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Só há um efetivo enfrentamento da crise climática com a participação de mulheres quilombolas


Assim como Tereza de Benguela, mulheres quilombolas lutam contra a invisibilização de seus territórios e o silenciamento de suas vozes.  

  Foto: Agência Brasil

Ao realizar a escuta a mulheres quilombolas sobre impactos da crise climática sobre seus territórios e modos de vida é frequente a menção ao aumento do nível do mar, frio e calor intensos, enchentes e inundações, perda de nascentes, contaminação por agrotóxicos, contaminação de sementes crioulas, entre outros.  

O modelo capitalista de exploração da natureza e do ser humano é responsável pela crise climática de impactos sentida por toda a sociedade. No entanto, o desmatamento, a degradação ambiental, a escassez da água, a perda da biodiversidade e a degradação da terra afetam, de modo desproporcional, a quem tem uma relação de intenso vínculo com o território, com a terra, com o mar e rios, como as mulheres quilombolas.  

E há ainda a ser considerado que, somado aos impactos da crise climática, as comunidades quilombolas ainda são privadas de direitos humanos essenciais, como saúde e educação e sofrem com a negação do direito territorial e de políticas de proteção diante de um mercado que avança - com violência – sob os territórios. Como áreas com menor taxa de desmatamento (4,7% contra 17% em áreas privadas. Mapbiomas/1985-2022), os territórios quilombolas – preservados pelo esforço das próprias comunidades – são os novos (e os velhos) focos de interesse do mercado.  

E as investidas seguem por vias institucionais. A aprovação do Projeto de Lei 2.159/2021 pela Câmara dos Deputados, na última semana, evidencia que a proteção aos territórios tradicionais e adoção de uma efetiva política climática não é prioridade e busca urgente, pelo menos para o Legislativo Federal. O “PL da devastação”, como ficou conhecido, fragiliza as regras para concessão do licenciamento ambiental, impactando principalmente territórios tradicionais que ficarão mais vulneráveis as investidas do agronegócio, da mineração, da exploração predatórias dos recursos naturais, potencializando ainda mais os efeitos das mudanças climáticas.   

Caso sancionado os impactos do PL da devastação serão devastadores para quilombos. Pelas regras de licenciamento ambiental aprovadas pela maioria do Congresso Nacional, apenas comunidades quilombolas com territórios delimitados devem ter a assegurada a consulta prévia, livre e informada sobre empreendimentos que afetem seus modos de vida, o que exclui mais de 90% dos territórios quilombolas no país.  

E pior, o projeto determina que apenas territórios quilombolas titulados serão considerados em procedimentos de licenciamento ambiental, ou seja, menos de 3% dos territórios, como aponta a nota técnica da Terra de Direitos e Conaq. O mesmo estado brasileiro que tem negado o direito ao território agora pune as comunidades em nem, ao menos, determinar estudos prévios de impacto ambiental aos territórios de empreendimentos como mineração e expansão do agronegócio.   

Mulheres quilombolas: resistência a crise climática 
Se por um lado o Estado tem, no mínimo, possibilitado a mercantilização da natureza, por outro, o avanço sob os territórios quilombolas encontra resistência nos povos tradicionais. Ao escutar as ações de povos e comunidades tradicionais para o enfrentamento da crise do clima é possível observar que a estratégia de enfrentamento comum a esses povos e comunidades tradicionais perpassa pelo protagonismo feminino na salvaguarda de seus territórios, na produção de alimentos agroecológicos, na guarda de sementes crioulas, no reflorestamento de espécies nativas, na proteção e recuperação de nascentes, no manejo sustentável de seus territórios.  

Foi o que aconteceu no Quilombo Três Barras, localizado no município de Doutor Ulysses, no Paraná. Cercado por monoculturas de Pinus, espécie exótica que retira todos os nutrientes do solo, inclusive a água, as lideranças femininas locais promoveram a retomada de áreas devastadas pela monocultura. Com o manejo adequado, as nascentes d’água que haviam sumido com o plantio de pinus ressurgiram. Com isso, a comunidade voltou a ser abastecida pelas nascentes.   

A ação ambiental e política dessas mulheres é também climática, de resistência, uma vez que a forma como (re)existem é repleta de saberes e fazeres harmônicos com a natureza, sustentáveis, regenerativos, ainda que não façam uso do vocabulário hegemônico.  

