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ADI 5.553 - Agrotóxicos são essenciais? Benefícios tributários em pauta no STF


Artigo publicado nesta terça-feira (18) no JOTA.INFO  

Por Naiara Andreoli Bittencourt/Talita Fátima Montezuma/Jaqueline Pereira Andrade

A ação direta de inconstitucionalidade n. 5553, que questiona o fim da isenção fiscal sobre os agrotóxicos, será julgada nesta quarta-feira (19/2) pelo Supremo Tribunal Federal. A ADI objetiva a declaração de inconstitucionalidade das Cláusulas 1ª e 3ª do Convênio nº 100/97 do Conselho Nacional de Política Fazendária que reduz 60% da base de cálculo do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS) sobre os agrotóxicos e autoriza a ampliação de isenções de alíquotas em até 100% pelos estados. Questiona, ainda, o Decreto 7.660/2011 que concede isenção total do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), conforme a Tabela que lista alguns tipos de agrotóxicos.

Veja-se, a ADI não pleiteia o fim do uso de agrotóxicos ou mesmo sua sobretaxa, mas tão somente os benefícios tributários que tais produtos têm no país.

O PSOL, autor da ação, e os amici curiae que corroboram os argumentos aduzidos apontam a violação direta aos princípios constitucionais e direitos fundamentais, especialmente ao Direito Fundamental ao Meio Ambiente Equilibrado (art. 225 da Constituição Federal); ao Direito Fundamental à Saúde (art. 196 da CF; ao Direito Fundamental à alimentação adequada e a Segurança Alimentar e Nutricional (art. 6º da CF) e aos Princípios da Seletividade e da Essencialidade Tributária (art.153, §3º, inciso I e art. 155, § 2º, inciso III da CF).

Os atos normativos questionados, ao concederem isenção ou redução sobre a tributação aos agrotóxicos, os identificam como produtos essenciais, apesar de serem cientificamente e comprovadamente danosos à saúde e ao meio ambiente. Essa decisão política, para tanto, privilegia determinadas parcelas de grupos econômicos e produtivos do país, especialmente aos setores do agronegócio extensivo, com um altíssimo custo à coletividade e à população brasileira, ao patrimônio e ao erário público.

Veja-se que o princípio da seletividade e da essencialidade tributária estão intimamente interligados com o princípio da capacidade contributiva, que corresponde à tributação conforme o potencial econômico dos contribuintes, isto é, há a possibilidade do legislador ou do poder executivo minimizar ou excluir a incidência tributária sobre produtos, mercadorias ou serviços com base em sua essencialidade. Assim, “quanto maior a importância social do bem consumido, menor será a carga tributária incidente sobre eles” .

Logo, a seletividade a que se refere a essencialidade de produtos básicos do consumo da população brasileira, entre os diferentes estratos sociais de renda, é uma forma de não onerar em demasiado o acesso a tais bens. O paradoxo se instala quando há subversão de tal princípio colacionado à redução das desigualdades sociais e regionais brasileiras, para a promoção de lucros e facilidades a determinados setores produtivos brasileiros em detrimento da saúde pública e da biodiversidade nacional.

Ressalta-se que tais princípios são preceitos constitucionais e não mera escolha de política fiscal do ente tributante. O Judiciário, ante a injustificada escolha do Poder Executivo, deve reequilibrar a balança da justiça tributária e da capacidade contributiva no Brasil. Nos autos da ação, o Ministério da Fazenda não soube explicar as razões de ordem econômica que justificam as isenções, tampouco apresentou estudos sobre a eficiência desta política ou análises de transição do modelo de subsídio tributário. Assim, faltam parâmetros para esta política e as decisões discricionárias do poder executivo não se confundem com as decisões arbitrárias ou que violem os direitos fundamentais garantidos pela Constituição Federal, afinal não é qualquer insumo – especialmente os potencialmente danosos – que podem ser considerados essenciais a partir de uma decisão estritamente política do Poder Executivo, sob pena de esvaziamento da própria existência do princípio constitucional.

