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Covid: Ministro Marco Aurélio reconhece omissão do Estado, mas admite apenas parcialmente ação quilombola


Reivindicações por medidas de proteção aos quilombolas diante da Covid integram ação movida no STF pela Conaq

Ação foi protocolada no STF pela Conaq em setembro de 2020; julgamento ocorre após mais de cinco meses desde o pedido

O ministro e relator da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 742/2020, Marco Aurélio, reconheceu, em voto proferido nesta sexta-feira (12) no plenário virtual do Supremo Tribunal Federal (STF), a omissão do Estado brasileiro em proteger as comunidades quilombolas diante da grave pandemia que o país vive. 

Em ação protocolada pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e pelo PSB, PSOL, PCdoB, REDE e PT em setembro de 2020, a articulação reivindicou medidas emergenciais do Estado para conter a pandemia nos territórios tradicionais. Como recurso jurídico, a ADPF busca evitar ou reparar dano aos princípios constitucionais gerado por um ato ou omissão do poder público. Deste modo, a ação protocolada pela Conaq demandava uma resposta do Supremo sobre o contexto de direitos cometidos pelo Estado contra as comunidades no contexto de pandemia. 

“Há relação de causa e efeito considerados atos comissivos e omissivos do Governo Federal, atacados nesta arguição, e o quadro de transgressão às garantias fundamentais dos quilombolas”, reconheceu o ministro.

Em seu voto, Marco Aurélio estabelece o prazo 72 horas para que o governo crie um grupo de trabalho interdisciplinar que será responsável por criar, em até 30 dias, um Plano Nacional de Enfrentamento da pandemia de Covid -19 entre a população quilombola, junto com a Conaq. Além disso, dá ao governo 72 horas para incluir informações de raça e etnia entre os registros de casos da Covid-19 e para a retomada de plataformas públicas de acesso à informação, como os sites que antes traziam as informações do Programa Brasil Quilombola e o monitoramento feito pela Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) com informações sobre a população quilombola e acesso à políticas públicas. 

Coordenador executivo da Conaq, Denildo Rodrigues - conhecido como Biko - reconhece a importância do voto, mas lamenta que a decisão aconteça mais de cinco meses após o protocolo da ação. “Essa lentidão ocasionou a morte de vários quilombolas, além do aumento da crise nas comunidades e o avanço do Covid”, destaca. 

Medidas parcialmente atendidas

A advogada popular da Terra de Direitos, Maira Moreira reconhece a importância da manifestação, mas ressalta: "O voto do ministro Marco Aurélio reconheceu a omissão estatal, entretanto o relator deixou de determinar de forma ainda mais específica as medidas de urgência que deveriam estar contempladas no Plano de combate à pandemia para quilombolas”.

Marco Aurélio não estabeleceu expressamente responsabilidade ao governo em prover itens básicos de proteção, que constavam na ação. Pedidos como a distribuição de equipamentos de proteção individual (como máscaras), a distribuição de água potável, cestas básicas e materiais de higiene ficaram de fora das determinações ao Estado feitas pelo ministro. 

O relator também não determinou a inclusão imediata de quilombolas na primeira etapa de vacinação, nem garantiu a suspensão de medidas de reintegração de posse em conflitos fundiários envolvendo quilombos. Das mais de 6.000 comunidades quilombolas do país (IBGE), aproximadamente 7% têm o território titulado. Sem a segurança do título - e com uma queda de quase 90% no orçamento para a política de titulação - as comunidades enfrentam a insegurança da posse e a ausência de programas e ações dirigidas às comunidades ainda não tituladas.

Agora, a expectativa recai sobre o voto dos demais ministros, que devem se pronunciar no plenário virtual em até cinco dias úteis. Os ministros podem seguir ou divergir do voto de Marco Aurélio. O julgamento pode ser interrompido caso haja um pedido de vista do ação, ou seja, quando um ministro solicita mais tempo para análise dos autos e com isso o julgamento é temporariamente suspenso, até manifestação de voto deste ministro.

Advogada da Conaq que participou do julgamento, Vercilene Francisco Dias espera que os demais ministros ao menos acompanhem o voto do relator, mas alerta: “não basta tão somente determinar que o Executivo construa e implemente o plano de combate aos efeitos da pandemia nos quilombos, é necessário que se estabeleça meios de acompanhamento pelo Poder Judiciário pois, se isso não for estabelecido, será apenas uma decisão que o governo não vai cumprir”.

Assista a sustentação oral da advogada Vercilene Francisco Dias, pela Conaq:

 

Julgamento histórico

Além do ineditismo de uma ação proposta pela própria Conaq, o julgamento da ação também carrega outros fatos históricos: ao admitir a legitimidade da Conaq em propor a ação, o STF reconhece a Coordenação Quilombola como uma entidade de classe de âmbito nacional. Essa foi a segunda vez que o Supremo reconheceu a legitimidade de movimentos representativos nesse tipo de ação - a primeira delas aconteceu na ADPF 709, movida pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), que também levou ao STF em 2020 o pedido de proteção aos indígenas durante a pandemia. 

Outro fator importante também marca a ação proposta pela Conaq: a ADPF foi defendida em sustentações orais feitas por duas advogadas quilombolas. 

Vercilene Dias, que assessora juridicamente a Conaq e a Terra de Direitos, é do Quilombo Kalunga (GO) e já fez história como a primeira quilombola mestre em Direito no Brasil. Em 2019, Vercilene também marcou a realização de uma audiência pública no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que discutia o atual modelo de seleção de magistrados. “Por que uma quilombola nunca pôde estar sentada do outro lado da mesa para discutir, com juízes e representantes das carreiras jurídicas, uma política de justiça mais adequada às demandas sociais que chegam até seus balcões?”, declarou na época.

A advogada Gabriele Gonçalves também participou do julgamento virtual, representando a Terra de Direitos, organização que atuou como amicus curiae da ação. Essa foi a primeira vez que ela, quilombola do Quilombo da Rasa, da cidade de Armação dos Búzios (RJ), atuou no STF. Segundo ela, a experiência marcará a sua vida de forma significativa. “Eu estava lá para discutir uma questão diretamente ligada às minhas origens. Eu realmente me vi representando as comunidades quilombolas, em especial a comunidade quilombola a qual eu pertenço”, conta. “Eu não me senti sozinha na sustentação, eu senti como se a minha comunidade estivesse no STF, para demonstrar que as constantes violações já se tornaram insuportáveis e que a gente não vai se calar diante das violações de direitos humanos”.

Para a advogada, ainda que a decisão de mérito não tenha sido integralmente procedente, a ação inaugura uma nova fase no Judiciário. “Essa decisão só nos incentiva a dar continuidade na luta pela efetivação dos direitos, pois nós não nos calaremos mais”, reforça.

Assista a sustentação oral da advogada Gabriele Gonçalves, pela Terra de Direitos:

 



Ações: Quilombolas

Eixos: Política e cultura dos direitos humanos