Biblioteca / Artigos



Gasolina no fogo


Foto: Leo Otero

O assassinato da liderança indígena Maria Fátima Muniz de Andrade, conhecida como Nega Pataxó, em janeiro de 2024, evidencia a vulnerabilidade e os desafios estruturais enfrentados por quem defende direitos humanos no Brasil. Desafios que são históricos e que atualmente tornam-se ainda mais complexos com novas configurações de violência. Liderança espiritual, professora e uma referência para jovens e mulheres indígenas no país, Nega Pataxó foi morta durante um ataque promovido por cerca de 200 fazendeiros do grupo autointitulado Movimento Invasão Zero, na retomada da Fazenda Inhuma, no município de Potiraguá, no Sul da Bahia, em área reivindicada pelos Pataxó Hã Hã Hãe como território índigena. 

A líder indígena é uma das 55 vítimas de assassinatos registrados na nova  edição da pesquisa "Na Linha de Frente: violência contra defensoras e defensores de direitos humanos no Brasil", elaborada pelas organizações de direitos humanos Justiça Global e Terra de Direitos. A pesquisa registrou no total 486 casos de violência entre os anos de 2023 e 2024.

O ataque que vitimou Nega Pataxó trouxe à tona a brutalidade de um movimento que até então se dizia “ordeiro e pacífico". O Movimento Invasão Zero foi criado em 2023, na Bahia, por latifundiários, e nasce – segundo o próprio site do movimento – por proprietários que “decidem reagir às invasões” do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) na Bahia. O grupo que conta, segundo seus fundadores, com cerca de 15 mil filiados em ao menos 10 estados, é formalizado enquanto pessoa jurídica e possui canais oficiais de comunicação como site, redes sociais e grupos no aplicativo de mensagem  WhatsApp onde os fazendeiros articulam suas ações. Há, inclusive, a existência de uma cartilha que orienta como deve ser a ação dos fazendeiros em caso de ocupações de terra.
 
A criação do movimento acirrou a violência em um estado que já figurava entre os mais violentos contra quem defende os direitos humanos. Com 50 casos de violência registrados entre 2023 e 2024, a Bahia é o segundo estado com maior número de violência mapeados na pesquisa realizada pelas organizações  e o estado que mais registrou assassinatos contra defensoras e defensores no período: Em dois anos, 10 pessoas foram assassinadas no estado por defenderem direitos - quase o mesmo número de assassinatos dos quatro anos anteriores, quando a primeira edição da pesquisa Na Linha de Frente identificou 12 assassinatos entre 2019 e 2022.

A atuação do Invasão Zero tem sido denunciada pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal. Em nota técnica produzida em abril de 2024, o MPF classifica o Invasão Zero como uma milícia rural a ser enfrentada. No   mesmo período, a Relatora Especial sobre a situação das pessoas defensoras dos direitos humanos da ONU, Mary Lawlor, cita o grupo como um intensificador da violência contra defensores de direitos humanos no campo e se pronuncia sobre a necessidade do Estado brasileiro combatê-lo. 

O Movimento Invasão Zero estende sua atuação para qualquer grupo que reivindica o direito à terra ou ao território ancestral e sua prática envolve despejos ilegais e ataques armados. Além da naturalidade com que se organiza um grupo que promove ações armadas, chama a atenção a complacência da polícia no caso do assassinato de Nega Pataxó. Testemunhas afirmam que a Polícia Militar abriu caminho para a ação de fazendeiros no ataque contra os Pataxó, o que reforça que agentes do Estado também são responsáveis pela violência contra quem defende direitos.

Ainda que recente, a atuação do Invasão Zero retoma antigas práticas de disseminação da violência no campo. Um dos exemplos mais emblemáticos da atuação articulada de grandes proprietários de terra foi fundada em 1985, no oeste de São Paulo. A União Democrática Ruralista (UDR) foi criada, nas próprias palavras, tendo como "princípio fundamental a preservação do direito de propriedade". Na prática, exerceu papel de organização de milícias privadas para promover despejos ilegais. No Paraná, a UDR teve ligação com empresa de segurança privada de fachada que contratava pistoleiros que atuavam a serviço de fazendeiros para promover os despejos ilegais. O esquema envolvia a participação de policiais militares que contrabandeavam as armas do Paraguai. Ao menos três trabalhadores rurais Sem Terra foram assassinados no Paraná em ações com envolvimento da UDR. 

Violência institucionalizada
Mais do que a prática de despejos ilegais, outra estratégia aproxima o Movimento Invasão Zero do modus operandi da UDR: a atuação nas diferentes esferas de poder. Durante os quatro anos do governo de Jair Bolsonaro, o então presidente da UDR, Nabhan Garcia, ocupou o cargo de Secretário de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura.

No antigo site, a União Democrática Ruralista também atribui à sua criação a necessidade de que os ruralistas sentiam em se mobilizar “para conscientizar o Congresso Nacional a criar uma Legislação que assegurasse os direitos de propriedade” - um direito, inclusive, reivindicado muitas vezes pelos fazendeiros sobre terras griladas do patrimônio público.  

A mobilização do Congresso e de diferentes casas legislativas parece ser também uma das frentes de atuação do Invasão Zero. Em 2023, mais de 200 deputados federais e senadores também lançaram a Frente Parlamentar Invasão Zero, que teve como uma de suas primeiras ações a apresentação do ”Pacote Invasão Zero”, em que  reúnem projetos de leis que na prática criminalizam a luta por terra no Brasil, e reforçam a exploração predatória de recursos naturais. Outras frentes parlamentares foram lançadas nas Assembleias Legislativas de Mato Grosso do Sul e Santa Catarina.

Longe de ser novidade, o “Invasão Zero” é apenas a nova face de uma velha prática que une interesses privados, ação de grupos criminosos e um aparato legal manipulado com a participação — ou anuência — de setores do Estado. Trata-se de uma máquina de violência que ataca diretamente o direito à terra, reforça a concentração fundiária e busca silenciar, pela criminalização, aqueles e aquelas que dedicam a vida à defesa dos direitos humanos. 

*Franciele Petry - jornalista e assessora da organização Terra de Direitos
*Thais Gomes  - pesquisadora do Programa de Proteção de Defensores de Direitos Humanos e da  Democracia da organização Justiça Global



Ações: Defensores e Defensoras de Direitos Humanos
Eixos: Política e cultura dos direitos humanos
Tags: Invasão Zero,Defensores,Direitos Humanos,Bahia,Pataxó