Ademais, não se pode olvidar que a Constituição Federal de 1988 instaura o Estado Democrático de Direito Ambiental, que está em consonância intrínseca com o desenvolvimento econômico a partir de um novo paradigma que valoriza a “diversidade cultural e a consolidação do processo democrático no país, com ampla participação social na gestão ambiental”. Neste âmbito, como ressalta o parecer da Procuradoria Geral da República na ADI 5553, deve imperar o respeito aos princípios basilares do direito ambiental na tratativa séria dos benefícios fiscais aos agrotóxicos, em especial o respeito aos princípios da responsabilidade e solidariedade intergeracional, da precaução e do poluidor-pagador.

O que ocorre com as isenções ou benefícios fiscais em verdade são políticas extrafiscais reversas que resultam na acumulação de lucro privado em detrimento da proteção do núcleo duro dos direitos fundamentais protegidos pela Carta Magna.

Uso de agrotóxicos no país

O censo agropecuário de 2017 traz o índice do custo com agrotóxicos com base no tamanho por área de propriedade. Propriedades com até 100 hectares, as maiores em número no Brasil, com cerca de 1.602.774 imóveis, cultivadas majoritariamente pela agricultura familiar, afirmam gastar até 4,9% das despesas de produção com agrotóxicos.

Por outro lado, as grandes propriedades, com mais de 500 hectares, que representam menos de 17 mil propriedades no Brasil, afirmam gastar mais com agrotóxicos. Nesse sentido, a ação também busca efetivar o princípio da capacidade contributiva e justiça social tributária – quem tem maior capacidade econômica, paga mais. Ou, no caso, paga a tributação regular, haja vista que o provimento da ação sequer implica em sobretaxação aos agrotóxicos.

Conforme a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura, o Brasil é o país que mais gasta com agrotóxicos no mundo. As culturas de soja, milho e cana-de-açúcar representam 76% de toda a área plantada do Brasil e foram os que mais consumiram agrotóxicos, correspondendo a 82% de todo o consumo do país em 2015.

Com base em levantamento de pesquisadores da UFMT, a soja é a cultura que mais utiliza agrotóxicos no Brasil, representando 63% do total, seguido do milho, da cana-de-açúcar e algodão. Tais números indicam que o maior volume de agrotóxicos utilizados no país destina-se à quatro culturas majoritariamente exportadas. Assim, o uso intensivo de agrotóxicos é direcionado para a produção de commodities, não de alimentos.

Crédito: PixabayMas afinal, quem produz a maioria dos alimentos no Brasil? Segundo os dados do IBGE (Censo agropecuário 2017), cerca de 70% dos estabelecimentos possuem área entre 1 e 50 hectares e tem como base a agricultura familiar, grupo este com baixa despesa no custo de produção com agrotóxicos. São estes estabelecimentos da agricultura familiar que produzem 69,6% do feijão, 83% da mandioca, 45,6% do milho em grão, 21% do trigo e 38% do café, os quais permanecem no mercado brasileiro para consumo interno da população brasileira.

Isto é, a tributação dos agrotóxicos impacta quase que de forma insignificante na produção massiva de alimentos no país e no repasse ao consumidor. Impactará grandes proprietários rurais que destinam a produção para exportação e que já são beneficiados por outros incentivos e benefícios no sistema tributário nacional, como é o caso das desonerações para exportações e do financiamento por bancos públicos. É uma escolha que premia poucos, mas impacta muitos.

O cenário é tão grave que mesmo os órgãos como o IBAMA, a ANVISA e o Ministério Público do Trabalho, se manifestaram na ADI 5553 reconhecendo que há correlação entre os agravos à saúde do trabalhador e os danos ao ambiente e o uso de agrotóxicos, ainda que a utilização ocorra conforme os regulamentos existentes. Os órgãos manifestaram preocupação com o cenário e o Tribunal de Contas da União sugere medidas de avaliação e transição da atual política.

