Na defesa dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais: a atuação da Terra de Direitos na Covid-19
Editorial
Os problemas associados ao tratamento e combate à transmissão do Coronavírus têm apontado para um contexto de crise que não se limita aos sistemas de saúde. A situação da Covid-19 revela a falência de um modelo social, econômico e de bem-estar. Agudização das desigualdades, processos de mercantilização de direitos econômicos e sociais, políticas de austeridade econômica e fiscal, ataques às organizações da sociedade civil, entre outras medidas, são exemplos de respostas de um modelo incapaz de lidar com emergências e crise. Respostas governamentais dirigidas à “salvar” a economia, ajudar empresários e banqueiros, implementar a austeridade econômica e fiscal têm um custo sobre a vida e a saúde de uma parcela da população, já vulnerável e marginalizada do acesso a bens, serviços e direitos.
Tem assim integrado nosso cotidiano um panorama diverso de violações de direitos humanos que têm caracterizado a vida em contexto de pandemia:
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O aumento da sobrecarga da gestão da crise sobre as mulheres com intensificação de episódios de violência doméstica;
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As falhas do sistema de proteção social em garantir os direitos básicos de sobrevivência à população mais vulnerável, mesmo com a aprovação da renda básica emergencial;
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A acentuada desproteção de trabalhadores informais e os riscos de aprofundamento dos retrocessos em matéria de legislação trabalhista;
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A emergência de uma crise alimentar em que estão comprometidas tanto a capacidade de produção e escoamento de produtos por parte de trabalhadores rurais, povos e comunidades tradicionais, quanto as possibilidades de sobrevivência das pessoas que vivem em condição de pobreza;
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A utilização da crise sanitária como cortina de fumaça para o aumento de medidas autoritárias por parte de governos, incluindo aumento de ações de vigilância, recolha de dados com violações ao direito à privacidade e restrições no direito à informação, além de aumentar o acesso a armas e munições para grupos privados/milicianos na sociedade;
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A violação do direito à saúde e ausência de medidas de proteção a uma população carcerária em estado permanente de superlotação;
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As dificuldades de implementação de medidas de proteção e cuidado a defensores e defensoras de direitos humanos em situação de risco e, que, em circunstância de crise, desempenham um papel crucial nos modos de vida e sobrevivência das suas comunidades.
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A falta de fiscalização e presença do Estado em determinadas áreas como fator estimulante à violação de direitos por agentes privados, como é o caso, da invasão de terras em territórios tradicionais, a continuidade das ações de desmatamento e o assassinato de lideranças sociais e ativistas.
Esta situação é acentuada pelas desigualdades estruturais, entre as quais se destaca o racismo institucional, na disseminação da doença e no acesso a cuidados de saúde, exames e tratamento. Um alerta público divulgado pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), em 22 de abril, aponta que, nos últimos 11 dias, aproximadamente a cada dois dias tem ocorrido um óbito pela Covid-19 entre quilombolas. O alerta chama atenção para uma realidade de grande sub-notificação de casos no que toca aos quilombos, bem como para situações de dificuldades no acesso a exames e denegação de exames a pessoas com sintomas. No mesmo sentido, alerta da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) aponta para a situação de racismo e subnotificação de casos entre os povos indígenas.
Com mais de um mês desde que a crise do Coronavírus se instaurou em território brasileiro, a Terra de Direitos tem afirmado e defendido a salvaguarda dos direitos humanos neste contexto, incidindo politicamente e atuando diretamente tendo em conta a necessidade de proteção de grupos e povos mais vulneráveis. De maneira determinante, conhecer e defender direitos e lutar contra as desigualdades são cada vez mais elementos cruciais para um projeto de sociedade em que haja lugar para todas e todos.
Nesse horizonte de trabalho, a organização reivindica que os direitos à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à seguridade social, ao território e à moradia estão acima dos interesses de atores privados e de medidas de austeridade fiscal. O sistema de justiça também deve assumir uma parcela de responsabilidade perante a crise, quer através da garantia de cumprimento dos padrões de direitos humanos em suas decisões, quer através de uma gestão orçamentária responsável e solidária com os efeitos da crise sobre a vida da população. Em manifestação logo no início da pandemia, a Terra de Direitos destacou uma série de medidas a serem adotadas pelos órgãos que compõem o sistema de justiça. Se implementadas com urgência, essas medidas minimizariam os efeitos tão violentos da crise estrutural e epidemiológica que vivemos.
Perante este contexto, temos atuado e contribuído com o trabalho de redes, organizações, grupos e movimentos da sociedade civil, tendo conta as seguintes medidas e ações.
Orientados pela defesa do Sistema Único de Saúde (SUS), que garante o acesso tão essencial pela população à serviços gratuitos e rompe com a mercantilização deste direito humano, a Terra de Direitos, no âmbito das ações da Plataforma DHESCA, apoiou petição dirigida ao Supremo Federal Tribunal (STF) solicitando a suspensão imediata da Emenda Constitucional 95, conhecida como “Teto dos Gastos”. As entidades afirmam que a pandemia pode levar o sistema de saúde e outras políticas sociais ao colapso e que seus efeitos vão ultrapassar 2020.
