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Moradia Popular em Áreas Centrais: um caminho viável para efetivar o Direito à Cidade


O Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU) divulga mais um artigo visando contribuir com o debate em torno de uma nova agenda para as cidades. Este debate é fundamental tendo em vista as eleições presidenciais, para os governos dos estados e para o Distrito Federal, e também a necessidade de construção de uma nova plataforma articuladora das forças democráticas e progressistas, frente aos retrocessos políticos e sociais que o país vem atravessando, com o crescente avanço das ideias neoliberais. Neste artigo, assinado por Socorro Leite, o tema é moradia popular em áreas centrais.

Foto Marcelo Camargo/Agência Brasil

 

Moradia Popular em Áreas Centrais: um caminho viável para efetivar o Direito à Cidade

Socorro Leite (Habitat para a Humanidade Brasil)

No centro da concepção da cidade como um bem comum está a necessidade de superar a predominância dos interesses privados sobre os interesses públicos, da lógica individual sobre a lógica coletiva de pensar e viver a cidade e a de repactuar a cidade de forma a resguardar bens comuns e priorizar as necessidades da maior parte da população. Sob essa ótica, o descumprimento da função social da propriedade, especialmente em áreas centrais, representa a negação do direito à cidade, na medida em que materializa as desigualdades na ocupação do território, despreza o investimento público em infraestrutura realizado nessas áreas, contribui com a apropriação privada da valorização do solo e em muitos casos degrada o patrimônio histórico.

Por outro lado, não é possível continuar pensando que a promoção de moradia popular apenas com a produção de novas moradias em terrenos vazios, localizados especialmente nas periferias, resolverá o déficit de moradias no Brasil. Tal modelo vem alimentando um déficit de infraestrutura, equipamentos e serviços públicos difícil de administrar, além de contribuir com a periferização dos mais pobres. Desse modo, promover moradia popular em áreas centrais se constitui como um contraponto necessário não só no combate ao déficit habitacional, mas também na promoção do direito à cidade ao fomentar a recuperação e preservação do patrimônio histórico, melhorar a mobilidade e apoiar a inclusão produtiva dos mais pobres, ao priorizar como lugar de moradia os espaços onde estão muitas das oportunidades de geração de renda.

Alguns dos importantes entraves para que a moradia popular se torne uma realidade nas áreas centrais tem relação com a falta de ações concretas por parte dos governos municipais. Os importantes avanços legais que apoiariam tais ações, a exemplo do Estatuto da Cidade e dos próprios Planos Diretores, têm sido neutralizados pela omissão ou pouca disposição no enfrentamento dos proprietários de imóveis, que em muitos casos, nem o IPTU pagam, prejudicando a arrecadação municipal que deveria se reverter em melhorias coletivas. Por tais motivos, é importante avançar na utilização de instrumento mais ágeis e que assegurem a adequada destinação dos imóveis desocupados e ociosos nos centros.

Sem desconsiderar os desafios que precisam ser enfrentados para a promoção mais massiva de moradia popular no centro, é preciso apontar para a construção de soluções que passam pelo redirecionamento das capacidades técnicas e políticas construídas ao longo dos anos por setores progressistas da nossa sociedade, incluindo aprender com a experiência de outros países onde haja uma maior desburocratização na aplicação de instrumentos que penalizem os proprietários pelo descumprimento da função social. Ao definir como prioridade a promoção de moradia popular nesses imóveis que não cumprem sua função social, não se pode ser tão benevolentes, com tantos prazos e oportunidades para que os proprietários cumpram suas obrigações. É importante lembrar que muitos dos centros das metrópoles brasileiras têm sido objeto de disputa, com projetos de requalificação de corte elitista, o que tende a excluir a pauta da moradia popular e outros usos sociais desses territórios.

A disponibilização de imóveis públicos com potencial para a produção de habitação de interesse social também deve fazer parte da equação para viabilizar moradia popular em regiões centrais. A luta dos movimentos de moradia para que imóveis públicos, especialmente da União, sejam destinados a projetos habitacionais, não conseguiu atingir a boa parte desses imóveis. Na conjuntura atual o que se vê é um patrimônio público ameaçado de privatização, a partir de medidas recentes do governo federal que desconsideram a demanda por moradia popular nos centros e em outras partes das cidades.

Também é necessário avançar no debate sobre formas de destinação dos imóveis com políticas que assegurem a moradia popular a partir de alternativas como aluguel social e modelos que incluam a propriedade e a gestão coletiva dos imóveis. Por se tratarem de áreas altamente valorizadas ou com perspectiva de valorização, é importante compreender e construir mecanismos que assegurem a não apropriação de tais imóveis por parcelas da população de mais alta renda. Com isso há de se reforçar uma necessária desconstrução do modelo predominante de acesso à moradia baseado na propriedade privada individual, compreendendo o direito à moradia não como o direito a uma propriedade. São várias as experiências e modelos que podem ser adaptados às realidades locais com equações que podem envolver os diversos setores que atuam com a promoção de moradia popular.

No que se refere à conversão dos espaços atualmente abandonados em moradia adequada, destaca-se a necessidade de compreender que o investimento inicial, que envolve a requalificação de prédios muitas vezes históricos, tende a superar o valor da construção de moradias novas. Contudo, as economias geradas com o melhor aproveitamento da infraestrutura da cidade, a melhoria da mobilidade e a preservação e dinamização de áreas históricas também precisam ser contabilizadas.

Ainda no tema dos custos, é necessária a definição de soluções mais adequadas ao perfil de renda que deve ser priorizado, assegurando a sustentabilidade dos imóveis, a partir da previsão de usos complementares como equipamentos sociais públicos e lugares de comércio e serviços que possam ter parte da sua renda destinada à manutenção desses imóveis. Do mesmo modo, Arquitetura e Engenharia precisam estar à serviço da construção de soluções para adequação desses imóveis, que muitas vezes não foram projetados para fins habitacionais e precisam atender a normas atuais de segurança, acessibilidade e conforto. Nesse exercício é importante assegurar a possibilidade de flexibilização e redefinição de normas, sob pena de não se viabilizar a utilização nem para moradia, nem para outros usos.

Do mesmo modo, é imprescindível repensar a forma predominante de acesso à moradia que reduz o atendimento a esse direito ao mero recebimento de casa, de forma muitas vezes clientelista, quando na verdade deveria ser parte de um processo emancipatório e de construção de corresponsabilidade a partir de processos como a autogestão. Movimentos e entidades com larga trajetória na organização de famílias que demandam por moradia devem ser envolvidos na concepção e viabilização de soluções que gerem uma maior apropriação e comprometimento pelas famílias, apoiando a sustentabilidade de tais soluções.

Investir em processos mais integrais de promoção de moradia, considerando e potencializando a organização dos diversos públicos que demandam por moradia em áreas centrais como as pessoas em situação de rua, os trabalhadores e trabalhadoras do centro, os moradores e moradoras de cortiços, entre outros, deve ser encarado como um caminho prioritário para a promoção do direito à cidade e à moradia adequada. Só será possível construir cidades mais justas, democráticas e sustentáveis em contextos de extrema desigualdade, como os das cidades brasileiras, enfrentando-se de maneira adequada os desafios de criar e manter espaços de moradia acessíveis e bem localizados para os mais pobres.



Ações: Direito à Cidade
Eixos: Terra, território e justiça espacial