É urgente o avanço de medidas que garantam a proteção dos territórios de povos e comunidades tradicionais
A ausência de normativa federal de regularização fundiária tem dificultado o acesso a políticas públicas e exposto os territórios ao assédio de empreendimentos
Imagine só uma festa em que apanhadoras e apanhadoras de flores Sempre-vivas da Serra do Espinhaço (MG) compartilham seus saberes, reinvindicações e suas práticas tradicionais - práticas estas reconhecidas pela Organização das Nações Unidas (ONU). Com uma estreita relação com o território e respeito aos ciclos da natureza, o sistema tradicional das apanhadoras de flores Sempre-vivas recebeu o selo de reconhecimento de Sistemas Importantes do Patrimônio Agrícola Mundial (Sipam), concedido pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), em 2020. Foi a primeira vez que um modo de vida tradicional foi reconhecido como patrimônio agrícola mundial no Brasil.
Agora considere que estes saberes e práticas estão sob risco pela ausência de uma normativa brasileira que garanta a proteção territorial a povos tradicionais, como as apanhadoras de flores.
Para os povos tradicionais o território é algo sagrado e nele acontece a vida, e como defendia o mestre Nego Bispo, o território não pode ser reduzido a um espaço geográfico ou jurídico delimitado por fronteiras. Para os povos e comunidades tradicionais, o território é espaço de vida e de memória, constituído pelas relações entre natureza, ancestralidade, espiritualidade e modos de produção e reprodução da existência. Em sua perspectiva, território é inseparável da cultura. E aí que a gente chega na festa das comunidades de apanhadoras de flores Sempre-vivas.
Desde 2017 as comunidades realizam, de forma coletiva, a festa da panha. Com apoio da Comissão em Defesa dos direitos das Comunidades Extrativistas (Codecex) a Festa da Panha ou Festival das Comunidades Apanhadoras de Flores Sempre-vivas é muito mais que um ato político: é celebração da força e da resistência dos apanhadores e apanhadoras de flores Sempre-Vivas em defesa do território e das práticas tradicionais. De caráter itinerante, o evento já percorreu municípios como Diamantina e Presidente Kubitschek e, neste ano, chega a Buenópolis (MG). A festa começa nesta quinta-feira (18)
Sua origem remonta a um gesto de protesto. A primeira edição ocorreu na Comunidade de Macacos, em Diamantina, quando as comunidades subiram a campo - que está sobreposto pelo Parque Nacional das Sempre-vivas - em desobediência às restrições impostas pelo ICMBio. Nas edições seguintes, o festival ocupou o centro histórico de Diamantina, reforçando a presença simbólica das comunidades, e promoveu o diálogo entre campo e cidade. Nesta edição, em Buenópolis, não houve apoio do poder público e a organização ficou sob responsabilidade direta das comunidades de Lavras e Pé de Serra e apoio de parceiros e aliados.
Nessa edição destaca-se um marco importante na trajetória dos apanhadores, a entrega do novo Plano de Conservação Dinâmica (2025-2030), uma das peças técnicas do Reconhecimentos como Sistemas Importantes do Patrimônio Agrícola Mundial das comunidades Lavras, Pé-de-Serra, Raiz, Vargem do Inhai e Mata dos Crioulos e Macacos pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO).
Regularização fundiária, já!
Embora seja um momento de comemoração e renovação para as comunidades, a festa também é de reinvindicação. O modo de ser, viver e fazer das comunidades apanhadoras já são reconhecidos pelo estado brasileiro e mundialmente, mas a proteção dos seus territórios ainda é uma luta diária. Assim, a regularização fundiária dos territórios tradicionais é urgente. Uma reivindicação das comunidades apanhadoras de flores sempre-vivas e demais 27 segmentos, como as geraizeiras, os pescadores artesanais e as quebradeiras de côco babaçu.
As comunidades e povos sofrem impactos intensos por não terem a proteção dos seus territórios tradicionais. No caso das apanhadoras, há sobreposição dos territórios com unidades de conservação de proteção Integral e o avanço das monoculturas, impedindo a panha das flores Sempre-vivas, a solta o gado, o manejo tradicional do fogo.