O dever dos Estados de prever e atuar para minimizar as consequências da pandemia para a parcela da população mais gravemente afetada e que enfrentam maiores obstáculos para superação da crise tem sido veementemente exigido pela sociedade civil em diferentes áreas. Nesse sentido, assinamos representação de várias organizações, lideradas pela Habitat para a humanidade Brasil, para Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão · (PFDC) sobre medidas especiais para favelas e periferias, especialmente saúde - https://bit.ly/2WIyn3C
Enquanto Coletivo Mobiliza - uma rede de defesa do direito à cidade em Curitiba (PR), oficiamos a Companhia de Habitação Popular de Curitiba (Cohab) para suspensão de despejos por falta de pagamento e suspensão cobranças.
Outra medida importante no âmbito da sociedade civil que recebeu a adesão da Terra de Direitos foi a Campanha por uma Renda Básica Emergencial.
Deve ser reforçada a vigilância para que neste período o Estado não se aproveite para atuar na sombra da crise para avançar processos de violação de direitos das comunidades que estavam em curso, especialmente, a não realização de despejos forçados. Nesse sentido, outra importante ação tem sido o apoio à reivindicação do Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara (MABE) ao Estado brasileiro sobre o plano de remoções das comunidades quilombolas de Alcântara (MA).
Além disso, em Santarém (PA), a Terra de Direitos integra uma articulação formada por movimentos sociais, sindicatos, organizações da sociedade civil, universidade e pastorais sociais, para pensar ações coletivas de enfrentamento ao coronavírus na cidade, tendo em consideração a proteção dos grupos mais vulneráveis. Várias medidas de apoio e proteção a povos e comunidades tradicionais e defensores de direitos humanos já foram implementadas e estão sendo discutidas.
Nos somamos à Articulação Justiça e Direitos Humanos (JusDh), rede de defesa da democratização da justiça, na visibilidade da atuação do sistema de justiça a fim de garantir os direitos humanos, a efetivação dos direitos previstos na Constituição Federal e, principalmente, reduzir os impactos da epidemia na população, em especial, na mais vulnerável.
Outra articulação que integramos foi o recém criado Observatório de Direitos Humanos - Crise e Covid-19”, iniciativa que reúne um conjunto amplo de organizações que atuam em diversas pautas dos direitos humanos e que juntas irão monitorar, formular e sistematizar informações sobre a garantia ou violação de direitos humanos durante o enfrentamento à crise.
A Terra de Direitos contribuiu e se somou à diversas campanhas de solidariedade em diferentes territórios. No Paraná, nos somamos à Campanha Resistindo com Solidariedade, na compra de alimentos para comunidades urbanas periféricas de Curitiba e Região Metropolitana. Outra frente de atuação, a partir da Frente Mobiliza Curitiba, tem sido a produção de informes e orientações para as comunidades urbanas da região metropolitana de Curitiba. Apoiamos também os camponeses da reforma agrária, no transporte de alimentos doados pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) para comunidades periféricas da capital e região metropolitana.
Ainda no estado do Paraná, temos colaborado com o fornecimento de cestas básicas para catadoras e catadores de materiais recicláveis da capital e na denúncia sobre a desassistência do Estado. Em Curitiba, integramos um grupo de apoio emergencial à população em situação de rua, no apoio à reivindicação de ações ao poder público, denúncias, campanhas de solidariedade e fornecimento de alimentos. Igualmente temos colaborado com a retomada dos trabalhos pela Associação de AGricultores/as Familiares Assis de Irati (PR) e na rede de apoio com doação de alimentos de alimentos de assentamentos da reforma agrária para indígenas Guaranis, no Oeste do Estado.
No Pará, a Terra de Direitos tem contribuído em ações de aquisição e distribuição de cestas básicas para comunidades tradicionais, quilombolas indígenas em maior vulnerabilidade. Com a orientação de permanecerem em seus territórios e sem poder vender sua produção, as comunidades - principalmente aquelas de várzea, onde o acesso à cidade se dá apenas por barco - onde já se sente o desabastecimento.
No estado de Minas Gerais temos colaborado com a Comissão em Defesa dos Direitos das Comunidades Extrativistas (Codecex), especialmente na Serra do Espinhaço, com apoio para aquisição de alimentos e material de higiene para a comunidades tradicionais.
Outra frente de trabalho da Terra de Direitos tem sido o monitoramento da atividade legislativa, de ações do executivo e decisões judiciais em relação a medidas e projetos de lei que resultem em perda direitos, especialmente para a população mais vulnerável, e criminalização de lideranças e movimentos populares.
Apoiamos neste contexto iniciativa da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) de incidência junto aos presidentes das duas casas legislativas reivindicando o não avanço de medidas e projetos de lei que resultem em impactos negativos para a população quilombola. Outra ação que a Terra de Direitos se somou, em conjunto com um amplo espectro de organizações sociais, foi o direcionamento de documento pela Frente Parlamentar da Democracia aos presidentes da Câmara e do Senado reivindicando maior participação popular nos debates legislativos. Apoiamos, também, a campanha de movimentos sociais pela elevação do orçamento do PAA - Programa de Aquisição de Alimentos - para um bilhão de reais.
Compreendemos que a grave conjuntura exige uma ação intensa em diversas frentes, articulada e em rede pela sociedade civil tendo como objetivo principal a defesa e a garantia de direitos humanos, conforme assegurado na Constituição Federal.
A Terra de Direitos segue com atuação intensa pela defesa dos direitos humanos por meio de trabalho remoto, atendendo e acompanhando situações e casos emergenciais com respeito às orientações de isolamento e distanciamento social, medida adotada desde o início da pandemia.
Eixos: Política e cultura dos direitos humanos