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Finalização da titulação de territórios quilombolas pode acontecer apenas no ano de 4732. Haverá mundo?

16/05/2024 Franciele Petry Schramm e Lizely Borges | Assessoria de comunicação da Terra de Direitos

Estimativa revela que, se mantiver atual ritmo, governo federal levará 2.708 anos para titular todos os quilombos com processos abertos no Incra 

Enquanto os avanços na política para titulação quilombola andam a passos lentos no Brasil, a estimativa para conclusão dos processos de regularização fundiária dos territórios quilombola aumenta a cada ano. Uma análise realizada pela Terra de Direitos estima que, no atual ritmo, serão necessários 2.708 anos para titular todo o território dos 1.857 quilombos com processos abertos no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), órgão responsável pela execução da política.   

Para estimar esse número foi considerada a quantidade de territórios totalmente titulados até o momento, pelo governo federal – por meio do Incra ou da Secretaria de Patrimônio da União (SPU) –, desde a promulgação da Constituição Federal de 1988. Foi a Constituição Federal que reconheceu o direito quilombola ao território tradicional. Em 35 anos, apenas 24 quilombos receberam o título de toda a área do território e outros 33 receberam o título de apenas parte da área que as comunidades têm direito (titulação parcial). Dos 57 títulos emitidos, 54 foram de atribuição do Incra e três da SPU. 

Os dados analisados foram fornecidos à organização pelo Incra no dia 25 de abril e atualizados no início de maio, e podem ser conferidos na página da autarquia federal. A estimativa não contabiliza processos de regularização fundiária quilombola de atribuição de estados e municípios ou de comunidades que não tiveram certificação da Fundação Palmares e, portanto, não deram entrada no processo administrativo no Incra. 

O cálculo, ainda que ilustrativo, indica que, caso o atual ritmo seja mantido, a titulação integral de todas as áreas de quilombos no Brasil seria finalizada apenas no ano de 4732. O número é bastante alto, considerando a urgência que quilombolas enfrentam em ter a garantia de poderem permanecer em suas terras. “Desde 1988 há evidente escolha por uma necropolítica, que arrasta a política de titulação quilombola a passos lentos, até que não haja mais territórios passíveis de regularização. Isso porque toda essa morosidade expõe as comunidades quilombolas a um contexto gravíssimo de vulnerabilidade e diferentes tipos de violências, que ameaçam sua perenidade e existência”, pontua a advogada quilombola popular da Terra de Direitos, Kathleen Tiê.  

A demora na efetivação de um direito previsto na Constituição Federal traz grandes prejuízos aos quilombolas, como explica o Douglas Sena, um dos coordenadores da Malungu, a Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Pará. “O primeiro prejuízo é a ausência de autonomia de defesa dos territórios, uma vez que não temos o território titulado. Segundo, algumas políticas públicas dependem desse processo finalizado por causa da relação de beneficiários - se não temos o título a política não se encaminha”, reforça. 

Enquanto os territórios não são titulados, quilombolas sofrem as mais variadas pressões: desde a especulação imobiliária, o conflito com fazendeiros e empresas, até a violação de direitos que em muitos casos é promovida pelo próprio poder público. É o que acontece, por exemplo, no Quilombo Sítio Conceição, no município de Barcarena (PA). A prefeitura municipal tem praticado uma série de violações, que passam pela criação de um parque até a instalação de uma estação de tratamento de esgoto dentro do território tradicional, sem qualquer tipo de consulta prévia, livre e informada aos quilombolas. Lideranças da comunidade que resistem e denunciam essa série de violações estão sofrendo ameaças.  

Leia | Quilombolas de Sítio Conceição, em Barcarena (PA), são despejados de seu território pela Prefeitura 

O risco à vida de lideranças quilombolas é mais um dos prejuízos trazidos pela falta de titulação, segundo Douglas. A avaliação é reforçada pelos dados apresentados na 2ª edição da pesquisa Racismo e Violência contra Quilombos no Brasil, lançada pela Coordenação Nacional de Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e Terra de Direitos em 2023. O estudo identificou que, dos assassinatos de quilombolas registrados no Brasil entre 2018 e 2022, 65% aconteceram em territórios não titulados – nos quilombos sem título, 70% dos assassinatos foram motivados por conflitos fundiários.  

Pequenos avanços, grandes urgências    

A estimativa feita pela Terra de Direitos representa um aumento de 520 anos em relação à feita no ano passado. Esse aumento é resultado do crescimento do número de processos abertos no Incra no último ano e da não resposta adequada do Estado brasileiro à demanda represada anteriormente. Em 2023, por exemplo, cinco territórios quilombolas foram titulados – quatro deles de maneira parcial, e apenas um recebeu o título por todo território.     

