Luta pelo direito à terra no Brasil: criminalização, violência e impunidade

*Artigo publicado no livro Caso Gabriel Sales Pimenta – Violência contra Pessoas Defensoras de Direitos Humanos de Trabalhadores Rurais: Combate à Impunidade Estrutural, elaborado pelo GT Sales Pimenta.
O Estado brasileiro possui quatorze sentenças condenatórias proferidas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Desse total, quatro decisões estão diretamente relacionadas à violência e criminalização da luta pela terra, sendo três casos relacionados a fatos ocorridos no Paraná e um no Pará.
Cada uma dessas decisões, somadas às análises feitas pela Comissão Interamericana sobre a realidade brasileira ao longo dos anos, aporta importantes elementos para compreender as engrenagens da violência no campo e indicam caminhos para o seu enfrentamento, assim como para a superação da impunidade.
É importante lembrar – pois ainda pouco visibilizada - que cada uma dessas condenações internacionais foi precedida de um grande esforço e mobilização das vítimas, familiares, movimentos e organizações sociais na busca por justiça em relação aos crimes cometidos contra camponeses/as no país. A mobilização desses atores, inclusive através de litígios estratégicos internacionais em matéria de direitos humanos, tem contribuído de modo significativo para a construção de estratégias de luta por direitos e de proteção de pessoas defensoras, para o debate sobre a política pública de proteção e o reconhecimento da relação indissociável entre violência no campo e a ausência de políticas de reforma agrária e de regularização fundiária.
Nessa perspectiva, o presente artigo consolida informações contidas na declaração prestada por Darci Frigo[ii], na condição de testemunha perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso Gabriel Sales Pimenta Vs. Brasil,[iii] a partir da sua atuação como defensor de direitos humanos, especialmente em conflitos agrários, e de sua participação na construção do Programa Nacional de Proteção a Defensores/as de Direitos Humanos.
Além disso, referida declaração é atualizada com e acrescida de dados, reflexões e análises construídas pela organização de direitos humanos Terra de Direitos – criada no contexto de mobilização por justiça em relação aos crimes do latifúndio no Paraná – a partir de 22 anos de trabalho de assessoria jurídica popular a movimentos sociais que lutam pelo direito de acesso à terra e território, na proteção a defensores e defensoras de direitos humanos e atuação em casos emblemáticos de violência contra os Sem Terra naquele Estado.
Uso histórico da violência para tentar silenciar a luta por direitos no campo brasileiro: o exemplo do Pará e do Paraná
No início da década de 1980, quando Gabriel Pimenta, defensor dos direitos humanos de camponeses no Sudeste do Pará, foi assassinado, o Brasil ainda vivenciava um contexto de ditadura civil militar, estruturada a partir de uma aliança das forças armadas com latifundiários e grandes empresários.
No período, aquela região sofreu diversas transformações econômicas e sociais, pautadas por uma postura centralizadora e do exercício de controle por parte do Estado e do mercado sobre aquele território, com uma perspectiva colonial e exploratória, o que incluiu a realização de grandes empreendimentos. Um exemplo disso foi a criação do Grupo Executivo de Terras do Araguaia-Tocantins (Getat) em fevereiro de 1980 e a construção da Rodovia Transamazônica e da PA 150, iniciadas na década de 1970. Para o campesinato e as pessoas defensoras de direitos humanos foi um período de invasão do território por grandes fazendeiros e grileiros, caracterizado por muita violência e impunidade.
De acordo com dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), entre os anos de 1985 e 2013,[iv] o Estado do Pará foi responsável por 38% dos assassinatos por conflitos por terra no Brasil, registrando 645 mortes por conflitos no campo. Atualizando esses dados, a organização aponta que cerca de 65,36% dos assassinatos no campo registrados entre 1980 e 2020 sequer foram investigados. Entre todos os casos julgados, até hoje, apenas um mandante cumpriu a pena integralmente.
