem nenhuma forma de discriminação e a cidade que preserva a memória e sua identidade cultural. Quanto a extensão do território para o exercício do direito à cidade é compreendido o território das cidades e seu entorno rural.
Na Carta o conceito de cidade possui duas acepções. Por seu caráter físico, a cidade é toda metrópole, urbe, vila ou povoado que esteja organizado institucionalmente como unidade local de governo de caráter municipal ou metropolitano. Inclui tanto o espaço urbano como o entorno rural ou semi-rural que forma parte de seu território. Como espaço político, a cidade é o conjunto de instituições e atores que intervêm na sua gestão, como as autoridades governamentais, legislativas e judiciárias, as instâncias de participação social institucionalizadas, os movimentos e organizações sociais e a comunidade em geral.
Sobre a questão da titularidade são considerados como cidadãos(ãs) todas as pessoas que habitam de forma permanente ou transitória as cidades.
3.2. A Visão da Plataforma Global do Direito à Cidade
A Plataforma Global do Direito à Cidade é uma rede internacional que agrega redes e organizações internacionais da sociedade civil e de governos locais que promoveram uma mobilização e articulação durante o processo da Conferencia das Nações Unidas do Habitat III para a visão do direito à cidade fosse incluída na Nova Agenda Urbana .
Na visão da Plataforma Global o direito à cidade tem a natureza de um direito humano coletivo/difuso conjugado com as funções sociais da cidade e da gestão democrática das cidades que permite a integralidade dos direitos humanos num determinado território com base nas normas internacionais de proteção dos direitos humanos.
Sobre a titularidade o direito à cidade é o direito de todos os habitantes da presente e futuras gerações e adota a visão de cidadão contida na Carta Mundial que abrange tanto os habitantes permanentes como temporários.
A forma de exercer o direito à cidade é o de ocupar, usar e produzir cidades e a finalidade de exercer esse direito é de termos cidades justas, inclusivas e sustentáveis. A cidade é definida como um bem comum para uma adequada condição de vida contendo os seguintes componentes:
a) a cidade livre de qualquer forma de discriminação
b) a cidade com cidadania inclusiva na qual reconhece todos os habitantes, permanentes ou transitórios, como cidadãos;
c) a cidade com maior participação política;
d) a cidade que cumpre as suas funções sociais que garante o acesso equitativo de todos ao uso, ocupação do território;
e) a cidade com espaços públicos de qualidade;
f) a cidade com igualdade de gênero;
g) a cidade com diversidade cultural;
h) a cidade com economias inclusivas;
i) a cidade como um sistema de assentamento e ecossistema comum que respeite os vínculos e conexões entre o rural-urbano.
Por essa visão a cidade como um bem comum é o bem que deve ter proteção legal e jurídica através do direito à cidade.
3.3. A Visão da Nova Agenda Urbana
A Nova Agenda Urbana contempla em grande parte a visão defendida pela Plataforma Global. A visão contida no paragrafo 11 da Agenda considera como titulares os habitantes das presentes e futuras gerações em discriminação de qualquer ordem que pode ser interpretado como o reconhecimento dos habitantes temporários .
Com relação a extensão territorial desse direito são incluídos todos os assentamentos humanos. Sobre a forma de exercer o direito considera o direito de habitar e produzir cidades e assentamentos humanos com a finalidade de serem justos , seguros , saudáveis , resilientes e sustentáveis.
No parágrafo 13 da Nova Agenda Urbana os componentes do direito à cidade da estão contemplados tais como as cidades sem nenhuma forma de discriminação, com função social, com igualdade de gênero, com espaços públicos, com economia inclusiva, com proteção dos seus ecossistemas.
Essa nova visão que traz um novo significado para os direitos humanos funções e formas de vida em nossas cidades e assentamentos humanos precisa ser consolidada e considerada como estratégica pelos países e cidades no enfrentamento das desigualdades sociais, econômicas, culturais e territoriais e dos impactos do aquecimento global e das mudanças climáticas.
4. Questão Emergente para a consolidação da visão do direito à cidade no Brasil
De todas as questões que precisam ser aprofundadas para a consolidação da visão do direito à cidade em nosso país o ponto de partida deve ser a compreensão da cidade como um bem comum como o pilar emergente do direito à cidade trazendo outras visões e pensamentos que possam contribuir nesse sentido como o pensamento do direito ao bom viver oriundo de pensamentos das civilizações indígenas latinas.
*Nelson Saule Júnior é Coordenador da Área do Direito à Cidade do Instituto Polis, Coordenador do Grupo de Apoio da Plataforma Global do Direito à Cidade e Coordenador de Relações Internacionais do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico.
Ações: Direito à Cidade
Eixos: Terra, território e justiça espacial