Elas sim, são as verdadeiras defensoras ambientais e climáticas, que se veem obrigadas a se reinventar para continuar resistindo e existindo. Mulheres quilombolas, a exemplo da líderança Tereza de Benguela, que lutam contra a invisibilização de seus territórios e contra o silenciamento de suas vozes, seja na luta pela terra, seja na luta por política climática justa. E é importante o mundo reconheça: ainda que a mercantilização da natureza tenha se intensificado nos últimos anos, a proteção da biodiversidade e dos territórios tradicionais tem sido debate e prática de mulheres quilombolas há dezenas de anos. Ignorar estas práticas e saberes é buscar a solução para a crise climática onde ela não está. 

Participação efetiva  
Contraditoriamente, na corrida para a transição de uma economia dita “justa e verde”, povos e comunidades tradicionais seguem excluídos do debate climático. Mesmo intensamente afetados e com respostas à crise do clima, os quilombos seguem à margem da construção das políticas climáticas. Esta denúncia está presente na carta aberta ao Estado brasileiro da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), publicada em março deste ano. A poucos meses do país sediar o maior encontro mundial do clima, a Conferência das Partes 30 (COP), em Belém, Estado brasileiro promove ainda o “apagamento das contribuições do povo quilombola” no debate climático, destaca o documento.     

É urgente que a política climática reconheça essas práticas e esses sujeitos. O rascunho da COP elaborado em Bonn (Alemanha), em junho de 2025, é o primeiro a mencionar a necessidade de participação de grupos vulnerabilizados na transição, mas o texto segue genérico, sem nominar quilombolas e/ou afrodescendentes, como já fazem outras convenções ambientais, como a Conferência da Biodiversidade (a COPbio).   

O reconhecimento desses grupos precisa sair do rodapé e entrar na linha de frente das negociações, com garantia de representação dos diferentes segmentos de povos e comunidades tradicionais, invisibilizados na nomenclatura genérica de “Comunidades Locais” que não os contempla.  

Mais do que participação simbólica ou convites formais, o que está em jogo é redistribuição de poder. Os povos – e em especial, as mulheres negras - que historicamente foram colocados às margens precisam estar no centro das decisões, pois seus territórios é que estão no centro da solução para crise climática. Isso significa garantir assentos na governança climática dentro e fora do Brasil, nos conselhos, fóruns, planos territoriais e instâncias da COP, com escuta real, voz ativa e capacidade de voto e veto.   

Hoje, a maior parte dos recursos climáticos financeiros disponíveis está inacessível aos povos e comunidades por conta da burocracia e da ausência de mecanismos apropriados. É preciso garantir acesso direto e desburocratizado aos fundos climáticos, com respeito às formas próprias de organização e gestão comunitária, e com metas claras de destinação de recursos. Para haver uma transição justa, é necessário enfrentar a estrutura desigual que permitiu que a crise climática se instalasse e que ainda posiciona as mulheres negras distantes dos espaços de poder.   

A mensagem dos povos e comunidades tradicionais do país Brasil é cristalina: não há justiça climática sem justiça territorial, sem garantir que povos e comunidades tradicionais tenham acesso integral e gestão autônoma de suas terras, seja por titulação, por demarcação, por regularização fundiária ou reforma agrária popular.   

E essa mensagem ecoa com força no mês em que se celebra Tereza de Benguela, com as mulheres de diferentes segmentos de povos e comunidades tradicionais levando adiante e na linha de frente a defesa da terra, da água, da floresta e da vida. São elas que denunciam o racismo ambiental, enfrentam os impactos da crise climática e constroem, com seus saberes e fazeres, os caminhos para uma transição ecológica justa e popular.  

  

*Kathleen Tie é assessora jurídica da Terra de Direitos pelo Programa Iguaçu e quilombola da Comunidade Pedro Cubas de Cima (SP), Doutoranda em Direito Socioambiental pela PUCPR.  

 *Selma Corrêa é assessora jurídica da organização de direitos humanos Terra de Direitos pelo Programa Amazônia.  

 

 



Ações: Quilombolas
Eixos: Terra, território e justiça espacial
Tags: Tereza de Benguela,COP30,clima,mulheres quilombolas