O contexto em que aconteceu o assassinato do advogado popular Gabriel Pimenta, longe de ser um fato isolado, é reflexo de uma realidade espraiada pelo Brasil, cuja história tem sido marcada pelo uso da violência para tentar silenciar, frear, impedir ou exterminar a organização social voltada a reivindicar direitos no campo. Por violência, entenda-se: assassinatos, execuções sumárias, torturas, despejos ilegais, ameaças, intimidações, criminalização, dentre outras modalidades.
No contexto de prevalência e persistência de uma modelo econômico agrário exportador determinado por seu passado colonial e de escravidão, em que os grandes proprietários de terra detêm boa parte do poder político e econômico, a luta pelo direito à terra tem sido histórica e fortemente reprimida, criminalizada e estigmatizada, por agentes públicos e, também, privados.
Em síntese, dois elementos marcam a realidade do campo brasileiro. De um lado, uma intensa mobilização popular, a exemplo do Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra que, em 2024, completa 40 anos de existência e é considerado o maior movimento social da América Latina. E, de outro, a violência estatal e privada e a impunidade.
Um dado que sintetiza essa afirmação é o fato de que o Dia Internacional da Luta pela Terra é uma homenagem às vítimas do Massacre de Eldorado dos Carajás, quando 21 trabalhadores rurais foram assassinados por policiais militares, episódio que segue impune.[v]
Uma retrospectiva de casos ocorridos no Pará revela esse padrão que combina violência e impunidade. Eis alguns exemplos reunidos pela CPT: no caso da freira Adelaide Molinari, assassinada em 14.04.1985 em Eldorado dos Carajás, apenas o pistoleiro foi julgado e absolvido em 28.04.2004 e o júri ocorreu 19 anos após o crime; o Sindicalista João Canuto, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Maria, no sul do Pará, foi assassinado em 18.12.1985 e apenas os dois mandantes foram julgados em 29.05.2003, quase 18 anos após o crime; no caso do assassinato do advogado Paulo Fonteles de Lima ocorrido em 11.06.1987, nenhum mandante foi julgado; no do advogado e deputado estadual João Carlos Batista, assassinado em 06.12.1988 em Belém, apenas o executor foi julgado em 15.05.2001, quase 13 anos após o crime; o assassinato do sindicalista Arnaldo Delcídio ocorrido em 01.05.1993, também em Eldorado, teve a prescrição declarada em 28.04.2017; no caso de Onalício Araújo Barros (Fusquinha) e Valentim Serra (Doutor), lideranças do MST, assassinados em 26/03/1998 em Parauapebas, sudeste do Estado, após 24 anos nenhum responsável foi julgado ainda.
No caso do assassinato de José Dutra da Costa (“Dezinho”), líder sindical e presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rondon do Pará, ocorrido em 21.11.2000, um dos réus condenados por sentença definitiva não retornou à prisão após visita à família e nenhum esforço foi feito para capturá-lo, ao passo que os mandados de prisão expedidos contra outros réus não foram cumpridos. Por outro lado, a viúva do defensor e, também defensora de direitos humanos, Maria Joel Dias da Costa, que milita contra a grilagem de terra, o trabalho escravo, a violência e impunidade no campo, segue sob ameaça e escolta estatal desde então.
O Estado do Pará pode ser visto como uma síntese dos problemas vivenciados no Brasil e especialmente na Amazônia brasileira.[vi] Com forte presença de povos indígenas, comunidades quilombolas, povos e comunidades tradicionais, trabalhadores/as rurais, o Estado enfrenta grandes desafios relacionados ao desmatamento ilegal,[vii] expansão da agricultura, garimpo e mineração, e violência contra pessoas defensoras.
No sul do país, o Estado do Paraná[viii] é um outro exemplo da realidade de violência e impunidade no campo brasileiro, ao mesmo tempo em que foi palco da criação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra durante I Encontro Nacional, realizado em Cascavel em janeiro de 1984, e local (Curitiba) onde foi realizado o I Congresso do Movimento em 1985.