Mais do que isso, o Tribunal de Contas da União, no Relatório de Auditoria 028.938/2016-0, afirmou que “ao reduzir o preço dos agrotóxicos por meio de renúncia tributária para a importação, a produção e a comercialização interestadual de defensivos químicos, o governo brasileiro incentiva o uso de agrotóxicos e atua de forma contraditória e contraproducente aos objetivos das políticas que buscam garantir sistemas sustentáveis de produção de alimentos”. No plano internacional, os relatores do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) recomendaram ao Brasil “que haja a eliminação de subsídios aos pesticidas e o pagamento de taxas por sua utilização” (Recomendação “r” do Relatório A/HRC/34/48).

E os custos externos ou indiretos aos cofres públicos?

Pesquisa publicada neste mês por pesquisadores da ABRASCO indica que somando todas as desonerações fiscais sobre agrotóxicos no país, o Estado brasileiro perde R$ 10 bilhões de reais por ano, dos quais 63% referem-se ao ICMS.

De outro lado, estima-se que somente para tratamentos de saúde decorrentes de intoxicações agudas por agroquímicos, o estado do Paraná gasta US$ 1,28 para cada US$ 1 utilizado na compra de agrotóxicos, conforme artigo publicado por pesquisadores da Fiocruz. Nesta conta não estão os danos com intoxicações crônicas, cânceres, danos ambientais, perda da biodiversidade, extermínio de insetos polinizadores e nem o prejuízo privado de inúmeros agricultores que têm suas plantações ou cultivos contaminados com agrotóxicos disseminados pelo ar, pelo solo e pela água. Vale lembrar que 1 em cada 4 municípios brasileiros têm as águas contaminadas por 27 tipos de agrotóxicos, 16 destes considerados altamente tóxicos, como aponta dados do SISAGUA.

Isto é, os benefícios fiscais sobre os agrotóxicos confere altíssimos custos indiretos ou externos. É um verdadeiro deslocamento de recursos públicos aos setores privados, de forma obscura e implícita. É a privatização do lucro e a socialização do dano.

Alimentos essenciais para a vida da população brasileira devem ter benefícios fiscais. Não os agrotóxicos. A agricultura orgânica e agroecológica cresceu 300% no país nos últimos sete anos. Mas é preciso incentivo e políticas públicas. Enquanto o Estado beneficiar financeiramente produtos nocivos, a transição agroecológica fica ainda mais distante.  

Além disso, os incentivos fiscais aos agrotóxicos violam qualquer indicativo de política extrafiscal brasileira baseada em parâmetros constitucionais e científicos, impedindo a eficiência do Estado na busca do equilíbrio necessário à aplicação dos princípios de justiça tributária ou justiça social, no reequilíbrio dos comportamentos dos agentes econômicos pelo Estado. Isto influencia na defesa do meio ambiente, pois incide sobre a produção e o consumo, aumentando ou desestimulando a produção de produtos nocivos ao meio ambiente, ou aqueles que o processo de produção afete negativamente a natureza.

A renúncia de arrecadação com os agrotóxicos é no mínimo paradoxal a um país que vive uma extrema crise financeira, que propagandeia a imprescindibilidade de cortes em investimentos sociais e políticas públicas, especialmente após a aprovação da Emenda Constitucional nº 95/2016. É a edificação de um Estado liberal no discurso, mas que de fato assume os ônus dos impactos nocivos da iniciativa privada de produção agroindustrial, abstendo-se de fomentar políticas públicas e sociais adequadas à promoção da vida, da saúde e da segurança e soberania alimentar da população brasileira.

NAIARA ANDREOLI BITTENCOURT – Advogada da organização de Direitos Humanos Terra de Direitos no eixo de Biodiversidade e Soberania Alimentar. Mestra e Doutoranda em Direitos Humanos e Democracia na Universidade Federal do Paraná.
TALITA DE FÁTIMA MONTEZUMA – Professora de Direito da Universidade Federal Rural do Semi-árido. Doutoranda em Direito pela Universidade de Brasília. Membro do Núcleo Tramas/UFC.
JAQUELINE PEREIRA ANDRADE – Assessora Jurídica da organização de Direitos Humanos Terra de Direitos e mestranda em Direitos Humanos e Democracia da Universidade Federal do Paraná.



Ações: Biodiversidade e Soberania Alimentar
Eixos: Biodiversidade e soberania alimentar