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Editorial: Como guardião da Constituição, o STF deve garantir a proteção do direito territorial indígena


A rejeição da tese do “marco temporal” é central para consolidar direitos, proteger os povos indígenas e o meio ambiente.

Foto Marcelo Camargo/Agência Brasil

Hoje (07) será retomado no Supremo Tribunal Federal o julgamento de um processo central para os direitos dos povos indígenas no Brasil e a preservação do meio ambiente. Trata-se do Recurso Extraordinário n. 1.017.365/SC em que se debatem duas teses diametralmente opostas: de um lado, o direito originário dos povos indígenas aos seus territórios e, de outro, a tese do “marco temporal”. É um daqueles momentos definidores da luta e reafirmação dos direitos em nosso país.  

Paralisado desde 2021, em razão do pedido de vista feito pelo ministro Alexandre de Moraes, após um voto favorável à tese pelo ministro Nunes Marques e um contrário – pelo ministro e relator do Recurso Extraordinário em julgamento, Edson Fachin –, o julgamento pelo Supremo é decisivo para consolidar a interpretação acerca do direito dos povos indígenas sobre as terras que ocupam tradicionalmente, à luz do Artigo 231 da Constituição Federal e dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos. Ainda que o caso se refira ao Território Indígena Ibirama-Laklaño (SC), o processo corre sob a sistemática da repercussão geral (Tema 1031), assim o entendimento adotado nesse julgamento servirá de regra para todos os procedimentos demarcatórios indígenas.  

Ao longo da história, muitas foram as estratégias utilizadas para privar os povos indígenas dos seus territórios, a começar pela ação violenta e genocídio dessas populações. Apesar do nome bonito, a tese do “marco temporal” é apenas mais uma dessas estratégias de extermínio, de negação de direitos e de invisibilização dessas comunidades. E tudo isso acontece em um contexto em que os povos indígenas enfrentam uma intensificação da competição por recursos naturais, liderada por empresas privadas e muitas vezes com o apoio dos governos.  

Segundo os ruralistas e a Advocacia Geral da União (em posição consolidada no Parecer 001/2017, com força vinculante para toda a Administração Pública), o país deveria estabelecer um “marco temporal”, datado de 05 de outubro de 1988 – data da Promulgação da Constituição Federal – como critério definidor do direito dos povos indígenas aos seus territórios. Segundo argumentam, somente os indígenas que estivessem no território ou reivindicando-o no dia 5 de outubro de 1988 poderiam ter o direito garantido. Essa tese, no entanto, desconsidera todo processo de genocídio e expulsão dos povos originários de seus territórios ancestrais, ocorrido no passado remoto e, também, recente.  A exigência de provas de ocupação ou expulsão a partir de 5 de outubro de 1988 impõe um critério arbitrário e restritivo, que desconsidera a continuidade histórica de processos de expulsão e violações dos direitos dos povos indígenas ao longo dos séculos.  

Primeiro, tentou-se aplicar essa tese (inconstitucional) via Poder Executivo Federal, através de Parecer da AGU 001/2017, produzido durante o governo de Michel Temer. Ao impor a tese do marco temporal dentro da Administração Pública, referido parecer causou gravíssimas distorções na execução da política indigenista no Brasil, provocando a paralisia dos procedimentos demarcatórios (inaugurada em 2017) e um amplo revisionismo anulatório de atos administrativos já concluídos. Em 2020, a aplicação desse Parecer seria suspensa por ordem do Supremo Tribunal, em decisão proferida nos autos do RE 1017365/SC.  

Ao perceber a resistência à tese do marco temporal dentro do Poder Judiciário, a quem compete proteger a Constituição, ganhou força a mobilização a partir do Legislativo Federal, que conta com forte presença ruralista. Assim, na última semana, foi aprovado na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 490/2007 que pretende “formalizar” a tese do marco temporal dentro do ordenamento jurídico brasileiro. Em paralelo, o Executivo Federal – que criou o inédito e fundamental Ministério dos Povos Indígenas - busca resistir a tentativas de esvaziamento de suas funções e de enfraquecimento da política indigenista.  

A interpretação do art. 231, da Constituição Federal, não é matéria que possa ser definida pelo Congresso Nacional, via legislação ordinária, e muito menos pela Administração Pública, através de normas de caráter administrativo. A interpretação e preservação da Constituição é a competência maior do Supremo Tribunal Federal e disso se trata o julgamento do RE 1017365/SC que será retomado hoje.  

Assim como os demais poderes, o setor do agronegócio busca intervir fortemente na interpretação do Estado sobre o futuro dos processos de demarcação. Ao menos 136 entidades que representam interesses de ruralistas – entre associações, federações, sindicatos e outras – se manifestaram nos autos do processo.  Os argumentos apresentados pelos ruralistas para o julgamento demonstram a leitura contraditória da Constituição, baseada em interesses privados e financeiros, para acolhimento da tese do marco temporal.  