Os episódios de violência no estado também são muitos. Em 08.03.1993, o Sem Terra Diniz Bento da Silva (“Texeirinha”) foi sumariamente executado por policiais militares numa ação planejada e posteriormente acobertada por eles. Em 07.02.1998, o trabalhador rural Sebastião Camargo Filho foi assassinado durante um despejo ilegal em um acampamento do MST. Vinte e quatro anos depois, os envolvidos seguem impunes.[ix] Um dos réus condenados foi beneficiado pela prescrição, outro nunca começou o cumprimento da pena; um terceiro, dono de empresa de segurança privada e cujos pistoleiros atuavam em prol dos fazendeiros em despejos ilegais na região, foi condenado, mas o mandado de prisão expedido em 2016 nunca foi cumprido. Certo da impunidade, este último réu chegou a dar entrevista dizendo que não teme ser preso[x]. Além disso, o fazendeiro Marcos Prochet – que presidiu a União Democrática Ruralista (UDR) - que executou Sebastião, foi condenado três vezes pelo Tribunal do Júri, mas as três condenações foram anuladas pelo Tribunal de Justiça de Paraná. O caso segue sob análise nos tribunais brasileiros.[xi]
Em 27.11.1998, Sétimo Garibaldi foi assassinado em uma ação de pistoleiros encapuzados em ação de despejo criminosa em um acampamento do MST. Com conivência das autoridades locais, o inquérito foi arquivado e ninguém foi denunciado – apesar dos indícios e das inúmeras testemunhas. Apesar da determinação da Corte IDH, as investigações não foram retomadas.
Em 02.05.2000, cerca de 1500 Sem Terra que pretendiam chegar a Curitiba para uma Marcha pela Reforma Agrária – à semelhança da Marcha que pretendia chegar a Belém e foi obstada por ação violenta da política em Eldorado dos Carajás em 1996 - foram violentamente reprimidos pela Polícia Militar, resultando no assassinato de Antônio Tavares Pereira e em ferimentos em centenas de pessoas, incluindo crianças. A investigação na justiça militar foi arquivada e, posteriormente, utilizada como fundamento para trancar a ação penal na justiça civil. O policial militar que realizou o disparo nunca foi responsabilizado. Esse episódio é considerado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra do Paraná “um dos momentos mais emblemáticos do processo de violência e de criminalização na luta pela terra”[xii] e foi recentemente julgado pela Corte IDH, com nova condenação do Brasil.
Entre 1994 e 2002 – durante os dois mandatos do então governador Jaime Lerner - a violência dirigida aos trabalhadores rurais no Estado, em especial àqueles organizados em prol das políticas de reforma agrária, contabiliza 16 assassinatos e 134 despejos violentos, segundo levantamento do MST. Os elevados índices de violência alçaram o governador à alcunha de “arquiteto da violência”.[xiii]
Diante de um grave contexto de violência e da inércia e/ou conivência do sistema de justiça local, foi realizado, em maio de 2001, o Tribunal Internacional dos Crimes do Latifúndio e da Política Governamental de Violação de Direitos Humanos no Paraná.[xiv]
Que o Estado onde nasceu o MST, maior movimento social da América Latina, tenha sido – e siga sendo - palco de tamanha violência pode parecer paradoxal, mas não é. A esse respeito, ao apreciar o Caso Sebastião Camargo, em março de 2009, a Comissão Interamericana registrou o contexto de “alta concentração da terra e uma crescente mobilização de setores sociais que buscam melhor distribuição das propriedades agrárias” e destacou que “a pressão social pela implementação de um processo de reforma agrária provocou reações violentas por parte de setores latifundiários que, em alguns casos, contaram com a aquiescência e a conivência de funcionários locais”.[xv]
As informações reunidas acima sobre o quadro de intensa violência corroboram a afirmação feita ao início deste texto de que no Brasil a violência e a criminalização têm sido historicamente usadas para tentar silenciar e impedir a luta por direitos no contexto agrário.
