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Apartados da ancestralidade: parque estadual impede acesso de Mata do Crioulos (MG) ao cemitério da comunidade


Sem consulta prévia na instalação do parque, comunidade denuncia violação do direito de memória quilombola.

 

 

É na Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais, mais precisamente na Serra do Espinhaço que vive a comunidade quilombola apanhadora de flores sempre-viva de Mata dos Crioulos. Com cerca de 100 famílias residentes, a manutenção da ancestralidade quilombola da região está sob ataque desde a instalação do Parque Estadual do Rio Preto sobreposto ao território tradicional em 1994. Relato de liderança da comunidade destaca que após a instalação do parque as famílias que viviam nas elevações das serras passaram pela expulsão de suas casas para a reconstrução da comunidade nas partes baixas da região.  

"Foi um processo muito doloroso, me lembro que quando tinha mais ou menos 13 anos e vivíamos nas serras, um dia, policiais chegaram nas nossas casas e nos expulsaram da região nos informando que agora aquele lugar que já tinha sido morada de gerações do nosso povo – descendentes de escravos – agora se tornava um parque de proteção ambiental", relembra a quilombola Ronilda Santos sobre como foi o processo de instalação do Parque sem nenhum tipo de consulta aos quilombolas da região.  

Sob muita luta e resistência a comunidade foi se realocando ao longo dos anos pelas redondezas do Parque, principalmente por conta da principal atividade da comunidade: a coleta das flores sempre-vivas nos campos das serras.  

O cemitério  
A região da comunidade, conforme contam os moradores, originou de quatro grandes fazendas de coronéis, donos de escravos, que buscavam diamantes no rio Soberbo, e em outros da localidade, e comercializavam sua produção na região, através das tropas para os povoamentos da época. Os escravos fugidos tanto das Fazendas, bem como de toda região, buscavam sua liberdade nas matas da região. Os mais velhos da comunidade relatam as fugas de parentes próximos, que foram escravizados nessas fazendas e também dos que fugiam de outros lugares próximos para se refugiarem ali, que originou o próprio nome do lugar. 

Das quatro fazendas da região que formaram o Parque, a Fazenda do Curral é a única que ainda existe pelo que contam os comunitários. Está fazenda, assim como todo o Parque Estadual do Rio Preto são geridos pelo Instituto Estadual de Florestas – IEF, e é lá que estão enterrados os ancestrais da comunidade.  

Ronilda relata que quando era criança seu pai contava a história de grandes lideranças da luta abolicionista e que estão enterrados na local da fazenda. "Um cemitério é algo de muito respeito para uma comunidade quilombola. São pessoas que estão lá, são memórias da nossa luta. E o que nós queremos é cuidar do lugar para manter viva nossa história", explica com emoção a quilombola.  

Para a liderança é urgente a retomada do acesso pleno ao território também pela ressignificação do passado da comunidade. A Fazenda do Curral, que além de ser a única que ainda existe é uma das maiores e a que ainda exerce influência na comunidade, mantendo-se como símbolo de dominação da história escravagista.  

Registro das proximidades do cemitério na Fazenda do Curral. Foto: Acervo da comunidade

Luta jurídica e sobreposição do parque  
Estudos apontam que o caso da comunidade quilombola Mata dos Crioulos, se destaca ao observar que eles foram responsáveis pela conservação da natureza em seu território, além de ser nele que constroem suas relações sociais e modelam seu modo de vida. O trabalho, os saberes, as redes de sociabilidade, solidariedade, reciprocidade e até mesmo afetividade só fazem sentido se concebidos junto àquele recorte espacial, e hoje estão sendo pressionados pelos limites territoriais sobrepostos e imposições de Unidades de Conservação (UC) que se colocam como verdadeiros responsáveis pela proteção do ambiente. 

Segundo a assessora jurídica da Terra de Direitos, Alessandra Jacobovski, é uma realidade triste e frequente a expropriação dos territórios tradicionais. "Como o processo de regularização e garantia desses territórios é algo muito complexo e que se confronta ainda com a morosidade por parte do Estado, as comunidades se tornam alvo de invasões e ocupações por vários tipos de empreendimentos e particulares, como empreendimentos de mineração, monoculturas e no caso específico, a instalação de unidades de conservação". 
 
A advoga explica que no caso da comunidade Mata dos Crioulos foram vários os direitos violados. "Primeiramente o direito coletivo à terra e ao território tradicional. Por consequência, outros direitos ficam comprometidos: o direito à alimentação, à moradia, à água, entre outros, o que pode ser sintetizado na violação do direito à reprodução física e cultural, o que inclui a restrição da prática da panha de flores sempre vivas e de acesso ao cemitério da comunidade".   

Para a assessora jurídica o caso precisa ser acompanhado pelo Ministério Público Federal (MPF), que é o responsável por fiscalizar e proteger os direitos dos povos e comunidades tradicionais. 

"É possível pressionar para que o órgão dialogue e recomende ao Parque Estadual e Secretaria de Meio Ambiente, a liberação da área tradicional. Outra medida que pode ser tomada a médio e longo prazo seria a judicialização do caso, em vistas de garantir o território aos povos tradicionais, de forma temporária e permanente. Contudo, é preciso que exista condições estruturais e vontade política por parte do órgão", explica Alessandra Jacobovski.  

A violação do direito de memória da comunidade de Mata dos Crioulos ainda não tem data marcada para a solução. O que se sabe ao certo é que é inadmissível que as perdas culturais e de ancestralidade da comunidade sejam chefiadas pelo próprio estado brasileiro, que tem a missão de proteger e proporcionar caminhos para que povos tradicionais exerçam seus modos de vida com liberdade. 

 

 

 

 

 




Eixos: Terra, território e justiça espacial