Julgamento do Conselho Nacional do Ministério Público valida discurso racista, apontam afetados
Procurador Ricardo Albuquerque fez declarações contra indígenas e quilombolas. Processo administrativo disciplinar foi arquivado.
*Por Vercilene Dias, Maira Moreira e Camila Gomes.
O Conselho Nacional do Ministério Público determinou, no dia 28 de outubro, o arquivamento do pedido de abertura de Processo Administrativo Disciplinar (PAD) contra o procurador do Ministério Público, Ricardo Albuquerque, que fez declarações racistas contra indígenas e quilombolas ao afirmar que não teria “dívida nenhuma com quilombolas” porque não ele não tinha um navio negreiro e que “problema da escravidão aqui no Brasil foi porque o índio não gosta de trabalhar”. Um áudio com trechos da fala do procurador viralizou nas redes sociais e o caso ganhou ampla repercussão.
O episódio ocorreu em novembro de 2019, durante palestra para estudantes do curso de Direito em uma universidade particular em Belém, capital do estado do Pará. Com a repercussão do caso, o procurador se justificou e argumentou que se tratava apenas de um debate acadêmico e que, por sua índole profissional, não deveria ser punido. Após um pedido público de desculpas, foi afastado do cargo de ouvidor-geral do Ministério Público do Estado do Pará, que ocupava à época dos fatos, tendo retornado ao posto em 9 de fevereiro de 2020, menos de 3 meses do ocorrido.
Em dezembro de 2019, entidades de defesa de direitos humanos, movimentos sociais negros e organizações populares – Conaq, Malungu, Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará (CEDENPA), Terra de Direitos e outras – e a Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional do Pará ingressaram com denúncia perante os órgãos disciplinares do Ministério Público. As entidades exigiam a instauração de procedimento administrativo para apurar as faltas disciplinares cometidas pelo procurador.
O julgamento do processo começou em março deste ano e, após ser adiado por 8 vezes, foi encerrado no dia 27 de outubro. Por 7 votos a 2, o Conselho do Ministério Público entendeu que as declarações do procurador se justificam pela “liberdade de cátedra” e, por terem sido proferidas em um ambiente com poucas pessoas, não se enquadram no crime de racismo.
Esse caso é mais um, dentre vários, que revela o recrudescimento do discurso racista como prática de autoridades públicas no Brasil, ao mesmo tempo em que evidencia a ineficácia de reação por parte dos órgãos de estado ou mesmo a ineficácia das ações disciplinares ou de persecução criminal adotadas em casos de racismo, apesar da sua tipificação como crime pelas leis do país. Revela, também, aspectos importantes sobre o racismo dentro das instituições brasileiras, os quais precisam ser analisados e debatidos.
Os discursos e práticas racistas quando promovidos por autoridades públicas assumem ainda maior gravidade. Pois, além de configurar crime em si mesmas, possuem uma ampla ressonância na sociedade civil e legitimam a retirada de direitos da população negra.
Uma das principais consequências do discurso racista da autoridade pública é desonerar o Estado da obrigação de implementar direitos fundamentais da população negra e culpabilizar a população negra pelos resultados de um sistema de desigualdade racial. No Brasil, este tipo de discurso tem servido ao propósito de legitimar a negação de direitos territoriais e autodeterminação a populações indígenas e quilombolas.
Diante da sua gravidade, seria dever das instituições públicas investigar esses casos de ofício, no entanto, nos casos envolvendo autoridades, as tentativas de responsabilização têm ficado exclusivamente a cargo das ações de incidência e pressão por parte da sociedade civil.
Em sua manifestação, extremamente racista e preconceituosa, Albuquerque afirmou que os Indígenas seriam preguiçosos por não se submeterem às condições de trabalho escravo. Segundo o procurador, a “indisposição dos indígenas” para o trabalho (escravo – ressalte-se!) justificaria a escravidão da população negra. Desse modo, imputou aos indígenas a responsabilidade pelas condições de trabalho a que foram submetidas as pessoas trazidas de África.
Discurso como esse, e principalmente quando feito por autoridade pública, promovem uma normalização da escravidão e menosprezam as formas de resistência dos povos escravizados. Ao não problematizar o que foi o sistema escravocrata, dão a entender que o povo negro era feliz sendo escravizado, escondendo a relação de opressão a qual foram submetidos.
Em sua fala,o procurador relativiza o conceito de escravidão, associando-o à ideia de trabalho. No entanto, esses termos não se confundem. Trabalho é um direito social, que cada cidadão é livre para exercer, mediante remuneração, conforme o art. 1º, inciso IV, e art. 5º, inciso XIII, da Constituição e as normas da CLT.
A escravidão, por outro lado, não é uma relação de liberdade, pois o escravizado não tem a possibilidade de escolha, tendo sua vida e sua força de trabalho apropriadas e subjulgas. Em um processo de flagrante desumanização, as pessoas escravizadas são objetificadas, super exploradas, violentadas, oprimidas e assassinadas.
Ao referir-se pejorativamente às comunidades quilombolas, negando a dívida histórica para com essa população, mina-se o fundamento que justifica a construção de políticas públicas específicas para essas comunidades. Ora, a própria Organização das Nações Unidas (ONU) reconheceu essa dívida do Brasil em Assembleia Geral, por meio da Resolução nº 68/237, de 2 de dezembro de 2013, proclamando a Década Internacional de Afrodescendentes, com início em 1º de janeiro de 2015 e fim em 31 de dezembro de 2024.
Evidente que a manifestação do procurador quanto à desnecessidade de alocação de recursos do orçamento do Estado para políticas públicas destinadas aos quilombolas consiste em racismo, além de manifestamente inconstitucional. Afinal, é a própria Constituição que determina a alocação de recursos públicos para comunidades quilombolas (art. 68 do ADCT e Decreto 4887/2003).
No Brasil, o quadro de desigualdade produzido pelo racismo estrutural produz seus reflexos. É de extrema importância que o sistema de justiça tenha uma postura firme no combate às diferentes formas de racismo principalmente, aquelas manifestadas dentro das estruturas de seus órgão e por autoridades públicas que deveriam colocar esforços em corrigir essas desigualdades, dando a devida punição aqueles que as perpetua através da prática de discursos racistas e de ódio.
O argumento de que um debate acadêmico é livre, inclusive a ponto de que uma acusação de racismo não o alcançaria, não pode ser admitido enquanto argumento válido em qualquer espaço do sistema de justiça, pois o que é o racismo senão uma forma de estruturação da sociedade capaz de promover discriminações e desigualdades em todos os espaços, públicos e privados, acadêmicos e não-acadêmicos?
O que justifica a especial proteção conferida pelas normas nacionais e internacionais a esse direito é precisamente o seu caráter instrumental no exercício de outros direitos. Assim, a liberdade de expressão e as imunidades funcionais não podem ser usadas para violar direitos e não se prestam a proteger discursos discriminatórios.
Enquanto os discursos e práticas racistas de autoridades públicas seguem impunes, com a chancela do próprio sistema de justiça, crescem no Brasil os índices de violência que atingem de maneira desproporcional a população negra e aumenta a desigualdade de acesso a direitos entre brancos e negros.
*Vercilene Dias – Assessora jurídica da Terra de Direitos e Conaq, mestre em direito pela UFG e quilombola da Comunidade Quilombola Kalunga.
*Maira Moreira – Assessora jurídica da Terra de Direitos e doutoranda em direito pela PUC-Rio.
*Camila Gomes – Advogada popular integrante da Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (Renap) e mestre em direito pela UnB
Ações: Quilombolas
Eixos: Política e cultura dos direitos humanos