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Sete anos após a vitória histórica na ADI Quilombola, Estado ainda ignora a urgência na titulação quilombola


Selma Corrêa, Queila Couto e Marcelo Corrêa*

A morosidade na titulação, coloca as comunidades quilombolas em situação de extrema vulnerabilidade, criminalização de lideranças e violação de direitos humanos

Foto: STF

Esse mês de fevereiro é marcado por algumas vitórias para os povos quilombolas. Na Amazônia, podemos destacar os 7 anos da titulação do quilombo Pérola do Maicá, em Santarém, no oeste do Pará. Esse é o primeiro e único território quilombola titulado (ainda parcialmente) do município que possui uma história de luta e resistência das 13 comunidades remanescentes de quilombolas. Já em âmbito nacional, a conquista é ainda mais emblemática e também completa 7 anos hoje.

Após intensa mobilização social de quilombolas de todo o país, no dia 8 de fevereiro de 2018 o Supremo Tribunal Federal (STF), julgou improcedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 3.239/04, que atacava o Decreto Federal nº 4887/03 de regulamentação do procedimento de titulação das terras quilombolas. A ação foi uma tentativa de deslegitimar a luta quilombola articulada pelo Partido Democrata, atual União Brasil (UNIÃO), junto de ruralistas com reconhecido interesse em se apropriar de terras tradicionais. Na ADI, o argumento se baseava na tese do Marco Temporal – a mesma que se tenta aplicar a territórios indígenas - e diz que só teriam direito a titulação, as comunidades que comprovassem a posse da terra na data de promulgação da Constituição Federal, 5 de outubro de 1988. Além disso, a ação também pedia a anulação do critério de autorreconhecimento das comunidades remanescentes de quilombo.

Ora, não é o Estado que declara a identidade étnica. Ao Estado cabe tão somente oficializar a autodeclaração e respeitá-la. A própria comunidade decide quem são e onde estão os quilombolas. Aplicar a tese do marco temporal para povos tradicionais (ou originários) é ignorar o processo histórico de violência, expulsão e negação de direitos desses povos.

A rejeição da ADI 3.239 garante segurança jurídica, a autoidentificação e titulação de terras quilombolas, impondo ao Estado o dever de emitir os respectivos títulos. No entanto, sete anos se passaram dessa conquista histórica, porém, o que se vê na prática é cada vez mais o desencadeamento de conflitos fundiários envolvendo territórios quilombolas que aguardam a titulação.

Em todo esse tempo, a comunidade de Pérola do Maicá ainda aguarda a titulação completa do território. Já o quilombo Umarizal, no município de Baião, Pará, aguarda há mais de 25 anos a titulação. De maneira semelhante, os milhares de territórios quilombolas do país veem a maneira lenta com que quilombos são garantidos para suas comunidades. Uma análise realizada pela Terra de Direitos estima que, no atual ritmo, serão necessários 2.708 anos para titular todo o território dos 1.857 quilombos com processos abertos no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), órgão responsável pela execução da política.

A morosidade no processo de titulação, coloca as comunidades quilombolas em situação de extrema vulnerabilidade, uma vez que a maioria do território de uma comunidade não está sob domínio dela, mas de terceiros, como fazendeiros e grandes empresas que se utilizam de ações possessórias para se manter na posse, gerando um grande passivo de processos judicializados contra comunidades quilombolas, criminalizando lideranças e provocando uma série de violação de direitos humanos.

Reconhecida a constitucionalidade do Decreto n.º 4.887/03, e havendo legislações garantidoras das titulações dos territórios, recai sobre o Estado – INCRA, o dever e obrigação de conduzir e concluir os processos de titulação em tempo hábil, único meio capaz de assegurar os direitos das comunidades quilombolas a um território documentalmente reconhecido.

A declaração da inconstitucionalidade da ADI n.º 3.239, tese do "marco temporal”, como ficou conhecida, é um reconhecimento dos direitos à terra e respeito a ancestralidade das comunidades quilombolas, porém não assegura uma efetividade de aplicação do Decreto n.º 4.887/03, haja vista a flagrante falta de implementação e celeridade dos procedimentos administrativos que confere o Decreto nº 4.887. Diante disso, as comunidades quilombolas são inseridas em um conflito desigual com empresas, fazendeiros e, ultimamente, o crime organizado que se utilizam das frágeis ações do Estado no processo de titulação para usurparem parcelas significativas dos territórios, quando não expulsam violentamente a população de suas terras.

O julgamento da ADI 3.239 representa uma vitória histórica da luta quilombola, que se deu através de intensa participação de representações do movimento quilombola, com luta coletiva, mobilização e articulação dos muitos quilombos do Brasil com presunção de ancestralidade negra relacionada com resistência à opressão histórica sofrida. Enquanto a titulação não chega, territórios quilombolas continuam unidos, resistindo e lutando por seus direitos, o Estado precisa honrar essa história.

*Selma Corrêa é assessora jurídica da Terra de Direitos; Queila Couto e Marcelo Corrêa são advogados quilombolas da Malungu (Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Pará)



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Ações: Quilombolas
Casos Emblemáticos: ADIN quilombola
Eixos: Terra, território e justiça espacial
Tags: ADIN Quilombola,STF,TITULAÇÃO,QUILOMBOLAS