Megaeventos: por trás do discurso de desenvolvimento, as violações de direitos humanos
Terra de Direitos
Entrevista com Julia Ávila Franzoni, assessora jurídica da Terra de Direitos
Fonte: Ihuonline, por Ricardo Machado
Em Curitiba e em sua região metropolitana as violações de direitos humanos decorrentes das obras da Copa do Mundo decorrem, em larga medida, da falta de acesso aos debates. “A violação mais premente dirige-se ao acesso à informação, ao direito à participação, consulta e interveniência da população afetada. A maior parte dos projetos e suas estratégias de execução são levadas a cabo à revelia do marco regulatório existente relacionado às exigências deliberativas e de participação”, explica Julia Ávila Franzoni, integrante da Terra de Direitos, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. Além disso, ela ressalta a acentuação das desigualdades sociais. “O processo de reurbanização de Curitiba no que diz respeito às obras relacionadas aos megaeventos está ocorrendo de forma bastante seletiva; o que acentua a já elevada desigualdade social e espacial do município”, sustenta.
Julia Ávila Franzoni é professora de Direito e assessora jurídica da Terra de Direitos – Organização de Direitos Humanos. Realizou mestrado em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná. Graduada em Direito pela mesma instituição e ex-pesquisadora do CNPq/PIBIC, integra o Núcleo de Estudos Filosóficos – NEFIL e o Núcleo de Investigações Constitucionais – NINC, ambos vinculados à Pós-Graduação em Direito da UFPR.
Confira entrevista.
IHU On-Line – Quais são os principais desafios da Organização Terra de Direitos relacionados aos megaeventos no Brasil?
Julia Ávila Franzoni – Os principais desafios dizem respeito ao necessário enfrentamento do modelo de desenvolvimento levado a cabo por esses grandes projetos. Trata-se, nesse caso, de um modelo que vincula a viabilidade dos empreendimentos, obras e eventos privados de caráter mercantil, à necessária garantia, instrumentalização e legitimação pelo Estado. Dessa forma, o próprio Estado passa a ser parceiro da realização desses grandes projetos, financiando-os, executando-os e, portanto, acena para escolha política de um modelo de desenvolvimento voltado ao mercado e a interesses privados, alheio ao paradigma de promoção de direitos humanos, como marco a instruir as políticas de desenvolvimento econômico. A particularidade dos megaeventos esportivos, como a Copa do Mundo as Olimpíadas, é o falseamento simbólico trazido pelo discurso que se utiliza de motes como a paixão nacional pelo esporte e o possível legado, para legitimar ou alavancar megaprojetos que já estavam previstos e, dessa forma, justificar, subdimensionar ou até esconder as violações de direitos e os impactos socioeconômicos desses projetos.
IHU On-Line – Em que medida as obras para a realização dos megaeventos impactam nos direitos humanos?
Julia Ávila Franzoni – As obras para realização dos megaeventos impactam os direitos humanos em diversas frentes. A violação mais premente dirige-se ao acesso à informação, ao direito à participação, consulta e interveniência da população afetada. A maior parte dos projetos e suas estratégias de execução são levadas a cabo à revelia do marco regulatório existente relacionado às exigências deliberativas e de participação. Além disso, o aparato simbólico montado em torno desses eventos serve à justificativa de urgência e alta prioridade das obras, que marcaram violações de direitos já conquistados e garantias previstas. Dessa forma, “legislações de exceção” são criadas para escudar práticas abusivas (como a Lei Geral da Copa), que fogem dos procedimentos usuais, direitos são suspensos por tempo determinado, em prol do “bom andamento” do evento e do suposto “interesse público e nacional”, e direitos humanos são frontalmente violados para realização das obras. A título de exemplo, podemos citar que o direito ao trabalho é violado através das regras criadas para ocupação dos espaços destinados à realização do evento, como as zonas de exclusão, prejudicando trabalhadores ambulantes e vendedores de rua; o direito do trabalho também sofre agressões como a alteração do regime de greve no período do evento e o direito à moradia é violado através de remoções e despejos forçados sem respeito às garantias nacionais e internacionais ligadas à segurança da posse.