Ainda que bastante reduzido em relação à totalidade da demanda, os títulos emitidos no último ano representam um avanço em relação ao que foi executado no governo de Jair Bolsonaro (PL). Apenas em 2023 foram titulados praticamente o mesmo número de territórios que entre 2018 e 2022, quando apenas seis quilombos receberam o título.  

Especialmente desde 2019, a política de titulação de territórios quilombolas sofreu um duro golpe com a queda acentuada no número de processos que avançaram nas etapas necessárias para titulação. As etapas do processo de regularização fundiária dos territórios quilombolas foram definidos em 2003, por meio do Decreto nº 4.887/2003, que estabeleceu os seguintes passos para a emissão dos títulos: 

  • 1º Passo - Certificação pela Fundação Cultural Palmares  

  • 2º Passo - Abertura do processo em órgão fundiário  

  • 4º Passo - Elaboração e publicação do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) do território  

  • 5º Passo - Publicação de uma portaria de reconhecimento  

  • 6º Passo - Assinatura de um decreto que estabelece o território quilombola como área de interesse social – o que possibilita o andamento da desapropriação de eventuais particulares que estejam na área   

  • 7º Passo - Emissão do título coletivo da terra 

Para se ter uma ideia, durante quatro anos de governo Bolsonaro apenas 8 portarias de reconhecimento foram publicadas em Diário Oficial. Em 2023, apenas no primeiro ano do mandato do governo Lula, foram 51. No quadriênio do governo de Dilma Rousseff (PT), que após um golpe passou a ser representado pelo governo de Michel Temer (MDB), foram 61 portarias publicadas, entre os anos de 2015 e 2018. 

Os avanços nos processos de titulação quilombola pela atual gestão de governo são reconhecidos pelo movimento quilombola, que entende que é preciso ir além. Coordenador da Conaq, Denildo Rodrigues de Moraes, conhecido como Biko, reflete sobre. “Nós avaliamos que o primeiro ano do governo Lula foi de colocar a política quilombola nos trilhos. O governo pegou um orçamento totalmente defasado, sem condições e uma estrutura esfacelada e mesmo assim no primeiro ano conseguiu publicar 51 portarias que eram represadas há 6 anos. Ainda assim, achamos que é muito pouco porque não avançou muito, a gente esperava muito mais”. E destaca: “O presidente sempre fala que uma das prioridades do governo dele é a política quilombola, só que não basta falar. O grau de prioridade de uma política em um governo é definido também pelo quanto de orçamento é destinado e recurso físico de pessoas para que esta política possa se desenvolver”.

Alterações necessárias 

Considerando as etapas necessárias para o procedimento de titulação, ao menos 33 outros territórios que já possuem decreto declaratório de interesse social estariam aguardando a emissão dos títulos.  A finalização desse processo, no entanto, pode não ser tão imediata. Em resposta oficial, o Incra indica que “fatores como disponibilidade de recursos humanos, orçamentários e financeiros, capacidade operacional das unidades do Incra, assim como a conclusão do processo judicial de desapropriação, impactam o andamento regular do procedimento de regularização das comunidades de forma diferenciada”. 

Desde 2017, a política quilombola também tem enfrentado novos entraves burocráticos para a titulação de suas terras. O Decreto 9.191/2017, que estabelece normas e diretrizes para atos da União, determina em seu artigo 32 que o parecer de mérito de novos decretos deve conter “a estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que entrar em vigor".  

Segundo Kathleen Tiê, advogada popular da Terra de Direitos, a nova determinação abriu brechas para impedir a publicação de novos decretos declaratórios de interesse social, pelo baixo orçamento previsto para indenização, reconhecimento e titulação de territórios quilombolas na Lei Orçamentária Anual dos últimos anos.  

Em 2022, por exemplo, foram autorizados apenas R$ 558,9 mil para a regularização fundiária dos quilombos, segundo dados apresentados pelo Inesc no Balanço do Orçamento da União em 2023. Desse valor, só R$ 450 mil foram executados. O baixo orçamento ao longo dos últimos anos fez com que apenas 1 decreto de interesse social fosse publicado durante o governo de Bolsonaro, um cenário bastante diferente de 2015, quando foram publicados 14 decretos. O único decreto durante o governo Bolsonaro, inclusive, só foi publicado após determinação judicial. Trata-se do território Pedro Cubas, em Eldorado (SP), cuja declaração de interesse social foi publicada em 2021.  

Para a advogada, o dispositivo federal de 2017 – que impacta a publicação de novos decretos de interesse social – não considera as especificidades da política quilombola. “A dinâmica do órgão, do Incra, é de avaliar quanto vai custar a indenização depois que há o decreto da área, por conta do prazo de validade dessas avaliações. Caso a avaliação do valor necessário para desapropriação de uma área seja feita antes da assinatura do decreto, posteriormente será necessário realizar uma nova avaliação, porque o mercado imobiliário é dinâmico”, explica. 