É importante dizer que não se trata de uma realidade superada, característica dos anos 90 e começo dos anos 2000, de quando datam os casos que, nos anos recentes, têm sido julgados na esfera internacional. Trata-se de uma realidade persistente e, portanto, atual.
No Paraná, a título de exemplo, tem-se o caso da Operação Castra, deflagrada em conjunto pela Polícia Civil e o Ministério Público, em que a Lei de Organizações Criminosas (Lei 12.850/13) foi usada para criminalizar dezoito militantes do MST e, também, serviu de pretexto para a invasão da sede da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), disparando armas de fogo com armamento letal e proferindo ameaças de todas as ordens.[xvi]
O Pará, por sua vez, segue liderando o ranking de violência no campo, segundo dados de 2017[xvii] e 2019.[xviii] Nos anos de 2021 e 2020, foi o estado brasileiro com o maior número de conflitos no campo, com 164 e 252 casos, respectivamente. Em 2022,[xix] foi o segundo estado com maior número de conflitos no campo, com 175 casos, ficando atrás apenas da Bahia, com 179 casos.
De acordo com a pesquisa “Na linha de frente: violência contra defensores e defensoras de direitos humanos no Brasil: 2019-2022”, elaborada por Terra de Direitos e Justiça Global, o Pará registrou o maior número de violações contra pessoas defensoras durante o período de 2019 a 2022, com um total de 143 episódios[xx], sendo 19 assassinatos.
Impunidade: uma das engrenagens da violência no campo
Há muito a impunidade em relação a violações de direitos humanos no Brasil – e especialmente em relação a crimes cometidos por agentes do estado, com destaque para polícia militar – tem sido observada por órgãos e tribunais internacionais. No que diz respeito ao campo, as análises produzidas ao longo dos anos têm associado a elevada concentração fundiária e a falta de acesso a direitos com a repressão, por parte de agentes estatais e privados, contra as pessoas e coletivos que se organizam para tentar alterar essa realidade.
Na visita realizada ao Brasil em 1995, a Comissão Interamericana dedicou grande atenção ao tema dos direitos humanos dos trabalhadores rurais. O relatório produzido após a visita já registrava uma realidade de impunidade crônica e inação judicial em relação aos crimes cometidos contra trabalhadores rurais em luta pela reforma agrária.
O documento aponta que “muitos agricultores e suas famílias sofrem com um acesso precário à terra, com problemas de saúde, trabalho e educação e com confrontos com proprietários e agentes estatais”. Após visita ao sul do Pará, a Comissão afirmou ter podido comprovar, a partir de declaração diretas de familiares, líderes sindicais obreiros, promotores de justiça, magistrados, autoridades municipais, civis e religiosas, a existência de “uma situação geral de atemorização da população e das autoridades, assim como de impotência diante da impunidade”, a qual estaria relacionada à “inação, negligencia e incapacidade dos sistemas policial e judicial, e às óbvias conexões entre os deliquentes e as autoridades de diferentes poderes”. [xxi]
Em 2009, um pouco mais de uma década depois, tanto a Comissão quanto a Corte se manifestaram sobre o tema a partir de casos ocorridos no Paraná. A CIDH chamou atenção para o fato de que “a violência relacionada a demandas por terra e reforma agrária no Brasil é sistemática e generalizada”, sendo especialmente intensa “contra os líderes dos movimentos e os defensores dos direitos humanos dos trabalhadores e serve para causar temor generalizado e, assim, desanimar os demais defensores de direitos humanos e atemorizar e silenciar as denúncias e reivindicações”. Apontou que “em diferentes estados, há profundas conexões entre poderosos proprietários latifundiários e autoridades locais’ e que “esses atores são, por vezes, mandantes de assassinatos e financiadores de desocupações forçadas”. E registrou “a estreita relação entre os mandantes dos crimes e as estruturas locais de poder tem garantido a impunidade na quase totalidade dos casos de violência rural no Brasil”.[xxii]
