Luta pelo direito à terra: um tema sempre em pauta
O Dia do Estatuto da Terra (30 de novembro) e a decisão da Corte Interamericana sobre o caso Antônio Tavares reforçam a urgência do avanço da reforma agrária popular.
Dia 30 de novembro o Estatuto da Terra completa 59. Instituído em 1964 em plena Ditadura Militar, era uma tentativa de frear os movimentos populares na luta pela Reforma Agrária. A Ditadura reprimiu violentamente os movimentos, mas não freou a luta, concentrou ainda mais a terra e inundou os proprietários com incentivos fiscais e financiamentos subsidiados, exigiu que a imprensa e seus teóricos negassem a necessidade da Reforma Agrária, mas não conseguiu mudar a consciência do povo do campo que continuou a luta, sem tréguas, até hoje.
O tema Reforma Agrária nunca sai de pauta. Sempre surgem teóricos, políticos e principalmente empresários, dizendo que não é preciso mexer no uso da terra, que Reforma Agrária é um tema passado, antigo e atrasado, em geral dizem isso de armas na mão ou invocando quem as usa. Esses profetas do nada existem e surgem exatamente porque a Reforma continua não só necessária, como urgente. Por ser tão clara a sua necessidade, o tema não sai de pauta e em geral acompanhado da violência das oligarquias que não hesitam em usar os poderes do Estado para impedir que aconteça.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos deverá julgar, em breve, os atos de violência perpetrada pelo Estado do Paraná e sua Polícia Militar no ano de 2000 contra trabalhadores rurais sem terra que pretendiam protestar contra a violência na repressão à luta por Reforma Agrária e que resultou na morte de Antônio Tavares. Neste 30 de novembro estamos à véspera dapublicação da sentença ao Estado brasileiro pela Corte Interamericana.
Vinte e três anos se passaram, alternaram-se governos estaduais e federais e a Reforma Agrária ainda é tema presente nas ruas, campos e Universidades. E a violência a marca registrada de sua negação.
Nesses 20 anos aconteceram muitas coisas que reafirmaram a necessidade e importância da Reforma Agrária. Os pequenos espaços onde ela foi feita, as assim chamadas terras reformadas, passaram a produzir alimentos em quantidade e qualidade impensável para os teóricos negativistas. A produção, reconhecida até mesmo pela grande mídia, é de alimentos saudáveis e nutritivos, produzidos sem agrotóxico, de forma orgânica. Além disso, as cooperativas da Reforma Agrária têm conseguido embalar e processar alimentos sem que percam a qualidade possibilitando que cheguem aos pontos consumidores com a mesma qualidade em que são produzidos.
O fato de produzirem de forma orgânica e sem uso de agrotóxicos irmanou a Reforma Agrária com a natureza. E, por isso, passou a ser muito mais do que distribuição justa da terra, passou a ser uma necessidade de produção de alimentos com qualidade e de proteção da natureza com a agroecologia, agroflorestas e agrobiodiversidade.
Por isso mesmo, muito mais Reforma Agrária precisa ser feita. A hegemonia do agronegócio exportador e produtor de commodities, nesses 20 anos, continuou a aumentar a pobreza e fome nas cidades, o que aumentou a necessidade de distribuição justa da terra, mas exige ainda muito mais a produção de alimentos nutritivos e saudáveis. E só quem tem demonstrado capacidade para essa produção são os agricultores que se organizam coletivamente para a tarefa, nas áreas reformadas.
Aliás nem os negacionistas conseguem esconder que o alimento envenenado do agronegócio não deve ser consumido e são pegos, meio escondidos, comprando orgânicos. Apesar disso, entretanto, continuam afirmando que não é mais necessária Reforma Agrária. A proposta da produção capitalista continua sendo produzir com mais agrotóxicos, venenos e conservantes, com grande apoio do Estado e dos incentivos fiscais, e com a devastação da natureza, o que efetivamente aumenta os lucros da indústria de agrotóxicos e favorece a acumulação dos capitais. Isso faz com que os custos do agronegócio, subsidiados, barateiam seus produtos e eventuais alimentos, enquanto a produção orgânica, com poucos incentivos, fica mais cara.
As exitosas campanhas das oligarquias contra a contra a Reforma Agrária criam um paradoxo. A produção do agronegócio, que cria fortunas e poder associada aos alimentos ultraprocessados, pode ser consumida pela população pobre das cidades, enquanto a produção orgânica, baseada na consciência e teimosia dos trabalhadores rurais, produz um alimento rico, nutritivo e saudável, consumido pelas classes médias altas como os que combatem a Reforma Agrária, que às vezes o compram escondidos. Exatamente por isso, o MST construiu uma política de venda direta de seus produtos, na busca de barateá-los, e organizou distribuição gratuita de alimento e marmitas para a população em situação de miséria.
Muitas coisas aconteceram em 20 anos, mas a violência contra a Reforma Agrária, e sua negação pelas oligarquias, continuam como uma repetição monótona e cruel. Enquanto a Corte Interamericana de Direitos Humanos julga o assassinato de Antônio Tavares em Campo Largo, Paraná, 23 anos depois, Josimar da Silva Pereira é morto com uma bala na nuca em Vitória de Santo Antão, Pernambuco. Quantos foram assassinados nesse espaço de tempo? Não é difícil de contar, mas a conta é longa, e está descrita, ano a ano, pelos Cadernos de Conflitos no Campo da Comissão Pastoral da Terra. Pergunta muito mais difícil de responder, mas igualmente urgente é: quando se fará uma verdadeira e profunda Reforma Agrária no Brasil, que acabe com a fome, com a miséria e com a destruição da natureza?
*Carlos Frederico Marés – Professor da PUC-PR. Foi Procurador Geral do Estado do Paraná, Presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai) e Procurador Geral do Instituto nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra)
Eixos: Terra, território e justiça espacial
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