Biblioteca / Artigos



Degradação ambiental e violação de direitos devem se agravar com PL da devastação


Foto: Pedro Alcantara

De um lado, povos indígenas, quilombolas, extrativistas, camponeses, agricultores familiares e outras comunidades tradicionais resistem e cultivam seus modos de vida com base em práticas e saberes que preservam o meio ambiente. Do outro lado, estão empresas – nacionais e multinacionais – que, em nome do desenvolvimento, planejam e instalam obras e empreendimentos às custas da devastação ambiental e da violação de direitos territoriais e humanos. A esse último bloco somam-se mais alguns atores: o Governo, o poder Judiciário e o Legislativo que, muitas vezes, legitimam a violação de direitos agindo mais em defesa desses interesses econômicos do que das populações tradicionais – ou mesmo do meio ambiente, que atualmente está no centro dos debates de proteção por conta da crise climática global.   

Esse cenário não é novo. Os embates não são de agora. No entanto, a recente a aprovação da Lei Geral do Licenciamento Ambiental (nº 2.159/2021) no Senado na última quarta-feira, dia 21 de maio, acende um alerta urgente.  

No oeste do Pará – estado que irá sediar a Conferência do Clima da ONU em novembro – povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais já conhecem de perto a fragilidade na aplicação e fiscalização dos processos de licenciamento ambiental. Ainda assim, é esse instrumento que, até agora, tem funcionado como uma barreira mínima contra a devastação de seus territórios e a natureza. Com flexibilização das regras, o cenário do futuro é de ainda mais destruição, avanço de empreendimentos sob territórios tradicionais, intensificação de conflitos territoriais e violação de direitos. 

Na região banhada pelo Rio Tapajós, povos originários, comunidades tradicionais e movimentos sociais denunciam há décadas os impactos de grandes empreendimentos para o meio ambiente e para seus modos vida. Eles enfrentam tanto posturas omissas de órgãos que deveriam ser responsáveis por proteger o meio ambiente, quanto decisões judiciais que, em vez de proteger seus direitos, acabam por acentuar desigualdades e perpetuar o racismo ambiental nos territórios.  

Em março deste ano, indígenas e comunidades tradicionais da Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns denunciaram, por meio nas redes sociais, a dragagem irregular no Rio Tapajós, autorizada pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará (Semas) e pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit). A atividade foi iniciada sem um processo regular de licenciamento, sem aviso prévio – com as comunidades sendo surpreendidas pelas máquinas em funcionamento no meio do rio -, sem estudos de impacto ambiental e sem consulta e consentimento prévios, ambos garantidos por normas legais nacionais e internacionais como a Constituição Federal, resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho.  

Embora o Ministério Público Federal tenha atuado e as comunidades tenham se mobilizado para barrar, a mais recente – e preocupante – decisão do Poder Judiciário foi que, diante da suposta emergência para retirada de bancos de areia do rio, o devido processo de licenciamento ambiental poderia ser dispensado. No entanto, a região não enfrenta seca ou estiagem neste período. A “emergência”, neste caso, parece ser mais uma justificativa para colocar os interesses do agronegócio – que depende da dragagem para o escoamento de grãos pelo Rio Tapajós até o mercado internacional – acima dos direitos dos direitos dos povos. Isso sem mencionar os impactos ambientais permanentes provocados por esse tipo de intervenção no rio.  

Outro caso que exemplifica a falha do sistema de justiça e a postura irregular da Secretaria de Meio Ambiente é o caso do Porto da Petróleo Sabbá S.A, localizado em Itaituba. Em abril deste ano, o porto teve sua licença de operação suspensa por decisão judicial, atendendo a um pedido da Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público Federal contra a empresa e a Semas. O MPF pediu a suspensão das licenças pela ausência de consulta prévia, livre e informada aos povos indígenas Munduruku, especialmente da Aldeia Praia do Índio, localizada a apenas 11 quilômetros do empreendimento. Além da violação do direito à consulta, a ausência de estudos ambientais também foi destacada na Ação.  

No entanto, em menos de um mês, a decisão foi revertida. O Tribunal Regional Federal da 1º Região (TRF1) acatou o argumento de que a paralisação das atividades do porto poderia comprometer o abastecimento de combustíveis em toda região Norte, considerou esse um risco concreto e imediato, capaz de causar grave prejuízo ao “interesse público”. A suspensão da licença representaria uma importante conquista para os povos indígenas e abriria caminho para a urgente revisão do licenciamento ambiental da empresa, que há anos opera sem considerar adequadamente seus impactos sobre o meio ambiente e povo Munduruku.  

