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Direitos constitucionais dos quilombos


Artigo de Dalmo de Abreu Dallari, jurista e professor emérito da Faculdade de Direito da USP, publicado na Gazeta Mercantil/ Caderno A – Pág. 10)

Os constituintes brasileiros de 1988, inspirados nos princípios proclamados pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, deram ao Brasil uma nova Constituição, tendo como um de seus objetivos fundamentais, claramente fixados no Preâmbulo, “assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais”. Nessa linha, foi inserida no corpo da Constituição a definição dos direitos humanos como normas constitucionais, incluindo os direitos individuais e os direitos econômicos, sociais e culturais.

Para garantia do efetivo exercício desses direitos, ficou estabelecido, no artigo 5, parágrafo 1, que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. Essa disposição constitucional afirma com clareza, sem qualquer possibilidade de subterfúgios sob pretexto de interpretação, a auto-aplicabilidade das normas relativas a todos os direitos humanos. É importante lembrar que os constituintes aprovaram esse dispositivo para impedir que se reproduzisse, também quanto à nova Constituição, a maliciosa colocação de obstáculos falsamente jurídicos à efetivação dos direitos fundamentais solenemente afirmados no texto constitucional.

Essa manobra jurídica, verdadeira chicana, consistia na afirmação da necessidade de regras inferiores regulamentadoras para que as normas constitucionais pudessem ser aplicadas. Isso foi usado para impedir a participação dos trabalhadores nos lucros das empresas, direito assegurado pela Constituição de 1946. Alegou-se a necessidade de uma lei regulamentadora e, graças à enorme influência do poder econômico no Legislativo, impediu-se que fosse aprovada qualquer lei regulamentando as normas constitucionais sobre aquele direito. E o Executivo, sob a mesma influência, ficou omisso, como se não tivesse poder regulamentar. E assim a Constituição foi usada como fachada ilusória, destinada a calar reivindicações porque os direitos já estavam proclamados.

Hoje não é mais possível usar de subterfúgios semelhantes para impedir, entre outras coisas, a aplicação do artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, segundo o qual “aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os respectivos títulos”. Essa norma, que define e garante direitos fundamentais, é auto-aplicável, por força do que dispõe o parágrafo 1 do artigo 5 da Constituição.

E o referido artigo 68 não exige lei regulamentadora, sendo juridicamente perfeita a edição de decreto federal, estabelecendo regras administrativas visando dar àquela norma constitucional efetividade prática, possibilitando o gozo dos direitos. Além dessa base legal para o decreto regulamentador, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que integra a legislação brasileira desde 1992, determina que os Estados signatários, entre os quais o Brasil, adotem todas as providências necessárias para a eficácia daqueles direitos. Soma-se a isso a adesão do Brasil à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, que também integra a ordem jurídica positiva brasileira e determina que sejam garantidos os direitos dos povos “cujas condições sociais, culturais e econômicas os distingam de outros setores da coletividade nacional”, como é o caso dos quilombos.

E foi justamente para a garantia efetiva dos direitos individuais e sociais dos quilombolas que o governo federal editou o decreto n 4887, de 2003, que deve ter aplicação imediata, garantindo-se a supremacia e a eficácia da Constituição.



Ações: Quilombolas
Eixos: Terra, território e justiça espacial