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Da tragédia de Bhopal ao Brasil atual: as escolhas sobre agrotóxicos que intensificam o envenenamento do país


O Dia Mundial de Luta contra os Agrotóxicos é lembrado em 3 de dezembro em referência ao desastre de Bhopal, ocorrido em 1984, quando a explosão de uma fábrica de agrotóxicos matou milhares de pessoas na Índia. A tragédia revelou ao mundo a gravidade dos riscos associados a essas substâncias e transformou a data em um símbolo global de alerta e mobilização. Hoje, mais de 40 anos depois, ainda é urgente recordar os motivos da sua “celebração”, especialmente o Brasil – o país que mais utiliza agrotóxicos no mundo. 

Comercializado como a solução para a proteção e a alta produtividade agrícola, o intenso uso de agrotóxico no país é na realidade responsável pela intoxicação de pessoas, pela perda de biodiversidade e pelo desequilíbrio ambiental. Segundo relatório divulgado pela Comissão Pastoral da Terra foram registradas 276 contaminações por agrotóxicos no ano de 2024, um aumento de 763% em relação ao ano anterior. E as consequências à saúde humana vão de problemas respiratórios permanentes até a morte. 

Casos como o do adolescente Kaue de Jesus Nery dos Santos, de 15 anos, que morreu em maio deste ano após manusear agrotóxicos em um bananal no município de Jacupiranga (SP), são o resultado de uma política nacional que incentiva o uso de substâncias químicas.

Além das implicações diretas à saúde, a utilização crescente de agrotóxicos tem prejudicado a biodiversidade, como a redução na disponibilidade e qualidade da água, dos alimentos e o comprometimento da qualidade do ar. Um exemplo é a morte massiva de abelhas causada pela aplicação de substâncias como o fipronil, que pode levar à dizimação de milhares de colmeias. Foi o que aconteceu em 2023, quando a aplicação indevida desse agrotóxico resultou na morte de mais de 100 milhões de abelhas no estado de Mato Grosso.

Uma isenção fiscal que estimula o uso

Um dos fatores que resulta no fato do Brasil ocupar o 1º lugar no ranking está vinculado à arrecadação bilionária das empresas de agrotóxicos, lucro este diretamente relacionado à isenção tributária concedida desde 1997 pelo Estado brasileiro ao mercado de agrotóxicos.

A isenção fiscal de agrotóxicos no Brasil consiste em uma série de benefícios tributários que reduzem a carga fiscal sobre esses produtos. Os principais argumentos do agronegócio para que o agrotóxico não pague imposto é de que a aplicação de veneno é necessária no país por ser de clima tropical, propenso a pragas e doenças. Mas na verdade este cenário se apresenta pela escolha do modelo agrícola de monocultura em larga escala, que cria ambientes desequilibrados e vulneráveis a pragas, e não necessariamente ao clima. 

O agronegócio também sustenta que a isenção fiscal de agrotóxicos é essencial para baratear os alimentos. Contudo, estudos indicam que a tributação dos agrotóxicos teria impacto máximo de 0,2% no preço final do alimento, O impacto de eventual fim da isenção, então, incidiria majoritariamente sobre grandes exportadores, e não no consumidor como alega o agronegócio. Como menos de 2% das propriedades rurais concentram mais de 60% do consumo de agrotóxicos e essas propriedades produzem, em grande parte, commodities para exportação (como soja, trigo e algodão), fica claro que os subsídios beneficiam sobretudo grandes produtores, sem tradução direta em vantagem para o abastecimento interno.

E a conta final da isenção fiscal de agrotóxicos é alta. Segundo a Declaração de Incentivos, Renúncias, Benefícios e Imunidades de Natureza Tributária (Dirbi) divulgado pela Receita Federal, em 2024, a renúncia fiscal gerada por esses benefícios é estimada em R$22,4 bilhões. Este montante é superior a 12 vezes o orçamento da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e 7 vezes o orçamento do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) em 2024. Essa política fiscal é classificada como uma política extrafiscal inversa, que incentiva o uso de produtos tóxicos, fragilizando a proteção de direitos fundamentais, como saúde e meio ambiente.

Uma luta na justiça 

Como contraponto às políticas e normativas de isenção fiscal aos agrotóxicos,o Partido Socialismo e Liberdade (Psol) ajuizou, em 2016, no Supremo Tribunal Federal (STF) a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5553, que questiona as cláusulas 1ª e 3ª do Convênio nº 100/97 do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) e o Decreto 7.660/2011. Esses dispositivos concedem benefícios fiscais aos agrotóxicos, com redução de 60% da base de cálculo do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS), além da isenção do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) de determinados tipos de agrotóxicos. No ano passado o Partido Verde ajuizou a ADI  7755, que questiona a Emenda Constitucional 132/2023, que também confere isenção de impostos aos agrotóxicos.

Com julgamento em andamento no STF, o panorama não é nada favorável ao meio ambiente e à vida, mesmo com diversas manifestações e pareceres contrários à isenção por organizações, entidades da saúde, pesquisadores e mesmo a ONU. 

Na análise das duas ações há três posições entre os ministros do Supremo. O ministro Edson Fachin e a ministra Cármen Lúcia votaram pelo reconhecimento da inconstitucionalidade das isenções fiscais dos agrotóxicos, por entenderem que a não tributação viola direitos à saúde e ao meio ambiente equilibrado. Já o ministro Gilmar Mendes, Cristiano Zanin reconheceu a isenção como constitucional e teve voto acompanhado pelos ministros Luiz Fux e Dias Toffoli. 

