Do lar às ruas: pixo, política e mulheres
Luana Xavier Pinto Coelho
O Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU) acaba de lançar a publicação “Direito à Cidade: uma visão por gênero”, obra em formato eletrônico que reúne a reflexão de diversas mulheres sobre a cidade com motes e abordagens distintas.
As advogadas populares Luana Xavier Pinto Coelho, Maria Eugenia Trombini e Rafaela Pontes de Lima e a comunicadora popular da Terra de Direitos, Dayse Porto, assinam o artigo “Do lar às ruas: pixo, política e mulheres“, material que provoca reflexões sobre apropriação do espaço urbano e o lugar da mulher no espaço público.
>> Leia na íntegra:
1. Política, primavera e resistência
Em carta a João Doria (PSDB-SP), eleito em 2016, prefeito da cidade de São Paulo, um pixador, integrante de grupo que organizou, ações de oposição à “campanha’’ contra a pixação empreendida pelo prefeito no início deste ano, questiona: “O senhor declara o combate à pixação¹ por ser uma agressão à cidade, mas não pensa em garantir uma cidade menos agressora a seus moradores?’’.
A indignação manifestada pelo pixador traz em si críticas à política urbana e ao modelo de cidade do qual parte a gestão Doria, que se elege sob o slogan “Não sou político, sou gestor’’. Assim, a pixação aparece como instrumento de denúncia às agressões da cidade a seus moradores, manifestada não necessariamente no conteúdo dos pixos, mas no próprio ato de se fazer ver e ocupar, não com o corpo, mas com a arte, enquanto exteriorização da subjetividade humana, espaços urbanos de que, via de regra, são excluídos.
Dentre as minorias, marginalizadas e segregadas dentro do espaço da cidade, destacam-se as mulheres. Para esse grupo historicamente confinado ao espaço privado, o pixo possui um significado especial, uma vez que rompe com a espacialização a que se condiciona o gênero feminino, que passa a ocupar, através da arte, o espaço público das ruas. Na problematização sobre a dualidade público-privado, soma-se aos estereótipos de gênero vigentes associados às mulheres a divisão sexual do trabalho, que atribuiu às mulheres a dedicação prioritária à vida doméstica e colaborou para que a domesticidade feminina fosse qualificada como um traço natural e como um valor regulador para comportamentos desviantes.
Ainda em 2015, o Brasil viveu o que os meios de comunicação de massas chamaram de “primavera das mulheres’’, quando se disseminaram por todo o país, de forma mais ou menos espontânea, manifestações de mulheres com pautas relacionadas à temática de gênero. Mulheres de todo o país ocupam ou voltam a ocupar, literalmente, com seus corpos, o espaço público das ruas.
O fenômeno coincide com o processo de avanço do conservadorismo no país e de diversificação religiosa, marcada pelo aumento considerável de seguidores e seguidoras de religiões evangélicas, em especial as pentecostais, que vem transpondo o espaço privado ao qual, num Estado que se pretende laico, deveriam se limitar, e ocupando o espaço público. No Brasil, país com maior população pentecostal do mundo — 26% — existe, inclusive, uma bancada evangélica no Congresso, que reúne quase 80 parlamentares. A bancada, até pouco tempo atrás liderada pelo polêmico Eduardo Cunha (PMDB-RJ), defende pautas conservadoras e se opõe a políticas de promoção aos direitos sexuais e reprodutivos, à igualdade de gênero e diversidade sexual. Vale ressaltar que, ao mesmo tempo que essas igrejas apostam na disputa do Estado, cresce na população a descrença nas instituições políticas. Segundo o Instituto Datafolha, um terço dos eleitores brasileiros declara não ter simpatia por nenhum partido político.
Logo, o processo de fortalecimento dos movimentos feministas na América Latina é aliado à crise das instituições políticas’, por isso impulsiona o surgimento de novas formas de manifestação política. À medida que a política, ou a falta de políticas, atingem de forma assimétrica homens e mulheres no sul-global, os processos de resistência vêm sendo atingidos por um componente de gênero, levando alguns autores a falar em “feminização da resistência” (MOTTA, 2013).
O engajamento feminino, embora variado e complexo, tem em comum um mesmo potencial disruptivo: romper com a dicotomia “mulheres privadas, homens públicos” — próprio da imposição ilegítima: público/político associado ao masculino e privado/apolítico associado ao feminino — e reivindicar um papel de agência nas arenas decisórias. A participação eleitoral das mulheres, a atuação em sindicatos e o protagonismo em manifestações são exemplos de engajamento feminino. A recusa em aceitar determinada política e uma intervenção urbana também são. Porém, nem tudo que acontece no espaço público é considerado político, por isso optamos por dialogar com uma prática de resistência que, por ser contra-hegemônica, nem sempre é reconhecida como legítima: o pixo.