Ao julgar o Caso Sétimo Garibaldi Vs. Brasil, a Corte Interamericana reiterou a obrigação do Estado de “combater essa situação de impunidade por todos os meios disponíveis, já que esta propicia a repetição crônica das violações de direitos humanos e a total indefensibilidade das vítimas e de seus familiares, que têm direito a conhecer a verdade dos fatos”. Segundo o Tribunal, uma das formas mais relevantes para combater a situação de impunidade “é investigar a atuação dos agentes estatais envolvidos nas violações [...] sejam policiais, membros do Ministério Público, juízes e servidores em geral”.[xxiii]
Em 2021, a Comissão publicou o Relatório sobre a Situação de Direitos Humanos no Brasil, fruto da visita realizada ao país em 2018. Nessa nova análise, realizada dentro de um novo intervalo de aproximadamente uma década, a CIDH foi incisiva e apontou no capítulo “Impunidade e denegação de justiça” uma realidade ainda mais grave: altos índices de mortes provocadas por agentes do Estado e altos índices de impunidades em relação a esses crimes; um padrão de impunidade em relação à violência de estado nos centros urbanos e índices ainda maiores em relação ao campo.
Segundo a doutrina e jurisprudência dos órgãos do Sistema Interamericano, “a impunidade propicia a repetição crônica das violações de direitos humanos e a total vulnerabilidade das vítimas e seus familiares”[xxiv] e produz uma “ação amedrontadora nas pessoas, que passam a não denunciar os crimes sofridos e a continuar experimentando ciclos de violência e manutenção de organizações criminosas”.[xxv]
Outras engrenagens da violência e da impunidade têm sido objeto de pronunciamentos por parte de diferentes órgãos e tribunais internacionais em relação ao Brasil. A metáfora da engrenagem é pertinente pois são elementos que se comunicam e operam conjuntamente.
O uso excessivo da força pelas forças de segurança brasileiras é um padrão amplamente conhecido. De fato, a violência e letalidade policial são os temas em razão dos quais o Brasil, seguramente, foi mais interpelado na esfera internacional. Quanto à justiça militar no país, há inúmeros pronunciamentos de diferentes organismos ressaltando a incompatibilidade do seu funcionamento com parâmetros internacionais de direitos humanos.
Para ambos, os caminhos para superar esse quadro de violação de direitos já foram objeto de reiterados pronunciamentos internacionais, dentre eles a última sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos contra o Brasil envolvendo violência no campo.
No Caso Tavares Pereira e outros, sobre a ação da polícia, a Corte IDH estabeleceu que “em nenhum caso as medidas adotadas poderão se basear em paradigmas de uso da força que considerem a população como inimiga” (par. 100) e que “as armas de fogo não são um instrumento adequado para controlar reuniões” (par. 102). Sobre a justiça militar, rememorou o entendimento há muito consolidado segundo o qual “o elemento essencial de uma investigação penal sobre uma morte decorrente da intervenção da polícia é a garantia de que o órgão investigador seja independente dos funcionários envolvidos no incidente” (par. 145).
Desse modo, determinou ao Estado brasileiro adequar seu ordenamento jurídico sobre competência da justiça militar à jurisprudência da Corte IDH, de tal modo que essa justiça não tenha competência para conhecer, julgar, tampouco investigar, qualquer delito cometido contra civis. Segundo a sentença, a investigação de crimes supostamente cometidos por policiais deve ser delegada a um “órgão independente e diferente da força policial envolvida no incidente, tais como uma autoridade judicial ou o Ministério Público, assistido por pessoal policial, técnico criminalístico e administrativo alheio ao órgão de segurança a que pertença o possível acusado ou acusados”. (par. 209)
Estratégias de luta por justiça
As análises produzidas na esfera internacional, a partir de visitas in loco e, sobretudo, da análise de casos concretos, têm contribuído, de modo determinante, para produzir um contraponto à versão oficial de estrito cumprimento do dever legal, legítima defesa e/ou ocorrência de conflito, “homicídio resultante de oposição à intervenção policial” (nova roupagem para o que ficou conhecido por “autos de resistência”), tradicionalmente utilizadas pelo Estado brasileiro em suas defesas. Foram necessárias várias décadas para construir essa outra narrativa, hoje consolidada e fundamentada, a respeito da violência no campo brasileiro.