A retomada da política quilombola pela nova gestão traz novas esperanças. Para 2024, foram autorizados R$ 144,3 milhões destinados à regularização fundiária quilombola. “O valor destinado esse ano é um dos maiores dos últimos tempos – senão o maior – mas esse valor empenhado não significa liquidado e executado”, ressalta Kathleen. Ela lembra que para execução desse valor devem ser consideradas todas as nuances da estrutura da política quilombola, dentre elas a própria capacidade operativa das superintendências do Incra para avanço dos processos – por exemplo, se há equipe e estrutura suficiente no órgão para elaborações de RTID, análises de contestação e recursos, até a elaboração do chamado kit-decreto que será enviado à Casa Civil para assinatura do decreto de interesse social.  

“Quando se considera esse valor para efeito de indenização para desapropriações, esse valor se demonstra baixo, muito aquém do necessário. Então é preciso que se faça avançar a política quilombola com recursos destinados ao Incra de modo que considere a realidade da demanda. Foi um avanço, mas ainda não é suficiente”, reforça. 

Nenhum centímetro de terra a menos  

Se forem considerados todos os 57 territórios com título, ainda que parciais, a estimativa de tempo necessário para titulação dos territórios cai para 1.140 anos. O número ainda é bastante expressivo, e traz uma preocupação para quilombolas que exigem a titulação integral de suas áreas. 

Primeiro – e único – quilombo titulado no Paraná, o território quilombola Invernada Paiol de Telha, em Reserva do Iguaçu (PR), recebeu até agora o título de apenas 39% da área que consta na portaria de reconhecimento assinada pelo Incra em 2014 – ainda que a área reivindicada como de direito seja maior. Desde o início no processo no Incra, foram 14 anos até a chegada do primeiro título, em 2019. O Paiol de Telha, inclusive, foi o primeiro quilombo a receber um título no governo de Jair Bolsonaro (PL), fato que só ocorreu após determinação judicial.

Leia | Por que a titulação do Quilombo Invernada Paiol de Telha é tão emblemática? 

Liderança da comunidade, a quilombola Ana Maria da Cruz enfatiza a necessidade em garantir a titulação total da área. “Com o título a comunidade terá como se planejar, buscar recursos para todos os moradores e acessar políticas públicas”, conta. Segundo ela, muitas famílias quilombolas estão fora do território e não conseguem voltar enquanto todo o quilombo não for titulado.  

Dos 33 territórios que estão parcialmente titulados, 22 deles tem o título de menos da metade da área reconhecida como de direito. O Quilombo de Brejo dos Negros, no município de Brejo Grande (SE), por exemplo, tem o título de apenas 19 hectares dos mais de 8 mil hectares que formam o território tradicional – ou seja, apenas 0,24% da área está regularizada.

 

Também advogada popular na Terra de Direitos, Selma Corrêa aponta que a titulação parcial dos territórios tem sido uma das grandes críticas nas Mesas Quilombolas – um espaço de reuniões ordinárias entre o órgão fundiário, comunidades quilombolas, assessoria jurídica e Ministério Público Federal (MPF) para tratar sobre o andamento do processo de titulação de territórios quilombolas. “A parte que o Incra titula parcialmente são pequenas áreas, que são as áreas que não têm conflito. Fica para a comunidade quilombola o ônus de resolver a maior e mais conflituosa parte”, conta.

Kathleen Tiê também destaca que a fragmentação dos territórios quilombolas, de forma que apenas parte deles sejam titulados de forma parcial, é resultado da falta de um Plano de Titulação por parte do governo federal. Esse plano, reivindicado pela Conaq, incorporaria uma previsão orçamentária para pagamento da indenização de terceiros e estabeleceria uma espécie de cronograma para as titulações. “Se não existir um plano que considere esses altos valores de indenização, o território nunca será uno: serão tituladas apenas as áreas que custam menos para o Estado, que são as áreas de domínio público estadual, municipal ou federal”, explica.

Garantir o direito ao território tradicional é importante não só para os quilombolas, mas para preservação do patrimônio cultural e para toda sociedade, como lembra Ana Maria. “As comunidades quilombolas preservam o seu espaço. Com o título total da área, os quilombolas terão condições de preservar e replantar áreas devastadas”, destaca. Um relatório do MapBiomas confirma isso: segundo o levantamento, dentre as categorias fundiárias, os quilombos estão entre as áreas mais conservadas do Brasil. Acesse



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Ações: Quilombolas

Eixos: Terra, território e justiça espacial