CBDDH | “Eles não estavam ali para prender ninguém, era para matar mesmo”
Seis meses depois do massacre de Pau D´arco no Pará, quando dez trabalhadores rurais foram executados durante operação das polícias civil e militar do estado, os sobreviventes da chacina tentam superar a violência à qual foram submetidos e prosseguem na sua luta pela terra.
Durante a Missão Ecumênica, realizada na última semana no Pará, em apoio aos camponeses e camponesas do estado, L. (como iremos chamá-lo por questões de segurança) contou o que viveu no dia 24 de maio desse ano e como conseguiu sobreviver.
A Comitiva foi formada por representantes do Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos, do Fórum Ecumênico ACT Aliança Brasil (FEACT-Brasil), Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC), Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE), Centro de Estudos Bíblicos (CEBI), Comissão Pastoral da Terra (CPT), Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos (CBDDH), e Processo de Articulação e Diálogo Internacional (PAD). O objetivo das visitas era prestar solidariedade e apoio às famílias e comunidades atingidas pela violência do campo, cobrar providências das autoridades locais, e convocar igrejas e pastorais para que se posicionem contra a violência no campo.
L. conta que naquele dia, quando perceberam a presença dos policiais alguns a pé e outros em caminhonetes, os trabalhadores notaram que haviam alguns encapuzados e portando armas, assustaram-se e previram que eles estavam ali para uma ação. Muitos trabalhadores estavam organizando seus pertences no acampamento onde passaram a noite.
“Eles chegaram quebrando tudo, uns cinco meninos que estavam com a gente assustaram e resolveram correr, quando eles chegaram perto de um ipê, nossa, foi como boiada estourada. Foi aí que a polícia descobriu o local onde estávamos. Estava começando a chover. Encontramos eles, Dona Jane até brigou com eles. Disse que a polícia não ia machucar a gente não”, conta L.
A chuva apertou e os trabalhadores tentaram se proteger debaixo de uma lona, onde ficaram até serem surpreendidos pelos policiais. Chuva, vento e relâmpagos impediram que eles escutassem qualquer barulho de aproximação dos policiais.
“Eu mesmo só escutei: ‘Não corre não, senão vai morrer todo mundo, bando de bandido.’ Falaram isso e já estavam atirando. Não deu chance de fazer nada. Como estávamos ali, eles podiam ter chegado e prendido todo mundo. Foi um susto tão grande que o pessoal se embolou por cima daquela lona. Quando eu consegui dar um passo para correr, o menino do meu lado levou um tiro nas costas. Eu caí, me embolei por cima dele e segui me arrastando. Tinha um matinho perto de mim, uma moita, consegui me esconder ali. Ouvi a policia falando de novo: “Não corre não, que vai morrer”, mas era com outra pessoa, mesmo assim eu fiquei imóvel, achei que era comigo. Fique ali, e só ouvia eles batendo em todo mundo, muita pancada, tiro e humilhação. Tinham três babaçus me cobrindo, se eu me movesse eu ia morrer também, estava de costas e ouvia tudo, em choque”, relembra L.
Dona Jane Julia, a única mulher que estava com os trabalhadores, ainda tentou pedir pela vida deles, mas os policiais estavam determinados.
“Falavam em códigos, e gritavam que era para pegar todos. Eu ouvi Dona Jane pedindo pelos meninos, os policiais debochavam dela ‘É você, sua velha gorda, safada, era tu que nós queria.’ Bateram muito nela e depois atiraram. Eu escutava ela gemendo e os meninos chorando, implorando aos policiais que não atirassem. Eles atiraram muito, eu sentia o cheiro de pólvora. Moça, pegaram os meninos ali, espancaram e mataram. Foi aí que pensei que eles não estavam ali para prender ninguém, era para matar mesmo. Consegui rastejar na moita e sair lá na frente”.
Depois de perceber que os policiais haviam ido embora, no fim da tarde, L. ainda encontrou companheiros baleados no meio do mato, tentou salvá-los, mas já não havia tempo para isso. Com a escuridão, só conseguiu encontrar a saída da mata por volta da 1h da manhã. Ao conseguir ajuda, L. teve a confirmação de que os amigos estavam mortos.
Mesmo com todo o sofrimento, ele afirma que não tem medo, que sabe que não fez nada errado, apenas quer ter seu pedaço de chão para plantar. Famílias sem terra voltaram a ocupar a área da fazenda Santa Lúcia, e o novo acampamento foi batizado de Jane Júlia.
O massacre de Pau D´arco revela uma estrutura que se perpetua no estado do Pará e em vários lugares do país. A participação de agentes do estado a serviço de latifundiários, proprietários de terra e empresários, contra trabalhadores/as que lutam pelo acesso à terra.
“Analisamos o número de mortes no campo, em 2015, 2016 e 2017, juntamente com o desmonte das políticas sociais nesse período, tais como o enfraquecimento do Incra e da Funai – órgãos responsáveis pela realização da reforma agrária – além da flexibilização de legislações. De um lado, você tem a ausência de políticas sociais e o desmonte das políticas existentes. De outro, o aumento da violência. É preciso que o Estado retome seu papel e garanta as políticas sociais necessárias. Pau D´arco é um exemplo muito emblemático, mas não isolado, onde as forças de segurança alinhadas aos fazendeiros e proprietários estão garantindo a propriedade privada em detrimento de populações que necessitam, vivem e garantem a função social daquelas propriedades”, denuncia Layza Queiroz, advogada da Terra de Direitos, representante do Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos (CBDDH).
Nesses casos, o desafio do Estado é punir, além dos executores, também os mandantes. Mas a realidade mostra que na maioria das vezes, os mandantes ficam impunes e novos assassinatos são financiados por esse sistema.
“Nós conseguimos chegar aos executores que provavelmente serão submetidos a juri popular. O importante é que essa estrutura que perdura há muito tempo no Pará seja responsabilizada. Infelizmente, a Polícia Federal retirou sua equipe da investigação e deixou um delegado local no caso que está com cem inquéritos na mão. Estamos batalhando para que a gente chegue nos mandantes, esclareceu o representante do Ministério Público (MP), procurador Alfredo Amorim do MP de Redenção (PA), um dos procuradores responsáveis pelo caso.
No momento, 15 policiais, 13 militares e dois civis envolvidos no massacre estão presos. As investigações constataram que os crimes foram execução, e não confronto como a versão inicial – contada pelos policiais.
Violência no estado- A violência no Pará atinge índices altíssimos, principalmente nas regiões Sul e Sudeste do estado. De acordo com a Comissão Pastoral da Terra (CPT ), são aproximadamente 160 imóveis em situação de conflito entre famílias sem – terra e proprietários rurais. Só neste ano já foram registradas 20 mortes em decorrência desses conflitos.
Missão Ecumênica- A Missão Ecumênica, que aconteceu de 08 e 10 de novembro, visitou também o acampamento Hugo Chavez em Marabá, onde 300 famílias lutam para ficarem na área. Outras atividades realizadas pela Comitiva foram um ato ecumênico em Redenção no Pará com a participação de familiares das vítimas do massacre de Pau D´arco e uma reunião com procuradores responsáveis pelo caso desse massacre.
Ações: Defensores e Defensoras de Direitos Humanos
Eixos: Política e cultura dos direitos humanos