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A liderança das comunidades quilombolas por mulheres negras é um legado de Tereza de Benguela


Mulheres da comunidade de Saracura, em Santarém (PA), seguem na luta pela titulação quilombola - Lanna Paulo Ramos

Celebrado no dia 25 de julho, o Dia das Mulheres Negras Latino-Americanas e Caribenhas e Dia Nacional Tereza de Benguela fala de um tempo presente no cotidiano de toda comunidade quilombola pelo país afora: as mulheres pretas assumem um papel de liderança na luta e resistência em defesa dos direitos destes povos tradicionais nos seus modos de ser e viver. 

A ocupação coletiva de terras, a solidariedade entre os pares e a capacidade de autogestão foram e ainda são as principais características dos quilombos - local de resistência, de luta, de contraposição às opressões desde o regime escravocrata. Nestes locais - naquele tempo e ainda hoje - as mulheres pretas assumem um papel central, assim como as mulheres que as antecederam. 

Ao longo da história quilombola no Brasil, podemos destacar algumas figuras femininas emblemáticas como Dandara dos Palmares, Esperança Garcia, Anastácia Luiza Mahín, mas hoje o foco é no legado de Tereza de Benguela, pois comemora-se seu dia desde 2014, através da Lei n. 12.987. 

Tereza de Benguela foi uma importante líder quilombola que viveu durante o século XVIII, responsável pela resistência negra e indígena de sua comunidade por duas décadas, e seu legado continua sendo seguido por territórios quilombolas em todo o Brasil, como no Quilombo da Rasa em Armação dos Búzios (RJ), e na Comunidade Pedro Cubas de Cima na cidade de Eldorado Paulista (SP) Em ambas comunidades foram e têm sido as mulheres negras que desempenham um papel central na luta pelo território. 

O Quilombo da Rasa é localizado na praia que lhe dá o nome, na região dos Lagos, reconhecido pela Fundação Cultural Palmares em 2005, sob a liderança de Carivaldina Oliveira da Costa, conhecida como “Tia Uia”, falecida em 10 de junho de 2020, vítima da Covid-19..  

A luta de Tia Uia em vida foi pela preservação da memória, cultura e tradição quilombola, pela regularização das terras, pelo acesso à direitos sociais e principalmente contra especulação imobiliária, por se tratar de uma comunidade urbanizada. 

Tia Uia fez história ao incentivar a participação feminina em movimentos políticos contra o racismo e por reconhecimento do território, conduzindo a formação de associações e cooperativas, lutando pelo acesso à educação e saúde, sendo esse seu legado deixado para a comunidade. 

O Quilombo Pedro Cubas de Cima localiza-se na região do Vale do Ribeira, em São Paulo, nomeado em homenagem ao seu fundador ex-escravizado. A comunidade passou por um processo de desterritorialização durante o período da ditadura militar, pelo avanço da grilagem de terras, e o processo de retomada iniciou-se em 1997, protagonizado por mulheres quilombolas. 

O território de Pedro Cubas de Cima foi reconhecido pela Fundação Cultural Palmares em 2006, sob liderança de Edvina Maria Tie Braz da Silva, conhecida como “Dona Diva”, ainda na luta pela regularização fundiária e resistência para permanência no território, aos 76 anos de idade. 

Tia Uia e Dona Diva assumiram a alcunha de “Griot”, termo utilizado na África Ocidental para designar aqueles que têm por vocação transmitir as histórias e conhecimento do/para seu povo, e suas histórias compartilham do mesmo legado: Tereza de Benguela.  

Embora nunca tenham se conhecido em vida, essas mulheres compartilham características, e seus territórios - apesar de constituídos em diferentes momentos históricos e em diferentes regiões - também possuem pontos em comum, chamados de Quilombidades. São mulheres que transcendem seus territórios e são inspirações para as demais mulheres, das próprias comunidades e de fora delas.

O que todas as comunidades quilombolas também compartilham em comum é da previsão constitucional da obrigação do Estado em emitir os títulos de seus territórios, presente no Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. 

No entanto, apesar de existir a previsão constitucional, ainda não há nenhuma regra que obrigue o Estado a destinar recursos financeiros para realização das titulações. Assim, a previsão constitucional de titulação de terras quilombolas está sujeita aos interesses políticos, que em cenário favorável às comunidades pode destinar mais verbas, e quando menos favorável destinar pouca verba. 

Deste modo, quando um governo não se alinha à pauta quilombola, não é necessário mudar a Constituição ou os decretos que regem o processo para titular as terras quilombolas, basta inviabilizar as operações com corte no orçamento, como têm acontecido nos últimos anos. Declarado opositor da política de titulação quilombola, o presidente Jair Bolsonaro (PL) segue com o compromisso realizado em campanha eleitoral, ainda no ano de 2018: de não titular nem um centímetro de terra aos povos quilombolas. Em 2021, por exemplo, foram utilizados apenas R$164 mil em atividades de reconhecimento e indenização de propriedades quilombolas (dados Inesc), etapa essencial no processo para garantir o direito ao território ao povo tradicional. 

As comunidades quilombolas no Brasil compartilham do direito à titulação dos seus territórios e também da demora do Estado em emiti-los. Em mais de 30 anos da promulgação da Constituição Federal, apenas cerca de 10% dos territórios quilombolas foram titulados (segundo dados do Incra), de modo que a luta pelo acesso e permanência nos territórios quilombolas foi a luta da vida de Tia Uia, e continua sendo a Luta de Dona Diva e tantas outras mulheres quilombolas que assumiram o legado de Tereza de Benguela. 

* Gabriele Gonçalves de Souza é assessora jurídica da Terra de Direitos e quilombola da comunidade da Rasa, em Armação dos Búzios (RJ) 

* *Kathleen Tie Scalassara é assessora jurídica da Terra de Direitos e quilombola da comunidade Pedro Cubas de Cima, em Eldorado (SP) 



Ações: Quilombolas
Eixos: Política e cultura dos direitos humanos
Tags: Tereza de Benguela,25 de julho,quilombo,mulheres negras