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Coronavírus e catadores: riscos à vida que vem pelo material reciclado e pela desassistência governamental


Com menor revenda dos materiais, tanto catadores avulsos quanto com os contratos com prefeituras se veem sem renda e sem auxílio.

A Sociedade Barracão reúne 14 famílias, em sua maior parte de trabalho na catação e seleção de materiais recicláveis. Foto: Giorgia Prates

Não fossem o recurso do Bolsa-Família e a doação de cesta básica por campanha de solidariedade, a catadora de materiais recicláveis da Sociedade Barracão Leila Arlen Veloso, de 47 anos, estaria, neste contexto de crise epidemiológica, em situação ainda maior de vulnerabilidade. O trabalho diário de coleta e seleção de materiais recicláveis em Curitiba (PR) que lhe gerou renda por mais de 24 anos – ofício iniciado durante a gravidez pela ausência de opções – se apresenta, neste momento, como fonte de medo e insegurança.

Sem equipamentos de proteção e desassistidos pelo Estado, o material descartado por pessoas, mercado e instituições e que serve aos trabalhadores para construir suas vidas pode conter o vírus da Covid-19.  “A gente não tem ido para a rua por conta de medo de pegar esse negócio. Quando a gente sai vamos buscar material em todo lugar e você não sabe o que pode estar contaminado”, relata Leila. A última saída da catadora para a coleta seletiva rendeu uma pilha de material que ainda aguarda, já há duas semanas, para ser separada.

Primeira comunidade do Paraná a ter o direito de moradia reconhecido através do instrumento jurídico de usucapião coletivo, em 2013, a Sociedade Barracão é formada, em sua maioria, por pessoas que trabalham com coleta e separação de matérias recicláveis. São trabalhadores que saem logo cedo – de carrinho ou carro – para trazer à noite o provimento para aquele dia. Como não conseguiram superar as barreiras burocráticas para acesso à política de resíduos sólidos da capital, o Programa EcoCidadão, os catadores avulsos do Barracão dependem da circulação diária, da separação e seleção dos materiais e da negociação com compradores. Neste contexto pandêmico, se uma destas etapas é fragilizada a renda não chega ao catador. 

Outra dimensão dos impactos dos entraves burocráticos e da não inclusão do Barracão no Programa de coleta seletiva do município diz respeito ao  não estabelecimento de um relação direta, pela via do trabalho, entre poder público e a Sociedade: as 14 famílias do Barracão dependem de auxílios individualizados quando o exercício do ofício é afetado, auxílio que tarda a chegar.

“A internet e a água eu não paguei esse mês, estou sem dinheiro. Os piás começaram a estudar pelo celular e essa é mais uma conta. Com menor venda de material eu aguardo a ajuda do governo”, relata em referência ao auxílio-emergencial do governo federal para famílias em risco, de valor de R$600 ou R$1.200, para os próximo três meses. Com previsão da liberação para saque do recurso apenas a partir do dia 27 de abril, de acordo com o ministro da Cidadania, Onyx Lorenzoni, o equilíbrio das contas e o receio do corte do fornecimento dos serviços têm sido uma companhia diária.

Tem sido o recurso do Bolsa Família e campanhas de solidariedade que garantem alimentos e renda mínima para a catadora Leila. Foto: Lizely Borges

“Tem riscos, mas vai fazer o quê”
Por conta da fibromialgia de Leila, tem sido a vizinha Rucélia de Melo que tem separado os materiais coletados nas ruas. Com 52 anos, sendo mais de 10 anos dedicados à coleta seletiva de materiais, Rucélia relata que a renda gerada pelo trabalho – antes na ordem de R$150 a R$200 por semana – tem sido quase nula nestas últimas semanas. “Agora estou tirando nada, não tem material na rua. Você vai para a rua e não encontra material [para reciclar]”, relata. 

Como o Barracão não está inscrito na política de resíduos de Curitiba, o material chega até a trabalhadora por uma busca ativa: é necessário circular pelas ruas -  prática de alta exposição - para reunir um volume significativo de material reciclável para revenda.
 

A coleta de cerca de 90% do material reciclável na capital (estimado em 720 toneladas diárias) é feita por catadores, apenas 10% são recolhidos por caminhões da coleta seletiva municipal (Dados Secretaria Municipal de Meio Ambiente).
 

