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Insegurança fundiária é realidade quilombola durante a pandemia


Enquanto titulações andam a passos lentos, as ações de despejo ganham cada vez mais velocidade no governo Bolsonaro. 

Casa na comunidade Quilombola Arenheguaua, a 54 quilômetros de Alcântara e lar de 80 famílias. Foto: Ana Mendes/ISA

Os problemas territoriais que afetam diretamente os quilombolas de todos os cantos do país agravaram-se durante a pandemia de COVID-19. A ausência de normativas que asseguram a não realização de despejos e remoções durante esse período tem acentuado a vulnerabilidade das comunidades quilombolas: uma realidade histórica que vem sendo agravada pelo racismo institucional praticado pelo governo brasileiro.  

Até o momento não foram formuladas e implementadas medidas pelo Estado de proibição de despejos durante o período da pandemia. Mesmo o dispositivo - relativamente tímido - do Projeto de Lei do Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de direito privado, que previa a suspensão de despejos locatícios durante a pandemia, sofreu veto presidencial (Lei 14.010/2020).

Medidas legislativas mais abrangentes, como o PL 1975/2020, que prevê a suspensão de todos os despejos durante a pandemia, ainda aguardam apreciação, ainda que matérias relacionadas à pandemia sejam definidas como prioritárias pelas casas legislativas.

No último mês, congressistas americanos pressionaram a Casa Branca a não liberar verba para a construção da base destinada a lançamento de foguetes e satélites em Alcântara, no Maranhão, caso famílias quilombolas sejam removidas. 

“A pressão dos congressistas é uma medida fundamental para trazer o debate acerca do tema dos direitos humanos dos povos e comunidades tradicionais em função dos acordos comerciais bilaterais entre os dois países. Se a emenda proposta for aprovada, será um importante precedente para a defesa e proteção desses povos. Acordos desse tipo, com qualquer país, não podem correr ao largo dos direitos territoriais destas comunidades”, ressalta Danilo Serejo, advogado e quilombola da Comunidade de Canelatiua, em Alcântara. 

Para Serejo, os congressistas americanos “estão tentando fazer o que os parlamentares brasileiros não fizeram quando da tramitação do Acordo de Salvaguardas Tecnológicas  (AST) no Congresso brasileiro. Ou seja, discutir os eventuais impactos do acordo”. O advogado avalia como vergonhosa a situação aos olhos do Congresso brasileiro. 

Segundo um levantamento do IBGE, apenas 5,34% das áreas quilombolas mapeadas apresentam o título de propriedade definitiva nos moldes recomendados pelos termos  art. 68 do ADCT, da Constituição Federal. Apenas 129 títulos foram expedidos pelo Incra, o que garante o direito fundamental de 2,16% dos territórios quilombolas identificados pelo IBGE. Os números diante da força populacional dos quilombolas de norte a sul do país reforçam a necessidade de suspensão de processos judiciais relacionados a despejos. 

A denúncia da realização de despejos de comunidades quilombolas durante a pandemia está presente na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 742/2020) ajuizada no Supremo Tribunal Federal (STF) em setembro pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e partidos políticos. A peça jurídica elaborada com apoio da Terra de Direitos e mais outras organizações - que tem como objetivo exigir do Estado a adoção de medidas de proteção aos quilombolas em tempos de pandemia - destaca como despejos e remoções intensificam a vulnerabilidade das comunidades diante da mais intensa crise epidemiológica.

O pedido da ADPF ressalta que “sejam nacionalmente suspensos os processos judiciais, notadamente ações possessórias, reivindicatórias de propriedade, imissões na posse, anulatórias de processos administrativos de titulação, bem como os recursos vinculados a essas ações, sem prejuízo dos direitos territoriais das comunidades quilombolas”. As comunidades quilombolas e as organizações aguardam o julgamento da ação. 

Repercussão internacional 
Em julho deste ano, um trabalho conjunto entre a Terra de Direitos e o Labá - Direito, Espaço & Política, Laboratório de Pesquisa Interinstitucional da UFRJ, UFPR e UNIFESP, resultou em um informe endereçado a Balakrishnan Rajagopal, Relator Especial sobre Moradia Adequada vinculado ao Alto Comissariado das Nações Unidas (ONU). 

A permanência de comunidades tradicionais em suas casas, seguindo a orientação de isolamento social recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) foi um dos focos do documento, que também destacou as fracas medidas oficiais adotadas pelo governo brasileiro para a garantia de direitos dos quilombolas. 

Em resposta, Rajagopal destacou que o governo brasileiro "tem o dever de proteger urgentemente todos, especialmente as comunidades em risco, da ameaça do COVID-19”. Na avaliação do relator especial da ONU no direito à moradia, "despejar com força as pessoas de suas casas nessa situação, independentemente do status legal de sua locação, é uma violação de seus direitos humanos". 

Especialistas da ação no STF 
Entre os especialistas consultados para a elaboração da peça estão nomes como Daniel Sarmento, doutor em Direito Constitucional; Carlos Marés, especialista em defesa dos povos indígenas e Deborah Duprat,reconhecida publicamente pela defesa dos Direitos Humanos. “Tivemos um longo processo de escuta, conversando com juristas experientes. Esses especialistas nos ajudaram no aprimoramento de nosso pedido”, destaca Biko Rodrigues, da Conaq.  

A atividade coletiva também reforçou a omissão do Estado brasileiro na política destinada aos quilombolas e a necessidade urgente de encerrar o grande ciclo de invisibilidade das comunidades. “Reunimos um conjunto de dados da política quilombola e da situação dos quilombos na pandemia que, antes, estava disperso. Um dos grandes problemas que configura mais uma omissão do Estado, é justamente no monitoramento da situação da população quilombola em termos de acesso a direitos, serviços e políticas essenciais”, acrescenta a advogada Maira Moreira, que acredita que o governo federal precisa ser obrigado a atender parâmetros constitucionais de tratamento dessas comunidades. 

 



Ações: Quilombolas

Eixos: Terra, território e justiça espacial