Gazeta do Povo | É preciso mais transparência na revisão da nova Lei de Zoneamento de Curitiba


Curitiba é famosa pelo seu planejamento urbano, mas o que de fato funciona é o controle sobre o uso e a ocupação do solo, definidos pela Lei de Zoneamento. Essa legislação está atualmente em revisão e a sociedade está deixando o debate passar. 
Fonte: Gazeta do Povo 
Por Luana Xavier Pinto Coelho (advogada popular da organização Terra de Direitos), Maria Eugenia Trombini (advogada popular da organização Terra de Direitos) e Alexandre Pedrozo (arquiteto e urbanista), todos membros da Frente Mobiliza Curitiba

Em síntese, é a Lei de Zoneamento e Uso e Ocupação do SOlo que traz, entre outras coisas, o número máximo de pavimentos, os usos permitidos (residencial, comercial, industrial, entre outros) e demais limites para construção e uso dos imóveis. Foto: Antonio More/Arquivo/Gazeta do Povo

A democracia está no centro dos debates de botequim, mesas de jantar e até no centro da comédia produzida no Brasil. Apesar do debate sobre democracia focar nos rumos da política nacional, pouco ou quase nada se aproveita no fortalecimento da democracia local. Aliás, pouco se sabe sobre a democracia participativa e os diferentes espaços que o cidadão pode e deve se envolver para definir os rumos das cidades.

Lentamente, o planejamento urbano tem saído das mãos dos técnicos e demandado, cada vez mais, grandes debates públicos. Ou pelo menos, este é o movimento que se imprime na prática legislativa e nas experiências do poder executivo.

No Brasil inaugura-se uma nova prática com a introdução do planejamento participativo obrigatório a partir da Constituição de 1988. Visando evitar repetir erros do passado e, ainda, acreditando nos planos urbanísticos como forma de democratizar o espaço urbano, a participação popular se introduz nos debates do planejamento em todos os seus âmbitos, em especial a partir de 2001, com o Estatuto da Cidade.

A obrigatoriedade de participação popular estende-se a todos os instrumentos que interferem na produção e gestão do espaço urbano e, portanto na vida das pessoas. O zoneamento do uso e ocupação do solo, um dos principais instrumentos de planejamento urbano introduzidos no Brasil, é o mais conhecido e talvez o mais polêmico entre os agentes que debatem e constroem a cidade, seja por incorporação imobiliária, novas obras, reformas ou alteração de empreendimentos. Em síntese, traz a tabela com o potencial construtivo dos terrenos, o número máximo de pavimentos, os usos permitidos (residencial, comercial, industrial, entre outros) e demais limites para construção e uso dos imóveis.

Por ser parte integrante do Plano Diretor municipal e por entrar nos detalhes que mais afetam o cotidiano da cidade, seus moradores e a realização de empreendimentos, o zoneamento deve seguir os mesmos ritos de debate público e construção coletiva para seu projeto de lei. Não pode ser debatido de forma genérica, sem fundamentos para sua alteração.

Mas por que nos importa saber sobre o zoneamento e qual o impacto tem em nossas vidas? Poucos imaginam, mas o impacto é enorme.

 

 

 

Pressão sobre a cidade

No início deste ano foi anunciada a revisão da Lei de Zoneamento e Uso e Ocupação do Solo de Curitiba, primeiro desdobramento considerando a aprovação do Plano Diretor no ano passado. Curitiba é famosa pelo seu planejamento urbano, mas o que de fato é bem sucedido é o controle sobre o uso e a ocupação definidos em lei. Os planos e zoneamento são instrumentos comuns em grande parte das cidades brasileiras, mas a aplicação destas regras e, portanto, o controle sobre a paisagem urbana (usos, altura das edificações, hierarquia das vias, entre outras regras) é realmente um diferencial no caso curitibano.

Em Curitiba, o Plano de 1966 já definiu zonas e planejou a expansão urbana através do instrumento do zoneamento. A atual legislação é de 2000 e, embora algumas alterações tenham sido feitas via decretos municipais, por exemplo, não foi compatibilizada com o Estatuto da Cidade (2001) nem com o Plano Diretor de 2004 e, principalmente, com a recente revisão de 2015.

O Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (Ippuc) insiste que o zoneamento é técnico e, sendo assim, justifica o pouco espaço e tempo para o debate público. A entrega do projeto de lei ao Legislativo está prevista para o fim de junho deste ano.