A tramitação desses casos tem desvelado a inação do sistema de segurança e justiça em relação a crimes cometidos contra pessoas defensoras de direitos humanos e, em muitos casos, a cumplicidade dessas instituições. Essa inação tem operado, conforme detalhado acima, como uma das engrenagens da impunidade e esta, por sua vez, como um dos elementos causadores (e perpetuadores) da violência no campo.
É importante ter em mente que a denúncia de casos de violência no campo na esfera internacional – e especificamente perante o Sistema Interamericano de Direitos Humanos - integra uma estratégia social e popular de luta por justiça. Esses casos somente se mantiveram ativos durante tantas décadas, apesar da negligência ou ativa inoperância das instituições nacionais, em razão da mobilização do movimento camponês - e, nos casos citados no presente texto, do Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra e de sua ampla gama de apoiadores e amigos - e de organizações de direitos humanos.
Como contraponto às engrenagens da violência e da impunidade, além do acionamento de tribunais internacionais, outros mecanismos vêm sendo historicamente utilizados nas estratégias de luta por justiça. É o caso do Incidente de Deslocamento de Competência, instituído pela Emenda Constitucional nº 45/2004 (“Reforma do Judiciário”), uma conquista dos movimentos e organizações de direitos humanos que historicamente denunciam a impunidade como fruto da influência indevida de setores econômicos nas instituições de justiça locais, e é reivindicado como tal pelos movimentos sociais e organizações de direitos humanos.
Outro exemplo são os esforços a fim de garantir a participação formal das vítimas e de seus familiares na fase de investigação dos crimes. A maioria dos casos envolvendo assassinatos de defensores sequer chegam na fase judicial. E a observação empírica coincide com a análise da CIDH, segundo a qual “o principal obstáculo para a superação da impunidade está na fase investigativa”.[xxvi] Nesse contexto, garantir, formalmente, a participação, das vítimas, de seus familiares e de entidades de direitos humanos nas investigações pode contribuir para o enfrentamento da impunidade, pois - como maiores interessados na solução dos casos e conhecedores das realidades político sociais dos conflitos que ensejam as violências – esses sujeitos constituem um elo de continuidade em processos que costumam durar muitos anos, promovem o monitoramento do trabalho das instituições de justiça e trazem contribuições relevantes para a elucidação dos casos. É o entendimento consolidado pela Corte Interamericana no Caso Favela Nova Brasília Vs. Brasil.
O Programa de Proteção para Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas (PPDDH), criado no ano de 2004, é outro exemplo do resultado das mobilizações da sociedade civil.[xxvii] Desde sua criação, o Programa sofreu diversas descontinuidades[xxviii] e, ao longo de duas décadas, foi regido por meio de Decretos, sem uma lei que o instituísse como política pública, além de outras dificuldades que ameaçaram sua existência.[xxix] Apesar disso, com a instituição do Grupo de Trabalho Técnico Sales Pimenta – decorrente de condenação judicial – responsável pela elaboração de um Plano Nacional de proteção para pessoas defensoras e de um anteprojeto de Lei, há genuínas expectativas de institucionalização e fortalecimento da política pública de proteção, além do enfrentamento à estigmatização e criminalização dos movimentos sociais, das pessoas defensoras.
A realidade, no entanto, ainda é inegável: o estado brasileiro tem se mostrado historicamente incapaz de proteger a vida das pessoas que lutam por direitos.