A circulação em tempos anteriores à pandemia também garantia muitas doações espontâneas de alimentos e outros utensílios pelos pequenos comércios, como padarias e mercados, e pelas residências. Com a orientação de isolamento social as trocas entre a população em geral e os catadores também foram arrefecidas.

Inscrita no cadastro para recebimento do auxílio emergencial, a trabalhadora aguarda a chegada do recurso. “Fui ver hoje e não veio nada [do auxílio]. Tem comida até o final da semana, está acabando”, manifesta Rucélia, com preocupação. Tem sido ações de solidariedade, como a Campanha realizada pelo Instituto Lixo e Cidadania, Ordem dos Advogados – seção Paraná - e Centro de Formação Urbano Rural Irmã Araújo (Cefuria) que tem garantido o mínimo essencial aos catadores.

Além do alimento, outra necessidade essencial para catadores não têm chegado ao Barracão, pelo menos pela via adequada: equipamentos de proteção individual (EPI) para manuseio dos materiais pelos trabalhadores. De acordo com Recomendação da Defensoria Pública da União (DPU) cabe ao poder público municipal fornecer máscaras, luvas e espaços de higienização constante para esta categoria. O material tem chegado, mas pelo descarte por outras pessoas. “Tem aparecido bastante material como luva, máscara, seringa”, conta Rucélia.

De acordo com pesquisas, o vírus pode permanecer vivo nas superfícies de plástico em até 5 dias e 4 dias nas de papel, materiais fortemente presentes na coleta seletiva.  A Associação Brasileira de Engenharia Sanitária, em recomendações para a Gestão de Resíduos em situação de Pandemia por Coronavírus (Covid-19), orienta a paralisação da coleta e manejo de materiais recicláveis – em razão do alto risco no manuseio. No entanto, a necessidade dos catadores em obter uma mínima renda para assegurar a sobrevivência de sobrepõe às recomendações. “É preocupante, tem risco, mas vai fazer o que. Continuo separando o material. A gente toma cuidado, mas só consigo lavar minha mão com sabão”, relata Rucélia.

“Eles não usam luva, não lavam a mão a cada instante porque não tem estrutura. Coletam e classificam material de todos lugares, inclusive de unidades de saúde. São alvos diretos de contágio.”, destaca a integrante do Cefuria, Vanda de Assis.

No acompanhamento de longa data do trabalho de catadores da capital e Região Metropolitana a assistente social identificou que esta categoria, que abriga uma variedade de trajetórias, rostos e nomes, contém, como elemento comum, os problemas de saúde gerados pelo trabalho e acentuados pela desassistência do poder público,

“Todos os catadores já tem fragilidades de saúde, problemas respiratórios pelo contato com produtos tóxicos, sequelas das péssimas condições de trabalho. Muitos fumam. Eles adquiriram vários problemas que a catação trouxe”, relata Vanda, com preocupação sobre as fragilidades de saúde desta população e que a torna mais vulnerável à manifestação mais intensa da doença.
 

“Escolham dois catadores que estejam mais necessitados para receber as 2 cestas básicas”
Integrante da Associação de Catadores 3Rs, localizada em Colombo (PR), Rodrigo Alvez Carneiro relata que recebeu uma ligação da Secretaria de Meio Ambiente do Município na última quinta-feira (09) para buscar as cestas para os 11 associados. Na entrega dos alimentos, uma representante da gestão pública da Secretaria pediu a ele que escolhesse duas famílias para receber as únicas duas sacolas de alimentos disponibilizadas e doadas por terceiros.

“Eu argumentei que não poderia escolher, que todas as famílias estão necessitadas”, relata Rodrigo. Diante da negativa do trabalhador e da manifestação das pessoas presentes, ele relata que a representante comentou, em voz alta, que irá comunicar a gestão pública para não repassar nada para as associações em doações futuras. A denúncia sobre o tratamento dispensado pela representante e Secretaria circulou por redes sociais.


Vídeo da denúncia feita pelos catadores da Associação 3R, de Colombo.

“A gente faz um trabalho importante de deixar Colombo limpa e eles não nos dão valor. Nos sentimos humilhados. É um momento difícil, mas que a gente tem que tomar coragem. Como vou chegar para as famílias e dizer quem merece e quem não merece receber alimentos, ainda mais agora?”, resigna-se.