Ainda que tenham sido realizadas, recentemente, oficinas regionais, a partir da pressão de diferentes segmentos sociais da cidade, a forma e conteúdo disponibilizados foram superficiais. Eventos assim podem até inaugurar um diálogo, mas os organizadores sabem que não alcançam questões essenciais que a cidade precisa debater e reformular.

Até o presente momento não foram disponibilizados textos e mapas consistentes que subsidiem esta alteração do zoneamento. A nosso ver, a principal instituição de planejamento de Curitiba não aproveita o conhecimento acumulado entre seus próprios gestores públicos e ainda, nega princípios da democracia participativa e inovadora, que no passado foi experimentada pelo prefeito Maurício Fruet, que discutia os planos de bairro com o pé na lama e com boa vontade para o contraditório.

É evidente que as normas e a realidade curitibana desde os tempos de Maurício Fruet evoluíram, mas o princípio democrático permanece. A participação democrática não se resume ao “ouvir” o cidadão e as entidades representativas, mas dialogar, debater, responder com um conhecimento sistematizado e acessível, e, principalmente, sustentar os argumentos com posicionamento técnico e político, sempre indissociáveis. Nossas instituições estão ainda aprendendo a “ouvir”, incomodados com as vozes que estão pouco a pouco se preparando para propor e dialogar.

As pessoas e instituições governamentais e não governamentais tem muito a aprender e ensinar. Precisam conhecer, objetivar, concordar e estabelecer as prioridades sobre quais problemas o zoneamento pode e pretende enfrentar.

Pode-se citar, por exemplo, uma das distorções no zoneamento de Curitiba: os edifícios de alta renda se distribuem ao longo dos nossos principais eixos de transporte coletivo. Por outro lado, famílias de menor renda, principais usuários do sistema de transporte continuam se aglomerando nas extremidades do município e nas periferias da metrópole. A “nova Curitiba” ou Ecoville, por exemplo, materializou esta negação da cidade, pois só existe vida (com alta renda e muito medo da violência) e áreas verdes no interior dos “clubes de morar”. Os espaços públicos são inseguros e não existe a diversidade dos demais eixos comerciais curitibanos.

Também é urgente a demarcação de novas zonas de interesse social (ZEIS) que acelerem a regularização das mais de 300 ocupações precárias de Curitiba, retirando estas comunidades do clientelismo e garantindo direitos e melhores possibilidades de inclusão e desenvolvimento econômico. Definir novas ZEIS é um dos primeiros passos para regularizar a posse das várias comunidades urbanas que informalmente ocuparam – e/ou compraram – e urbanizaram Curitiba para garantir seu direito constitucional a moradia digna.

ZEIS também permitem reservar terrenos para moradia por meio de projetos habitacionais em regiões infraestruturadas da cidade. Não criam guetos. Pelo contrário, criam alternativas e se contrapõe à histórica produção de guetos na periferia. Obviamente não é a única solução ou instrumento para combater a desigualdade, mas com certeza define uma direção distinta da segregação urbana.

Enfim, debater, acertar ou repensar argumentos para o zoneamento se insere numa nova versão de planejamento urbano, onde a democracia local é incentivada, e os munícipes são co-partícipes da gestão.

É verdade que as regras afetam alguns positivamente e outros negativamente. Mas o interesse coletivo é que deve pautar os atos da administração pública, e a maioria deseja ver esses instrumentos aplicados para viver em uma cidade com qualidade (não apenas aparente) e com justiça social.

Sem participação popular no debate fica comprometido o próprio controle social sobre o zoneamento, cujo resultado pode ser reflexo de interesses de grupos de pressão com trânsito nos gabinetes e ateliês. Os mesmos que conseguiram as normas para a “Ecoville”, por exemplo, que privilegiaram incorporadoras e proprietários, em detrimento de um projeto público de cidade. A conjuntura de eleições municipais agrava ainda mais o cenário, recomendando que a transparência e a publicidade pautem o atual processo de revisão.

Reconhecer que a cidade é local de contato, e, portanto, de disputa, fundamenta o planejamento urbano participativo. Em breve saberemos o modelo de zoneamento que será proposto para o desenvolvimento da cidade de Curitiba, até lá esperamos garantir canais de diálogo (com base em projeto de lei) e momentos de deliberação para ver os interesses coletivos contemplados acima das históricas negociações de gabinete.

 



Ações: Direito à Cidade
Eixos: Terra, território e justiça espacial