5. Considerações finais
O combate à impunidade dos crimes contra pessoas defensoras é um desafio central para garantir a sua proteção e aproximar o Brasil do paradigma da responsabilização, reparação e prevenção. Em paralelo a isso, a criação de um ambiente seguro para reivindicar direitos no campo brasileiro passa irremediavelmente pela garantia de proteção territorial, vez que aproximadamente, 80% dos casos de violência contra pessoas defensores ocorrem no contexto de luta por terra, território e meio ambiente.[xxx]
Em síntese, o enfrentamento à violência no campo exige o enfrentamento das causas estruturais dessa violência e a garantia do direito à terra e aos territórios, fundamental para assegurar o acesso a uma série de outros direitos, como alimentação saudável, água, saneamento, moradia, educação, saúde.
Para os povos indígenas, demarcação de suas terras; para as comunidades quilombolas, titulação de seus territórios, para os demais povos, regularização fundiárias. Em relação aos Sem Terra, a melhor garantia de não repetição desses crimes e a melhor forma de reparação para as vítimas do latifúndio é a realização da Reforma Agrária.
* Darci Frigo - coordenador da Terra de Direitos
**Camila Gomes - coordenadora de incidência internacional de Terra de Direitos (2022-2024)
REFERÊNCIAS
[i] São elas: Corte IDH. Caso Escher e outros Vs. Brasil. Sentença de 6 de julho de 2009, Caso Gabribaldi Vs. Brasil. Sentença de 23 de setembro de 2009, Caso Sales Pimenta Vs. Brasil. Sentença de 30 de julho de 2020 e Caso Tavares Pereira e outros Vs. Brasil. Sentença de 16 de novembro de 2023.
[ii] Registra-se os agradecimentos às assessoras jurídicas da Terra de Direitos Luciana Furquim Pivato e Alane Luzia da Silva, que contribuíram para construção da declaração testemunhal.
[iii] O objeto do depoimento foi estabelecido na Resolução do Presidente da Corte de 17 de fevereiro de 2022, nos seguintes termos: “i) o alegado contexto de intimidação, criminalização, ameaças e violência contra as pessoas defensoras de direitos humanos no momento dos fatos e na atualidade; ii) a suposta impunidade persistente no Brasil relativamente a fatos como os do presente caso; iii) o quadro jurídico e político da proteção a personas defensoras de direitos humanos no Brasil, particularmente, quanto à Política Nacional de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos e o Programa de Proteção de Defensores de Direitos Humanos; e iv) as políticas públicas para a prevenção à violência e proteção das pessoas defensoras”. Disponível aqui: https://www.corteidh.or.cr/docs/assuntos/sales_pimenta_17_02_22_por.pdf.
[iv] AGÊNCIA BRASIL. Pará concentra 38% dos assassinatos por conflito de terra no país.
Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2015-02/para-concentra-38-dos-assassinatos-por-conflito-de-terra-no-pais>. Acesso em: 08 Mar. 2022.
[v] Relatório nº 21/03. Admissibilidade. Petição 11.820. Eldorado dos Carajás. Brasil. 20 de fevereiro de 2003. MST. Massacre de Eldorado do Carajás? 28 anos de impunidade. Disponível em: https://mst.org.br/2024/04/08/massacre-de-eldorado-do-carajas-28-anos-de-impunidade/
[vi] “Pará é síntese de desafios e problemas da Amazônia”. Disponível:
[vii] Relatório Anual de Desmatamento 2021 - São Paulo, Brasil. MapBiomas, 2022. Disponível em:
[viii] Mais informações: Manifestações das Representantes das vítimas no Caso Tavares Pereira e Outros versus Brasil; Petição de Amicus Curiae apresentado pelos Centro de Pesquisa e Extensão em Direitos Socioambiental-CEPEDIS da Pontifícia Universidade Católica do Paraná e pela Clínica de Direitos Humanos e Direitos Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas durante a tramitação do Caso Tavares Pereira e outros Vs. Brasil.