Como terceira via, o ministro André Mendonça, acompanhado por Flávio Dino, apresentou uma posição intermediária, reconhecendo a constitucionalidade das isenções, mas propondo que elas sejam revistas segundo o grau de toxicidade dos insumos, com prazos para reavaliação técnica pelos órgãos competentes. Atualmente as ações aguardam os votos dos ministros Alexandre de Moraes, Nunes Marques e Gilmar Mendes. 

Para entender como as ações em curso no STF mexem com a sociedade, o julgamento conta com 27 entidades atuando como amicus curiae (amigos da corte), com fornecimento de dados para subsidiar a avaliação pelos ministros. Das 27 organizações, 13 são vinculadas ao agronegócio e 14 são de organizações de direitos humanos, de defesa da saúde, entre outros. A Terra de Direitos figura como amicus na ação.

A expectativa das organizações sociais é de que o Supremo Tribunal Federal reconheça a procedência das ações ou, no mínimo, acompanhe a proposta que condiciona as isenções ao critério de toxicidade, o que permitiria avançar no controle do uso de substâncias perigosas e estabelecer prazos e critérios técnicos para reavaliação das políticas fiscais.

Outro fator limitante à redução do uso de agrotóxicos, em especial nos países da América Latina, é a fragilidade dos mecanismos que responsabilizam empresas transnacionais. No Brasil, as duas principais fornecedoras de agrotóxicos – Bayer e Syngenta – são corporações estrangeiras, o que adiciona obstáculos significativos para responsabilizar os danos que causam ao país. Quando comunidades ou organizações apresentam denúncias, costuma-se exigir um nível elevado de provas, algo difícil de obter diante das desigualdades de acesso à informação e à perícia técnica, sobretudo para comunidades camponesas, povos indígenas, quilombolas e tradicionais. Por isso, torna-se necessário fortalecer os mecanismos multilaterais e avançar em marcos legais nacionais que imponham obrigações vinculantes às empresas (por exemplo, iniciativas como o PL 572/2022), de modo a garantir deveres claros de responsabilização de empresas e reparação às vítimas.

Um só caminho: a redução do uso de veneno

Diante das limitações estruturais fiscais, jurídicas e de responsabilização das transnacionais dos agrotóxicos, torna-se ainda mais evidente a necessidade de políticas públicas que enfrentem a dependência química da agricultura brasileira. 

É nesse contexto que a implementação do Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos (Pronara), em julho de 2025, representa uma vitória histórica das organizações, movimentos e da sociedade, pois marca o reconhecimento do Estado de que é necessário – e possível – reduzir o uso de agrotóxicos no país. Contudo, a efetivação do Pronara enfrenta grandes dificuldades e opera em um quadro trágico de uso de agrotóxicos. E há ainda que se considerar a tentativa, agora em novembro, de suspensão  do Pronara por meio do Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 443/2025, mais um ataque do agronegócio.

Além disso, o principal obstáculo institucional à implementação efetiva do Pronara é a nova Lei de Agrotóxicos (Lei nº 14.785/2023), conhecida como “Pacote do Veneno”. A lei, um verdadeiro retrocesso, fragiliza a regulação, substituindo proibições claras de substâncias cancerígenas, mutagênicas ou teratogênicas por uma “análise de risco” subjetiva, que pondera efeitos na saúde e no meio ambiente com “fatores econômicos, sociais e regulatórios”. Além disso, a Lei nº 14.785/2023 centraliza o poder decisório no Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), relegando a Anvisa  e ao Ibama um papel consultivo na avaliação e aprovação de agrotóxicos. 

O Pacote do Veneno também é alvo da Ação Direta de Inconstitucionalidade 7701, protocolada em 2024 por partidos e confederações sindicais que busca suspender diversos artigos da Lei por violação a direitos constitucionais como o direito à saúde, à vida digna e a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, e por violar o princípio da vedação ao retrocesso socioambiental.

Diante das fragilidades regulatórias e do papel insuficiente desempenhado pelo Estado brasileiro na política de redução de agrotóxicos, o país tem se consolidado como uma verdadeira lixeira química. Em 2024 o Brasil bateu novo recorde histórico aprovando 663 novos produtos. Inclusive, um dia após o início da COP-30, em Belém (PA), foram autorizados 30 novos agrotóxicos pelo Ministério  da Agricultura e Pecuária (Mapa), nem 29, nem 31. Dezesseis produtos são classificados em relação ao potencial de periculosidade ambiental como Produto Muito Perigoso ao Meio Ambiente (Classe II), já os demais são considerados Produtos Perigosos ao Meio Ambiente (Classe III). Alguns, inclusive, são proibidos na União Europeia, que adota limites de resíduos extremamente rígidos.

A necessidade de continuidade de mobilização da sociedade contra todos esses retrocessos é crucial. O Pronara, apesar de suas fragilidades orçamentárias e de implementação imediata, serve como um instrumento legitimador e ancorador dessas lutas, criando margens de ação para o debate público e a conscientização, essenciais para enfrentar o lobby do agronegócio e garantir que os direitos à saúde e ao meio ambiente prevaleçam, permitindo que, por meio da articulação e da mobilização social, possamos avançar rumo a um futuro em que não haja mais motivos para relembrar o dia 3 de dezembro.

 

*Jaqueline Pereira de Andrade é assessora jurídica da Terra de Direitos e integrante da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e Pela Vida

**Elma de Oliveira Araújo é estudante de direito da UnB e estagiária da Terra de Direitos 



Eixos: Biodiversidade e soberania alimentar
Tags: agrotóxicos,isenção fiscal,Brasil,intoxicação