Artigo | Totalitarismo ruralista - por Fernando Prioste


Conflitos no campo_indígenas

 

Artigo de Fernando G. V. Prioste, advogado popular e coordenador da Terra de Direitos, publicado no jornal Gazeta do Povo de 26 de setembro.

Recentemente, a bancada ruralista no Congresso Nacional questionou o fato de o Brasil ter aderido à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (C169). Essa convenção, aprovada pelo Congresso Nacional em 2002, assegura direitos aos povos indígenas, comunidades quilombolas e povos tradicionais. Para os ruralistas, a C169 autorizaria qualquer grupo a declarar-se indígena, quilombola ou povo tradicional, tendo, assim, direito à terra, o que afetaria a soberania nacional. Contudo, a falsa afirmação dos ruralistas apenas reforça opressões físicas, sociais, políticas, culturais e econômicas a grupos que integram a sociedade brasileira.

A C169 surgiu em 1989, substituindo a Convenção 107 da OIT (C107), após intensa pressão de povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais de todo o mundo. A C107 estabelecia que povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais seriam culturalmente inferiores, e que o destino dessas populações deveria ser a integração total à sociedade dominante. A C169 rompe com esse paradigma e reconhece que povos indígenas e comunidades tradicionais têm direito de viver conforme seus costumes.

Para que isso se concretize, a C169 reconheceu, entre outros, o direito à terra – fundamental para a garantia de reprodução física, social e cultural desses povos –, o direito ao autorreconhecimento e o direito de serem consultados sempre que sejam previstas, pelo Estado, medidas legislativas ou administrativas que possam afetá-los. Ressalte-se que muitos dos direitos previstos na C169, como o direito à terra, já estão reconhecidos como cláusulas pétreas na Constituição Federal, e a revogação da C169 em nada muda esse panorama.

É necessário esclarecer que o autorreconhecimento é critério fundamental, jamais exclusivo, para identificar os povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais. E não poderia ser diferente, pois o autorreconhecimento de qualquer identidade coletiva não pode ter outro ponto de partida que não seja a consciência coletiva do grupo quanto à identidade. Ademais, o processo de reconhecimento de direito à terra é longo, burocrático e está permeado de estudos que avaliam o autorreconhecimento para que tenha efeito prático. Frise-se que não existe terra indígena demarcada a grupos que não sejam indígenas; o mesmo se passa com quilombolas e comunidades tradicionais.

Por sua vez, o direito de consulta é uma garantia necessária para que esses povos possam ter alguma participação no processo de tomada de decisão do Estado, uma vez que não têm representação política direta nos poderes da República. Nada mais democrático que o Estado dialogar com esses povos sempre que alguma medida possa afetar seus modos de vida.

A proposta da bancada ruralista é parte de uma estratégia deliberada de desregulamentação total de direitos indígenas, quilombolas e de povos tradicionais. Para os ruralistas, os quilombolas, indígenas e tradicionais não devem ter direitos, muito menos terras, pois só interessa a produção de commodities para exportação. Logo, para os ruralistas, construir uma sociedade livre, justa e solidária, que valorize a diversidade étnica e cultural, principalmente dos povos que foram massacrados e escravizados durante quase quatro séculos, é apenas um acidente da nossa Constituição.



Ações: Conflitos Fundiários
Eixos: Terra, território e justiça espacial