Falsas soluções via mercado de carbono não garantem direito à estabilidade climática
Como supostas soluções para a crise climática, os mercados de carbono são a aposta feita nos acordos internacionais sobre mudança climática para o mundo, e especialmente para a Amazônia. O tema vem sendo debatido na COP27, que está acontecendo em Sharm El-Sheikh, no Egito.
A origem dos mercados de carbono não é nova e está relacionada à definição de limites para emissões de gases de efeito estufa, no âmbito da Convenção Quadro sobre Mudança do Clima da Organização das Nações Unidas (ONU) e do Protocolo de Quioto, na década de 1990. Havendo limitação de emissões na atividade econômica, o cumprimento da meta poderia ser obtido com compensação de poluição por crédito oriundo da conservação ambiental, por exemplo. A ideia central do mercado de carbono é negociar o direito de poluir.
Os mercados de carbono se organizam de diversas formas no mundo. No Brasil, tramita o PL nº 2148/2015 (e seus apensos) para regulamentar o mercado brasileiro de emissões. Enquanto isso, as propostas de mercados voluntários chegam às áreas protegidas (unidades de conservação, terras indígenas e territórios quilombolas) em diversos biomas do país. Estruturados em plataformas de negociação e estimulados por pequenas empresas intermediárias e por grandes empresas compradoras de mercado de carbono, esse setor tem avançado nos últimos anos.
Com a criação desse mercado voluntário, qual a proposta de uma empresa, do tipo startup por exemplo do ramo de mercado de carbono para uma comunidade tradicional na Amazônia? Vamos imaginar um território de 2 mil hectares em um município no Pará. Pelo manejo tradicional da floresta pela comunidade, a área contém grande diversidade de flora e de fauna, com cobertura de vegetação nativa preservada. Para a empresa seria interessante apresentar uma proposta de contrato de mercado de carbono por 30 anos. A empresa inicialmente realizaria estudos para conferir qual a capacidade desses 2 mil hectares de fazerem o que lhes é natural, absorver gás carbônico. Caso seja um município com alta taxa de desmatamento, a garantia da conservação da floresta nesses 2 mil hectares agregaria valor já que o desmatamento também causa emissões de gases de efeito estufa.
Para garantir sua mercadoria - que é serviço ecossistêmico - a empresa, via contrato, limitaria as formas de uso do território, atingindo formas de agricultura até uso da casa. As cláusulas podem corresponder a um controle do território pela empresa. Uma informação importante. Para a empresa seria atrativo se a comunidade tivesse algum documento fundiário válido. Nesse sentido, o tema sobre crédito de carbono vem avançando significativamente na Amazônia e algumas comunidades tradicionais têm sido alvos. No estado do Pará as comunidades quilombolas no arquipélago do Marajó e localizadas no nordeste do estado tem sido afetadas por esta proposta. O assédio é forte sobre as comunidades e está baseado em um discurso de combate à pobreza, de controle do desmatamento, da conservação e preservação ambiental, palavras essas que se destacam em meio às investidas das empresas diante das comunidades tradicionais.
Direito de consulta prévia
No nordeste do estado do Pará, com um número significativo de comunidades quilombolas e de comunidades tradicionais agroextrativistas, o assunto do mercado de carbono é alvo de divergência de opiniões. O respeito aos direitos territoriais dessas comunidades não vem sendo respeitado. Entre um dos direitos violados tem sido o direito à consulta prévia, livre e informada com base na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário.
Com grandes impactos para povos e comunidades tradicionais, as iniciativas de crédito de carbono precisam ser amplamente conhecidas e debatidas por essas comunidades. Com objetivo de buscar conhecimento a respeito do projeto e do contrato do crédito de carbono e resguardar seus territórios tradicionais que algumas comunidades quilombolas do nordeste paraense apresentaram denúncia no Ministério Público do Estado do Pará sobre as cláusulas contratuais do projeto e se o contrato trará ou não benefícios às comunidades. As promessas feitas às comunidades é de que irão receber muito dinheiro para manter a floresta em pé. A iniciativa utiliza da propaganda que essas comunidades já fazem essa preservação ambiental, mas não recebem nada em troca e que o crédito de carbono é uma oportunidade única de mudar de vida e ter acesso a saneamento básico, saúde, educação e dentre outras promessas.
A transparência e o diálogo são pontos fundamentais para que todos entendam como funciona o projeto. No entanto, algumas comunidades já denunciaram ações de violação do direito de consulta, com apresentação de atas prontas em reuniões, para que as pessoas presentes assinassem como se tivessem de fato ocorrido a consulta sobre o tema nas comunidades, indo em total desacordo com a Convenção 169.
É importante chamar atenção para a forma como o assunto está chegando até as comunidades tradicionais. O que se discute não é se o projeto ou contrato é bom ou ruim para as comunidades, mas que as comunidades possam de fato ter a possibilidade de conhecer e discutir a respeito do mesmo e, com segurança, decidir a respeito. Para que a decisão pelas comunidades ocorra com segurança deve ser assegurado, como prevê a Convenção 169, que a consulta prévia aos povos afetados por medidas que afetem seus modos de vida não seja uma mera consulta posterior e seja livre de qualquer constrangimento, com oferta de informação e em linguagem acessível para as comunidades.
Com isso, na “corrida” pelos créditos de carbono, as comunidades quilombolas com títulos já emitidos têm sido alvo de assédio por parte de empresas e projetos. O Pará, por ser o estado que mais titulou territórios quilombolas no Brasil, lidera a onda de assédios, e as comunidades seguem vulneráveis às promessas de melhora de vida pela venda de créditos. Contudo, a realidade concreta e denunciada mostra a face cruel do capital por trás da falácia do “lucro ‘com a floresta em pé”: lideranças sendo induzidas a aceitar contratos sem sequer ter acesso ao teor do que está sendo celebrado.
*Flávia Santos e Queila Couto são quilombolas e assessoras jurídicas da Coordenação das Associações das Comunidades Remanescente de Quilombo do Pará - Malungu.
**Pedro Martins é advogado popular e atua na organização de direitos humanos Terra de Direitos.
Ações: Empresas e Violações dos Direitos Humanos
Eixos: Terra, território e justiça espacial
Tags: COP27,mercado de carbono,amazônia