2. Espaço urbano, ordem social e mulheres
Constituído em meio às configurações sociais, o corpo feminino é investido por relações de poder e inserido em um processo constante de negociação no jogo das relações sociais, onde se desenvolvem trocas simbólicas de submissão às normas. Na esfera pública, a possibilidade de comunicação através do próprio corpo foi bastante limitada para as mulheres até a década de 70, quando se intensificou a luta pela autonomia do corpo, que passou — na ótica das políticas feministas a partir dos anos 80 — a assumir um significado mais amplo começando a se referir a um local de poder e de construção das subjetividades dos sujeitos políticos entre o domínio público e o privado.
Aplicados com muita frequência à teoria política, a análise crítica da dualidade público-privada permite expor o caráter histórico dessas esferas e revelar diferentes implicações para mulheres e homens. Perpetuada a ideia de que essas esferas são suficientemente e diferentes, “a ponto de o público ou o político poderem ser discutidos de maneira isolada em relação ao privado ou pessoal” (OKIN, 2008, p. 305), a política foi isolada das relações de poder na vida cotidiana, negando ou desinflando o caráter político e conflitivo das relações de trabalho e das relações familiares.
Ainda, começou-se a falar das mulheres enquanto sujeito político, capaz de desestabilizar o sujeito universal masculino e produzir diversas estratégias de resistência ao longo da história, seja pelas vestimentas, pela forma como dispõe o cabelo, pela profissão que executa, pela forma como exerce sua sexualidade, por desenvolverem e compartilhar métodos contraceptivos e abortivos ou por suas formas de comunicação.
Adquirindo novas formas e dimensões com o surgimento de novos grupos e/ou coletivos de mulheres do final dos anos 90, a reivindicação feminista pela autonomia do próprio corpo é ainda hoje uma das grandes bandeiras dos feminismos contemporâneos. Domesticado por uma infinidade de dispositivos do poder, o corpo feminino resiste de diversas formas aos mecanismos construídos socialmente para mantê-lo sob a pressão das imposições cotidianas. Em relação contínua com o espaço, estes corpos constituem um espaço social que são lugar de acirrada disputa de poder entre domínio público e privado. A cidade, neste contexto, configura-se como um organismo dinâmico e complexo que reflete valores sociais, ou seja, se a sociedade marginaliza grupos e minorias sociais, o espaço urbano evidencia essa marginalização e, por consequência, a relação contínua entre espaço, ordem social e dinâmicas de controle dos corpos.
Denunciando as engrenagens produtoras das hierarquias sociais as quais o corpo feminino é submetido, o mote para discursos e movimentos feministas se fundamenta em detectar os mecanismos e estratégias da ordem do discurso para melhor subvertê-las. Das reações, ações e micropolíticas de enfrentamento, a pixação destaca-se no cenário de intervenções-estético-urbanas feministas do passado e da atualidade se fundamentam em detectar os mecanismos e estratégias do movimento feminista latino-americano pelo caráter contestatório às políticas culturais das cidades, expressando um grito coletivo de liberdade e tática de resistência através de paredes e muros. Ocupando esses espaços públicos e não constitucionais, movimentos de mulheres têm estabelecido um diálogo com milhares de pessoas que transitam por centros urbanos todos os dias. Impondo sua fala, que pode permanecer por tempo indeterminado, essas mulheres ressignificam espaço urbano, ordem social e dinâmicas de controle dos corpos com base na experiência cotidiana da vida privada e pautando demandas políticas do movimento de mulheres.
3. Pixo, espaço público e o lugar da mulher
O controle, a vigilância e a criminalização do uso do espaço público tem sido o tom na propagação bem sucedida da cultura do medo e dos processos de higienização fundamentados na ordem e segurança pública. Espaços privados cada vez mais fortificados de um lado e, de outro, vigilância e controle high tech nas ruas. A cidade cresce segregada e privatizada, os espaços públicos controlados.
Mas onde há repressão, há insurgência, e o espaço público, arena da democracia urbana, é disputado através de várias linguagens e manifestações. Pinta-se um muro de branco, emudece o povo, ele volta a gritar. Da marginalidade e trazendo uma comunicação insurgente, o pixo disputa a narrativa urbana, provoca a política de controle e escancara as contradições.
Ao destruir o painel na Avenida 23 de Maio, o ato autoritário e violento do prefeito da capital paulista revela a disputa constante pela produção do espaço urbano, entre conflito, insurgência e controle. Ainda, explicita a limitação dos espaços institucionais de poder e sua construção de legitimidade nos processos políticos formais. O discurso vencedor das eleições não é um uníssono. Isto porque, pautas silenciadas têm na rua — e no pixo — uma voz constantemente ecoada, haja o cinza que houver.