Diferentemente da Sociedade Barracão, a Associação possui um contrato com o município para inclusão da 3Rs no ciclo de coleta seletiva. Por meio deste convênio o material chega diretamente para a triagem no espaço da Associação. Esta relação, no entanto, não garante segurança aos trabalhadores diante da atual conjuntura. “O nosso trabalho é nossa única fonte de renda. Recebemos o material todo dia. Tem uma orientação para aguardar 72 horas para manuseio dos materiais, mas tivemos que assinar um acordo dizendo que vamos trabalhar antes [do intervalo de horas] com o material. Uu a gente faz isso ou eles [a Prefeitura] enviam o material para o aterro”, relata Rodrigo. Mesmo sem condições, a Associação teve que assumir o ônus do risco do manuseio dos recicláveis já que a Prefeitura não se responsabilizou em armazenar o material no período determinado como de segurança. 

Ainda que seja de atribuição do município assegurar a assistência aos conveniados (veja abaixo), como com o fornecimento de cestas básicas, a Associação relata que, assim como com o Barracão, os alimentos recebidos vieram por iniciativa de doação da sociedade organizada.

A comunicação da Terra de Direitos tentou contato com a assessoria da Secretaria do Meio Ambiente, mas não obteve retorno até o fechamento desta matéria.
 

Responsabilidade do poder público
Em alinhamento à manifestação do DPU e Defensorias Públicas dos estados, o Ministério Público do Trabalho do Paraná (MPT-PR) emitiu no dia 24 de março, antes do aumento progressivo de casos da Covid-19 no país, uma recomendação dirigida aos municípios contendo obrigações voltadas para a contenção da proliferação do vírus e proteção da saúde de catadoras e catadores.

No documento, o órgão destaca a responsabilidade do poder público municipal no desenvolvimento de ações voltadas à catadores conveniados ou não, como realização de visitas técnicas às cooperativas e associações - sempre que possível - para informar e orientar para adoção de condutas pelos trabalhadores, disponibilização de materiais de higiene e kits de proteção, a manutenção de pagamentos de conveniados, independentemente da entrega de material pelos catadores, e remuneração mínima para não conveniados, entre outras ações.

Passado quase um mês da recomendação, o MPT tem buscado acompanhar o cumprimento das obrigações pelo poder público municipal. “As famílias vulneráveis, que não possuem contrato com a Prefeitura, são as primeiras que devem serem observadas”, aponta a procuradora-Chefe do Ministério Público do Trabalho no Paraná, Margaret Matos de Carvalho. Ela relata, em entrevista para Terra de Direitos, que a gestão pública da capital tem mantido a coleta seletiva e pagamento dos trabalhadores, independentemente do volume de materiais coletados e selecionados.

Como a recomendação elaborada pelo MPT data anterior à aprovação do auxílio emergencial pela esfera federal, a procuradora aponta que será feito um aditivo ao documento do MPT que recomende ao município a complementação da renda do catador, até alcançar o mínimo nacional. “O auxílio emergencial está bem longe do salário mínimo. Se considerarmos o que estabelece a Constituição Federal, de garantia do salário mínimo ao trabalhador, temos que pensar que o salário é valor de referência para todos auxílios. Teríamos o que ter este parâmetro legal”, destaca a procuradora.

"Vale ressaltar que erradicar a pobreza e diminuir as desigualdades sociais são objetivos do país determinados pela Constituição, e que tomam uma dimensão ainda maior num cenário de crise e agravamento de vulnerabilidades, exigindo a atuação do Poder Público", complementa a assessora jurídica da Terra de Direitos, Daisy Ribeiro.

No última quinta-feira (09), o governador do Paraná Ratinho Júnior (PSD) sancionou um auxílio mensal de R$ 50 para compra de alimentos por pessoa de baixa renda. O recurso contempla a categoria dos catadores de materiais recicláveis do estado. De acordo com o secretário da Agricultura e do Abastecimento, Norberto Ortigara, os cartões de acesso ao auxílio serão entregues aos beneficiários nas próximas semanas. Caberá às prefeituras organizar a entrega. 

Até o recebimento ainda incerto dos auxílios federal e estadual, as e os catadores agradecem as iniciativas locais e nacionais que atuam para garantir o alimento na mesa, na urgência desta necessidade. 

*Como medida de segurança, todas as entrevistas foram feitas por telefone.



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Casos Emblemáticos: Sociedade Barracão
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