IHU On-Line – Como está a questão da Comunidade Nova Costeira, que será impactada pelas obras de ampliação do Aeroporto Afonso Pena em São José dos Pinhais, no Paraná?
Julia Ávila Franzoni – A Comunidade Nova Costeira e o Comitê Popular da Copa de Curitiba, rede da sociedade civil que a Terra de Direitos integra, têm buscado se organizar para fazer frente às violações de direitos que já estão ocorrendo em vista da construção da terceira pista do Aeroporto Afonso Pena. Além da ampla violação ao acesso à informação e participação, a Comunidade teme ter seu direito à moradia violado caso não seja realizado um processo adequado de realocação; fato este inconteste segundo as informações do poder público.
Neste primeiro semestre foram protocolados cerca de 60 pedidos administrativos de Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia referente às famílias que ocupam a área, a fim de garantir a segurança da posse dos moradores e seu direito à regularização fundiária e, assim, evitar maiores agressões no processo de realocação. Muito embora em reuniões com diversos representantes do poder público (Infraero, Secretaria de Infraestrutura e Logística do Estado do Paraná, Prefeitura de São José dos Pinhais, Secretaria de Habitação e Urbanismo) tenha sido firmado o entendimento de que a comunidade seria consultada e participaria do processo decisório sobre a realocação, há indícios de que a solução está sendo tomada à revelia desse acordo, com indicativo de que os moradores serão contemplados por moradias do programa Minha Casa Minha Vida; fato que está em completo desacordo com os anseios da comunidade.
IHU On-Line – Como está ocorrendo o processo de reurbanização de Curitiba? Como as diferentes camadas da sociedade estão sendo impactadas?
Julia Ávila Franzoni – O processo de reurbanização de Curitiba, no que diz respeito às obras relacionadas aos megaeventos, está ocorrendo de forma bastante seletiva; o que acentua a já elevada desigualdade social e espacial do município. Podemos afirmar que existe uma faixa ou um eixo da cidade beneficiado por obras de infraestrutura e revitalização; trecho este que corresponde, em sua maioria, às áreas urbanas envolvidas com os eventos esportivos. Essa deformação provoca uma concentração de recursos em áreas muitas vezes já beneficiadas por infraestrutura, enquanto áreas carentes mantêm-se isoladas desse processo que lhes poderia garantir melhorias. Não há estudos conclusivos que subsidiem análises sobre como as camadas da sociedade estão sendo impactadas, muito embora se possa afirmar, de forma ensaística, que, além dos moradores cujos imóveis estão sendo desapropriados no entorno do estádio de futebol Joaquim Américo , a população de baixa renda como os moradores de rua, trabalhadores ambulantes e moradores de ocupações irregulares são os mais impactados.
IHU On-Line – Que avanços em relação aos direitos humanos podem ser apontados devido à mobilização das entidades civis em torno dos megaeventos?
Julia Ávila Franzoni – Os principais avanços estão ligados à produção de um contradiscurso que discute os megaeventos nos marcos do seu modelo de desenvolvimento violador dos direitos humanos; o fortalecimento e a criação de redes de agentes promotores de diretos humanos como os Comitês Populares da Copa e a Articulação Nacional dos Comitês Populares para Copa e Olimpíadas; a incidência em órgãos públicos de forma a incentivar posturas do Estado que confirmassem a necessidade de respeito ao marco regulatório dos direitos humanos, como a recomendação do Ministério Público Federal, ligada ao acesso à informação e participação; o dimensionamento e o apoio internacional que essas entidades consolidaram em torno do tema; reforço da mobilização em conjunto com a população afetada de soluções alternativas que evitaram remoções e outras possíveis violações.
Ações: Impactos de Megaprojetos, Direito à Cidade
Eixos: Terra, território e justiça espacial