A questão é: como um porto de combustíveis (considerado carga perigosa com alto potencial de degradação ambiental) é licenciado sem estudos de impacto ambiental? Mais uma vez, a vida e os direitos de povos indígenas e o meio ambiente foram deixados de lado pelo sistema de Justiça.  

Se em 2025, o “interesse público” continua a ser utilizado para justificar a sobreposição de projetos econômicos ao cumprimento de normas que garantem a preservação ou recuperação do meio ambiente, é preciso perguntar: de qual interesse público estamos falando? E a quem ele realmente serve? Porque se hoje, a Justiça não considera suspender atividades que não seguiram o devido processo de licenciamento ambiental – mesmo com alto potencial de degradação e impacto direto nos modos de vida de povos indígenas -, é urgente rever a responsabilização do órgão licenciador, nesse caso, a Semas do Governo do Pará.  

Tanto no caso do porto em Itaituba, quanto da dragagem na hidrovia do Tapajós e dos 41 portos do agronegócio mapeados pelo estudo Portos e Licenciamento Ambiental do Tapajós, a conduta da Semas revela uma postura sistemática de omissão. O estudo elaborado por Terra de Direitos com base na análise de documentos de licenciamento ambiental obtidos junto aos órgãos competentes aponta uma série de falhas e irregularidades; portos em operação sem todas as licenças exigidas, ausência de estudos ambiental, licenças vencidas que continuam válidas com base no princípio da renovação automática – prática proposta no novo marco legal do licenciamento – proposta contemplada no novo marco do licenciamento -, além da ausência de consulta prévia aos povos tradicionais.  

Ou seja, em vez de atuar com base no princípio da prevenção e precaução de danos ao meio ambiente, o Governo do Pará tem reiteradamente autorizado ou permitido atividades sem o devido rigor ambiental, ignorando os riscos e as consequências para os povos e os ecossistemas afetados. O que se desenha para o futuro com a nova Lei Geral do Licenciamento Ambiental parece ser a manutenção da sistemática violação de direitos humanos e ambientais no Pará e em todo Brasil.  

Uma das mudanças do Projeto de Lei diz sobre a necessidade de consulta a povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais. Na nova lei, esses povos só deverão ser ouvidos sobre a instalação dos empreendimentos se seus territórios estiverem 100% titulados ou demarcados. Ocorre que a maioria dos territórios tradicionais não estão titulados ou demarcados.  

No caso dos povos quilombolas, por exemplo, somente 24 territórios de todo o Brasil estariam aptos a serem consultados de acordo com a nota técnica, da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) e a Terra de Direitos. Isso representa apenas 2% do total de comunidades. Em Santarém – oeste do Pará -, nenhuma comunidade quilombola seria consultada, já que atualmente somente uma das mais de 12 comunidades tem o território titulado, mas de forma parcial. 

A nota técnica aponta que a nova lei deve promover e acelerar a degradação ambiental nos territórios quilombolas, intensificar o racismo ambiental e violar direitos fundamentais já garantidos pelas comunidades tradicionais do Brasil.  

Paralelo a isso, estudos mostram que essas mesmas comunidades tem um papel central no enfrentamento aos efeitos das mudanças climáticas, com suas práticas e saberes tradicionais. De acordo com o MapBiomas, entre 1985 e 2022, os territórios quilombolas apresentaram as menores taxas de desmatamento: 4,7% contra 17% de áreas privadas.  

Em um mundo em colapso ambiental, onde a manutenção das florestas, das águas e a preservação ambiental são o caminho para reverter a crise do clima, o Brasil vai permitir que empresas desenvolvam atividades, obras, projetos e empreendimentos sem licenciamento, estudos ambientais, relatórios de diminuição dos efeitos de degradação ao meio ambiente, se valendo somente da autodeclaração de compromisso.  

Se com um licenciamento ambiental regulado, temos casos como os do Tapajós, Brumadinho, Mariana, Belo Monte, e tantos outros, como é possível garantir um compromisso com o meio ambiente de empresas privadas que se valem da omissão de órgãos do meio ambiente e do sistema de justiça para continuar suas atividades poluidoras sem consequências?  

Diante de tudo isso e em um momento crucial como o da COP 30, o Brasil tem a responsabilidade de liderar o enfrentamento a crise climática pelo exemplo. A verdadeira justiça social e ambiental não será alcançada enquanto os interesses econômicos se sobrepuserem aos direitos fundamentais das populações que preservam nosso maior patrimônio: a natureza.   

Selma Corrêa é assessora jurídica popular da Terra de Direitos;  

Lanna é jornalista e assessora de comunicação na Terra de Direitos.   



Ações: Empresas e Violações dos Direitos Humanos
Eixos: Terra, território e justiça espacial
Tags: Pará,licenciamento ambiental,semas,povos tradicionais