Das fronteiras dos direitos às fronteiras territoriais: Impactos do agronegócio na agrobiodiversidade e direitos humanos
Terra de Direitos
"É cada vez mais notória a movimentação das empresas no sentido de conquistar selos de responsabilidade social e ambiental, a fim de serem reconhecidas como as verdadeiras produtoras de alimentos capazes de acabar com a fome no mundo. Mas o que está por trás desses interesses é o lucro imediato e, não raro, as violações de direitos humanos."
Esse questionamento permeia a artigo "Das fronteiras dos direitos às fronteiras territoriais: Impactos do agronegócio na agrobiodiversidade e direitos humanos", do advogado popular da Terra de Direitos, André Dallagnol.
Publicado no caderno “Empresas e violações de direitos: Esse lucro não é direito”, o artigo traça um panorama entre direitos econômicos, sociais, culturais ou ambientais, que encontram os limites das relações em que o debate, muitas vezes abstrato, dos direitos humanos passa a fazer sentido prático.
Elaborado pela Terra de Direitos, o caderno tem como objetivo reafirmar a importância da construção de uma efetiva política pública para a proteção de defensoras e defensores de direitos humanos, partindo de uma reflexão crítica a respeito dos avanços e desafios enfrentados em sua implementação.
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Confira o artigo:
Das fronteiras dos direitos às fronteiras territoriais: Impactos do agronegócio na agrobiodiversidade e direitos humanos
Por André Dallagnol, advogado popular da Terra de Direitos
“Na luta do bem contra o mal, é sempre o povo que morre” – Eduardo Galeano.
Tratar da temática “Empresas, Direitos Humanos e Agrobiodiversidade”, é um desafio, na medida em que cada um desses elementos isolados já seriam capazes de dar um amplo debate. Porém, a presente reflexão não pretende esgotar o assunto, ao contrário, pretende fornecer mais elementos para a discussão.
É cada vez mais notória a movimentação das empresas no sentido de conquistar selos de responsabilidade social e ambiental, a fim de serem reconhecidas como as verdadeiras produtoras de alimentos capazes de acabar com a fome no mundo. Mas o que está por trás desses interesses é o lucro imediato e, não raro, as violações de direitos humanos.
São nos direitos econômicos, sociais, culturais ou ambientais, que se encontram os limites das relações em que o debate, muitas vezes abstrato, dos direitos humanos passa a fazer sentido prático. Assim, a problemática reside justamente nas fronteiras entre as empresas, os direitos humanos e a agrobiodiversidade.
Esta última, entendida aqui como toda a diversidade biológica existente no meio ambiente, somada à gama de patrimônio natural e social relacionado à alimentação e agricultura.
Mas quem são os humanos por trás desses direitos e dessa agrobiodiversidade?
O escopo da presente análise está restrito às atividades de empresas que impactam direta ou indiretamente nos direitos e no quotidiano dos povos dos campos, das águas e das florestas, e, por sua vez na agro e biodiversidade. Assim, pretende-se demonstrar diversos aspectos em que as violações aos direitos dessas pessoas ocorrem, impactando também a sociedade em geral.
Desde a entrada em vigor da Lei de Biossegurança nº 11.105 de 2005 a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), já autorizou a comercialização de uma variedade de árvore, um mosquito, uma enzima, e mais de 40 plantas transgênicas. A maioria dessas aprovações é de plantas geneticamente modificadas para serem tolerantes a agrotóxicos vendidos em conjunto, na forma de pacote tecnológico, aos produtores rurais e agricultores. Desde então as multinacionais do agronegócio batem recordes de lucro[1], e mesmo em cenários de crise econômica seu crescimento não é afetado. Mas isso não acontece por puro milagre.
Em dez anos essas empresas levaram o Brasil à liderança mundial no consumo de agrotóxico[2] (perdendo somente para os Estados Unidos), além de colocarem o país entre os maiores plantadores de transgênicos[3]. Na mesma velocidade em que o Brasil se afirma líder do modelo agroexportador, os conflitos territoriais de grandes latifundiários com camponeses, povos e comunidades tradicionais se acentuam, assim como o, consequente aumento dos impactos ambientais da expansão do modelo agrícola como negócio.[4]
Como visto, de lá pra cá, quem paga a fatura desse milagre econômico são as diferentes classes da sociedade, que sentem os impactos desse modelo na ampliação da desigualdade social, na redução do acesso a alimentos saudáveis e na infinidade de novas promessas para velhos problemas.
Sessenta por cento do território brasileiro é ocupado por propriedades rurais – desse total, 40% estão nas mãos de pouquíssimos latifundiários, enquanto o restante está dividido entre 4,2 milhões de agricultores. O restante do território nacional está dividido entre a soma de todas as áreas urbanas, todas as unidades de conservação e todas as terras indígenas - e mesmo essas fronteiras começam a ser ameaçadas ao se mostrarem como possíveis limites ao crescimento do poder econômico das empresas do agronegócio.