E as mulheres, que sempre tiveram o controle e a violência tatuado em seu corpo, com restrição de acesso ao espaço público pelo sistema patriarcal que lhe relegou o espaço doméstico, também disputam a narrativa nas tintas — ou nos sprays. Habituadas a fazer frente à dicotomia público/privado e político/apolítico incorporam uma nova ao léxico de lutas: resistir às fronteiras que querem separar o “feio” do “belo”, o “vândalo” do “artista”. Apesar de serem ainda minoria entre os artistas de rua (PEREIRA, 2013), cresce o uso da linguagem do pixo para comunicar as pautas feministas.
Coletivos como o Mujeres Creando na Bolívia e o Poner el Cuerpo na Argentina contestam o male-stream e o main-stream pois ao recorrem a táticas insurgentes rebatem a afirmação de que o engajamento feminino seria um fenômeno de ordem moral, não polí- tica (STANWORTH, 1984). Essa leitura é melhor entendida em um exemplo de Dowse e Hughes que atribuem o posicionamento de homens e mulheres sobre a pena de morte e métodos contraceptivos à ordem moral e não política, mas o mesmo argumento se aplica para o aborto ou a responsabilidade do Estado por políticas sociais. Ora, as artistas de rua transgridem a norma e se apropriam dos espaços da cidade de forma não-autorizada. Se aquela que pixa, e sua pixação, são considerados transviados por estarem ligados a uma subcultura que não participa da corrente ocupacional, religiosa ou política principal (SPINELLI, 2007), então as ativistas que recorrem à essa tática são insurgentes, independente do conteúdo da manifestação. Sem outras possibilidades de escuta na cidade, as mulheres pixadoras recorrem ao corpo e à tinta para veicular suas posições políticas, compartilhando com o público da cidade.
Intervenções pontuais, em banheiros públicos, por mulheres que não necessariamente se vinculam a coletivos também são práticas feministas emancipadoras. A pesquisa de Camila Cunha nos banheiros de universidades no Rio Grande do Norte aponta a “criação de espaços heterotópicos” nas pixações (CUNHA, 2016).
Escrever nos muros: “Será que posso andar sem medo à noite sozinha? A rua também é minha” é emancipador pois materializa a reivindicação das mulheres pelo espaço público, e sua apropriação dos muros que vão além da cerca de casa, do lar. Outras intervenções nas ruas de São Paulo que colocam a mulher como atriz da cena política são os de Ryane Leão, como “sou negra, sou poeta, sou mulher, e já aviso com antecedência: meu nome é resistência” e os do projeto.encontrarte como “estar em público não torna meu corpo público”, e “feminismo não é seu (m)achismo sobre as mulheres.” Lutar pelo espaço público, denunciar o assédio e encorajar outras mulheres, e homens, a juntarem suas vozes pelo empoderamento feminino são algumas de tantas mensagens das intervenções urbanas.
¹ A grafia da palavra pixação com “x” está diretamente relacionada com a experiência da prática na rua e indica um ato consciente para
diferenciar a pixação do sentido que é atribuído ao termo “pichar” no dicionário.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CUNHA, Camila, SILVA, Antonio. O que te alucina? Banheiros, pichações e processos de subjetivação em gênero. Revista Periódicos. v. 1, n. 6 (2016). Disponível em: . Acesso em 26 de fevereiro de 2017.
DATAFOLHA. 71% dos brasileiros não têm partido de preferência. São Paulo, fev. de 2015. Disponível em: . Acesso no dia 3 de março de 2017.
MOTTA, Sara, “We Are the Ones We Have Been Waiting For” The Feminization of Resistance in Venezuela, Latin American Perspectives, 40(4), p. 35–54, 2013.
OKIN, Susan Moller. Gênero, o público e o privado. Estudos Feministas, Florianó- polis, v. 16, n. 2, p. 305–332, jan. 2008. ISSN 0104–026X. Disponível em: . Acesso em 25 de fevereiro de 2017.
PEREIRA, Alexandre Barbosa. Cidade de riscos: notas etnográfcas sobre pixação, adrenalina, morte e memória em São Paulo. Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2013, v. 56 nº 1. Disponível em . Acesso em 02 de março de 2017.
SPINELLI, Luciano. Pichação e comunicação: um código sem regra. LOGOS 26: comunicação e confitos urbanos, 2007. Disponível em: . Acesso em 01 de março de 2017.
STANWORTH, Michelle, SILTANEN, Janet. The politics of private women and public men. Theory and Society, vol 13, issue 1, p. 91–118, 1984.
SUTTON, Barbara. “Poner el Cuerpo: Women’s Embodiment and Political Resistance in Argentina.” Latin American Politics and Society 49, no. 3, p. 129–62, 2007.
Ações: Direito à Cidade
Eixos: Terra, território e justiça espacial
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