Em publicação, a Terra de Direitos e o Conselho Indígena Tapajós Arapiuns (CITA) refutam, um a um, os 10 principais argumentos usados pelos ruralistas em defesa do marco temporal, apresentados pelas entidades nas páginas do processo que volta a julgamento hoje. Esse material mostra que – e como - os pontos defendidos pelo agronegócio violam uma série de direitos originários dos povos indígenas e contrariam o que estabelece a Constituição Federal, Tratados Internacionais de Direitos Humanos e mesmo decisões anteriores do Supremo Tribunal Federal. 

Abaixo rememoramos os 10 pontos centrais de porque a tese do “marco temporal” não se sustenta, por inconstitucional e violadora de direitos e tratados internacionais.  

1. O Artigo 231 da Constituição Federal não precisa de uma regulamentação. Esse artigo é resultado de uma mobilização dos povos indígenas durante a Assembleia Constituinte e essa norma não deixa lacunas, como apontam os defensores da tese. Ao contrário, traz previsões expressas de que os direitos fundamentais dos indígenas aos seus territórios são superiores aos direitos ordinários de propriedade ou uso. O Artigo 231 não é uma norma programática que carece de regulamentação, mas sim uma norma autoaplicável. Sob essa perspectiva, a tese do “marco temporal” representa uma tentativa perigosa de suspender a aplicabilidade dos direitos indígenas, sem representação indígena e sem mecanismos de consulta efetivos, e de enfraquecer a eficácia das normas constitucionais e internacionais vinculantes.  

2. Ao contrário do que defendem os ruralistas, fixar um “marco temporal” de ocupação não constitui um elemento de pacificação das relações fundiárias no Brasil. O que efetivamente pode diminuir a realidade de conflitos e violência a que estão submetidos os povos indígenas é a demarcação de suas terras e não a redução ou a paralisação dos procedimentos de regularização.  O desrespeito ao direito indígena e as suas terras tradicionais gera tensões, violência e criminalização na medida em que os povos indígenas são transformados em invasores ou ocupantes ilegais de suas próprias terras. Isso resulta em perseguição, ataques, criminalização e até mesmo assassinatos daqueles que defendem seus territórios.  A tese do marco temporal nega a realidade da vulnerabilidade dos povos indígenas e sua história de resistência contra o genocídio que têm sofrido em todo o país.  
 

3. Marco temporal NÃO representa a consolidação das decisões do STF sobre Terras Indígenas. Os defensores do marco temporal distorcem a realidade do histórico de julgamentos do Supremo Tribunal sobre a matéria e, assim, buscam transformar uma decisão que foi uma vitória para a defesa dos direitos dos povos indígenas – o caso "Raposa Serra do Sol" – em uma derrota. Além disso, distorcem os próprios termos desse precedente. Isso porque a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol se deu de modo amplo e contínuo, e não em ilhas. Ademais, pretende-se, através da referida tese, transformar uma decisão específica em uma decisão de cunho geral, sendo que o STF já disse, em mais de uma oportunidade, que a decisão da T.I Raposa não se aplica a outras terras indígenas. Desse modo, impor a tese do “marco temporal” como critério para a titulação dos territórios indígenas violaria as garantias de não repetição das violações de direitos sofridas por esses povos e representa uma validação ilegítima do Estado na retirada violenta dos povos indígenas de suas terras e nas múltiplas violações de direitos humanos resultantes desse processo.  
 
4. A tese do “marco temporal” está baseada na ideia errônea de que a demarcação de Terras Indígenas e de que os próprios povos indígenas seriam um obstáculo ao desenvolvimento econômico do país.  Os ruralistas defendem um conceito restritivo e antiquado de desenvolvimento econômico. Baseado nos dados de safras de soja e milho que avançam sobre Terras Indígenas, tentam convencer os ministros do STF com números de produção de commodities agrícolas, argumentando que isso deve ter prioridade sobre as demarcações. Relatórios indicam que a produção de soja impacta negativamente as terras Indígenas, invadindo áreas e liderando multas por desmatamento. Por outro lado, é de conhecimento público que nas terras indígenas estão os maiores índices de preservação ambiental, elemento crucial para compreensão do desenvolvimento econômico e humano no século XXI.  

5. O direito dos povos indígenas aos territórios tradicionalmente ocupados é direito originário, e, portanto, é anterior e independente de qualquer ato do Estado, reconhecendo o direito preexistente das comunidades indígenas as suas terras. Esta é a posição consolidada na Constituição Federal, segundo a qual os direitos originários são inalienáveis e indisponíveis (art. 231, § 4º, CF/88) e os direitos territoriais indígenas são reconhecidos à luz dos usos, costumes e tradições de cada povo. É, também, a posição dos maiores especialistas na matéria e da Corte Interamericana de Direitos Humanos, segundo a qual é dever dos Estados proteger o direito à propriedade comunal dos povos que vivem em terras ancestrais de acordo com suas tradições.   