Para que essas fronteiras sejam superadas, alterações de leis são discutidas para flexibilizar normas de proteção ambiental, criar novas formas de apropriação territorial, e reduzir ou inviabilizar direitos dos camponeses, povos e comunidades tradicionais.
A maior prova disso são as alterações trazidas pelo Novo Código Florestal, aprovado em 2012, que trouxe inúmeras flexibilizações à proteção ambiental e criou mecanismos de anistia, compensação e financeirização da natureza. A recente aprovação da Lei 13.123/2015, denominada marco legal da biodiversidade também é exemplo dessa questão. Na prática, a nova lei legalizou a biopirataria e reduziu direitos de agricultores, povos e comunidades tradicionais ao impedir que os mesmos neguem o acesso ao o patrimônio genético e seus conhecimentos tradicionais.
As novas formas de apropriação territorial se dão pelos mecanismos de compensações financeiras atreladas a reduções de danos ambientais, como através do mecanismo de remuneração por Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal (REDD e REDD+)[5]. A apropriação dá-se também através do pagamento por serviços ambientais, pois os contratos que dão vida aos dispositivos legais invariavelmente condicionam sua execução à limitação do livre uso do território pelas comunidades contratantes.
Outras formas de apropriação territorial são aquelas que se dão indiretamente através dos pacotes tecnológicos de plantas geneticamente modificadas e patenteadas, associadas a determinados agrotóxicos vendidos com a promessa de ampliar a produtividade. Esse é o caso do eucalipto transgênico da empresa Futuragene, recentemente aprovado pela CTNBio. A liberação da primeira árvore geneticamente modificada do mundo aconteceu mesmo diante de protestos de movimentos sociais e da sociedade civil organizada, por não terem sido considerados os impactos sociais, econômicos e ambientais da aprovação.
Ao perderem espaço para monocultoras, agricultores, povos e comunidades tradicionais perdem autonomia sobre a sua territorialidade para as empresas que vendem pacotes tecnológicos. Pouco a pouco, vão sendo forçados a abandonar costumes, práticas e saberes.
É justamente na perda da autonomia dos agricultores, dos povos e comunidades tradicionais, que se coloca em cheque toda a agrobiodiversidade.
Direitos internacionais
No ordenamento jurídico, nacional e internacional, encontram-se as balizas para as relações sociais, especialmente entre as empresas e os humanos que manejam a agrobiodiversidade, como os povos dos campos, das águas e das florestas.
Internacionalmente são garantidos, por intermédio de acordos e tratados internacionais, o mínimo de direitos a partir dos quais outros devem - ou deveriam - se desdobrar a nível nacional.
Esses direitos são normalmente relacionados à identidade diferenciada, à autodeterminação, à territorialidade, à cultura (Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho) e ao livre acesso e uso da agro e biodiversidade (Convenção da Diversidade Biológica e Tratado Internacional sobre Recursos Fitogenéticos relacionados à Alimentação e Agricultura). Em todos eles, está previsto o direito de participar nas decisões sobre processos que tenham interesses mediante mecanismos adequados que possibilitem a consulta prévia e informada.
Pois bem, esses dispositivos internacionais, aliados com algumas leis nacionais (tais como os artigos 215, 216 e 225 da Constituição Federal) foram inspirando a criação de poucas - mas importantes - leis e políticas públicas voltadas aos povos do campo, das águas e das florestas, que possuem importante papel na agricultura e na utilização da biodiversidade.
Dentre essas medidas, destaca-se o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) que, apesar da disparidade de investimentos comparados com os investimentos aportados para o agronegócio, tiveram papel de destaque na histórica retirada do Brasil do mapa mundial da fome, da FAO. Apesar de ocupar menos de 20% do território nacional e enfrentar dificuldades com acesso a crédito, a agricultura familiar é responsável pela produção de 70% dos alimentos consumidos no Brasil[6].
É preciso observar que as empresas baseiam-se na visão técnico-científica de dominação da natureza para estar relacionadas à imagem “do bem”. Suas ações supostamente combatem “o mal”, materializado na fome, nas doenças e nas desigualdades sociais. É nesse campo de batalha que os sujeitos que efetivamente alimentam a sociedade, que guardam e diversificam o patrimônio cultural e ambiental, resguardando a saúde da população, são invisibilizados pelos poderosos interesses do mercado capitalista, bem como são expostos a inúmeras violações de direitos humanos. E é nesse cenário que os povos do campo, das águas e das florestas são expostos à inúmeras violações de direitos humanos.
[3] Levantamento do Serviço Internacional para Aquisição e Aplicações em Agrobiotecnologia (ISAAA): 2015;
[4] Comissão Pastoral da Terra: 2015;
[5] Do inglês Reducing Emissions from Deforestation and Forest Degradation (REDD)
[6] Ministério do Desenvolvimento Agrário: 2012.
Ações: Conflitos Fundiários,Biodiversidade e Soberania Alimentar
Eixos: Terra, território e justiça espacial
Tags: André Dallagnol,agronegócio,impactos,agrobiodiversidade,concentração fundiária