[ix] CIDH. Relatório Nº 25/09. Admissibilidade e Mérito. Caso 12.310. Sebastião Camargo Filho. Brasil. 19 de março de 2009. Disponível em: https://cidh.oas.org/annualrep/2009port/Brasil12310port.htm
[x] Conforme matéria jornalística que segue: https://reporterbrasil.org.br/2019/04/ex-pistoleiro-milicia-organizacao-nabhan-garcia-bolsonaro/.
[xi] STJ. Processo nº 0028357-13.2012.8.16.0013.
[xii] https://www.terrasemmales.com.br/20-anos-do-assassinato-do-sem-terra-antonio-tavares-no-parana/
[xiii] Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra do Paraná. Documentário “O Arquiteto da violência”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=XofIbnnRASo
[xiv] Anais do Tribunal Internacional dos Crimes do Latifúndio e da Política Governamental de Violação dos Direitos Humanos no Parána. Curitiba, 1º e 2º de maio de 2001.
[xv] CIDH. Relatório Nº 25/09. Admissibilidade e Mérito. Caso 12.310. Sebastião Camargo Filho. Brasil. 19 de março de 2009. Disponível em: https://cidh.oas.org/annualrep/2009port/Brasil12310port.htm
[xvi] Disponível em:
[xvii] Disponível em:
[xviii] Disponível em:
[xix] Conflitos no campo Brasil 2022 / Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno. – Goiânia: CPT Nacional, 2023. Disponível em:
[xx] Dentre os diferentes tipos de violência identificados: agressão física, ameaça, assassinato, ataque, criminalização, deslegitimação, assédio sexual, suicídio.
[xxi] CIDH. Relatório sobre a Situação do Direitos Humanos no Brasil. OEA/Ser.L/V/II.97. 29 de setembro de 1997. Capítulo VII - A propriedade da terra rural e os direitos humanos dos trabalhadores rurais. Dentro deste capítulo há um tópico dedicado à “Luta pela Reforma Agrária e suas vítimas”.
[xxiii] Corte IDH. Caso Sétimo Garibaldi Vs. Brasil. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 23 de setembro de 2009. Seria C. Nº 203. Parágrafos 167 e 168.
[xxiv] Corte IDH. Caso de la Paniaga Morales e Outros (Panel Blanca) Vs. Guatemala. Sentença de 8 de março de 1998, Série C. Nº 37, par. 173.
[xxv] CIDH. Situación de los derechos humanos en México. OEA/Ser.L//V/II. Doc 44/15, 31 de dezembro de 2015. Par. 412.
[xxvi] CIDH. Observações preliminares da visita in loco da CIDH ao Brasil. Disponível em: https://www.oas.org/es/cidh/prensa/comunicados/2018/238OPport.pdf
[xxvii] COMITÊ BRASILEIRO DE DEFENSORAS E DEFENSORES DE DIREITOS HUMANOS. Vidas em luta: criminalização e violência contra defensoras e defensores de direitos humanos no Brasil em 2017. Disponível em: <https://terradedireitos.org.br/uploads/arquivos/CBDDDH---DOSSIE-2017_011118_web.pdf>. Acesso em 08 Mar. 2022.
[xxviii] Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos. Dossiê Vidas em Luta. 2018-2020/1. Disponível em: <https://terradedireitos.org.br/uploads/arquivos/Dossie-Vidas-em-Luta.pdf>.
[xxix] O começo do fim?: <https://terradedireitos.org.br/acervo/publicacoes/livros/42/comeco-do-fim-o-pior-momento-do-programa-de-protecao-aos-defensores-de-direitos-humanos/23691>.
[xxx] Terra de Direitos e Justiça Global. “Na linha de frente: violência contra defensores de direitos humanos no Brasil. 2019 a 2022”.
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Casos Emblemáticos: Antonio Tavares
Eixos: Política e cultura dos direitos humanos
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