6. O Parecer nº 001/2017/AGU, adotado no governo de Michel Temer, que tornou vinculante a aplicação da tese do “marco temporal” no âmbito da Administração Pública, invoca a Constituição para subverter os seus comandos, além de distorcer as decisões anteriores da Suprema Corte. Segundo tal parecer, suspenso por determinação do STF, a matéria estaria pacificada na esfera administrativa, quando, em sentido contrário, o STF reconheceu a repercussão geral do tema, ao fundamento de que: a notoriedade dos conflitos agrários envolvendo as comunidades indígenas faz com que seja necessária uma discussão mais abrangente.  

7. A tese do “marco temporal” subverte também a Convenção 169 da OIT. Os ruralistas pressionam por uma revisão da interpretação do artigo 231, sustentando que o verbo "ocupar" possuiria o mesmo significado que a posse direta e se limitaria a um instituto do direito civil. Segundo essa perspectiva, a Convenção 169 da OIT, então, fortaleceria a importância do aspecto temporal para validar a posse indígena. No entanto, ao tratar do tema, a Constituição Federal não se refere à posse, mas sim ao direito dos povos indígenas ao território como um todo, indo além da mera posse e abrangendo aspectos culturais, históricos e étnicos. A posse é uma questão do campo do direito civil, enquanto o território se enquadra no âmbito dos direitos étnicos.  

8. A interpretação do verbo “ocupar” utilizado no art. 231 da CF abrange um significado mais amplo do que simplesmente a posse direta. Ele engloba a noção de territorialidade, levando em consideração as regras comunitárias de uso do território, incluindo lugares sagrados e práticas de reprodução cultural. Essa abordagem reconhece que a posse tradicional indígena não exige uma comprovação de posse contínua ao longo de gerações imemoriais. Em sentido contrário, a interpretação restritiva baseada em critérios arbitrários - como o “marco temporal” - limita o reconhecimento das terras tradicionalmente ocupadas, ignorando o histórico de genocídio dos povos indígenas. Portanto, a aplicação do marco temporal como única interpretação do verbo "ocupar" é inadequada.  

9. O Marco Temporal não representa segurança jurídica. Para os povos indígenas, a segurança jurídica passa pela reafirmação do marco normativo consolidado na Constituição Federal e na definição de uma interpretação sólida no sentido de assegurar os direitos originários aos territórios, além da efetiva demarcação dos territórios, que reconheça a autoidentificação e a utilização de laudos antropológicos para identificação de territórios. O relatório da Comissão de Direitos Humanos da OEA (2021) destaca que “a tese do marco temporal desconsidera os inúmeros casos nos quais povos indígenas haviam sido violentamente expulsos dos territórios que ocupavam tradicionalmente e, apenas por essa razão, não o ocupavam em 1988”. Portanto, o marco temporal não representa segurança jurídica, pois não considera as complexidades e injustiças históricas as quais  os povos indígenas foram submetidos. enfrentadas pelos povos indígenas.  
 

10. Marco temporal não representa uma garantia da ordem pública. Os ruralistas utilizam esse argumento para estigmatizar os povos indígenas como supostos inimigos da ordem pública, desconsiderando a complexidade dos conflitos territoriais e a história de violência sofrida por essas comunidades. Ao retratar as ocupações indígenas como atos criminosos de esbulho possessório, os ruralistas ignoram o contexto de expulsões violentas e desconsideram a autodeterminação dos povos indígenas sobre seus territórios tradicionais. Assim, o discurso dos ruralistas sobre a garantia da ordem pública através do marco temporal visa criminalizar as práticas indígenas de ocupação e proteção de seus próprios territórios, ignorando seus direitos originários e perpetuando a injustiça histórica.  

Em síntese, a tese do “marco temporal” não oferece segurança jurídica nem garante a ordem pública. Ao contrário, desconsidera a realidade das comunidades indígenas, viola tratados internacionais e perpetua a marginalização e vulnerabilidade dos povos indígenas. 

O histórico de como essa tese foi criada e vem sendo defendida junto a diferentes instituições públicas revela que essa se trata de uma nova roupagem para a tão conhecida estratégia de assimilação e extermínio dos povos indígenas no Brasil. Hoje, como historicamente tem sido, essa estratégia se volta contra a espinha dorsal de sua existência, os seus territórios.  

O julgamento que será retomado hoje no Supremo Tribunal Federal é crucial para os povos indígenas, mas também para todos e todas que desejam um país plural que respeite e garanta a possibilidade de “existir e viver sob forma diferente da hegemônica” (como ensina o Professor Carlos Marés), para todos e todas que acreditam em um modelo de desenvolvimento e de gestão dos recursos naturais que não seja predatório, mas inclusivo, socio e ambientalmente responsável. 



Ações: Conflitos Fundiários

Eixos: Política e cultura dos direitos humanos