Além da violação do direito ao território, a não proteção territorial tem gerado também impactos na renda, nas práticas tradicionais, fragmentação dos territórios e aumento de violência contra as comunidades por agentes externos, como grileiros. Esse cerceamento causa danos no bioma Cerrado e aos modos de vida dessas comunidades como, por exemplo, na perda de algumas espécies de Sempre-viva, plantas medicinais, frutos, perda de nascentes de água e criminalização de lideranças.
A falta da regularização fundiária é um problema central para as apanhadoras e demais segmentos de povos tradicionais. A pesquisa Linha de Frente, desenvolvida pelas organizações Terra de Direitos e Justiça Global sobre violências contra defensoras e defensores de direitos humanos ocorridas nos anos 2023 e 2024, revela que 80,9% de defensores que sofreram violência atuavam na defesa de terra, território e meio ambiente. Os dados evidenciam que a falta (ou ao menos a morosidade) da regularização dos territórios e maretórios tradicionais são um dos principais fatores que expõem as comunidades à um quadro de violência.
Nesse sentido, os povos e comunidades tradicionais reivindicam a regulamentação do Decreto 6.040/2007, que reconhece os 28 seguimentos de povos e comunidades tradicionais. Com quase duas décadas da existência da normativa, ainda não existe uma norma federal de regularização de território tradicional que contempla os seguimentos. Os povos Indígenas têm a garantia territorial prevista na Constituição Federal e no Decreto Federal 1775/96, bem como as comunidades quilombolas, que tem previsão constitucional e regulamentação pelo Decreto Federal 4.887/2003. Os demais povos e comunidades tradicionais – como as apanhadoras - não possuem uma previsão federal, somente alguns estados do Brasil que tem regulamentações.
O Estado de Minas Gerais, por exemplo, tem a Lei Estadual 21.147/2014, que instituiu a política estadual para o desenvolvimento sustentável dos povos e comunidades tradicionais. Embora homologada em 2014, até o presente momento não registra nenhum território regularizado.
Dadas a fragilidade e baixa execução dessas normas estaduais, os povos e comunidades tradicionais - através do Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT) - protocolou no Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA) uma proposta de minuta de decreto presidencial para regularização territorial de povos e comunidades tradicionais.
A construção dessa minuta vem de um longo processo de luta, amadurecimento e ação conjunta. Nessa jornada, o MDA contratou uma consultoria para levantar todas as normas já existentes, o que possibilitou que os povos e comunidades tradicionais visualizassem o que já é aplicável e o que ainda precisa ser pensado e criado. Para essa construção os povos e comunidades contavam com a realização de cinco seminários realizados pelo Ministério, com a finalidade de ouvir o máximo de pessoas. Contudo, após a realização de dois seminários, esbarramos no sequestro do orçamento público pelo Congresso Nacional, o que forçou uma pausa nessa metodologia. Diante desse novo empecilho, o CNPCT, juntamente com alguns representantes dos seguimentos e apoio de organizações, entre elas a Terra de Direitos, elaborou uma minuta que foi aprovada em plenária do CNPCT e entregue ao MDA.
Atualmente, a minuta encontra-se no Procuradoria do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) aguardando parecer para continuar a tramitação até a assinatura presidencial.
As comunidades presentes no 4º Festival das comunidades apanhadoras Sempre-vivas reforçam a importância dessa norma jurídica e tem expectativa que o decreto seja publicado até a COP30. Aí sim o Governo pode anunciar para o mundo o que povos reafirmam a todo instante: que não existe justiça climática sem garantia e proteção dos territórios tradicionais.
*Marina Antunes é assessora jurídica da Terra de Direitos e integrante da Comunidade de apanhadoras de flores Sempre-vivas de Lavras (MG)
Maria de Fátima (Tatinha) está na coordenação da Codecex e é apanhadora de Flor Sempre-viva.
Andreia Ferreira dos Santos, assessora técnica da Codecex e apanhadora de flores Sempre –vivas e quilombola Quilombo de Raiz (MG)
Ações: Biodiversidade e Soberania Alimentar
Eixos: Biodiversidade e soberania alimentar
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