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Justiça rural: o que ensina uma vitória comunitária


Conquista do direito à posse coletiva, agrária e tradicional de uma família em Santarém (PA) demonstra a importância estratégica de coletivizar as lutas por meio da educação popular, litigância estratégica e incidência política 

Por Luísa Câmara Rocha* e Pedro Martins**

A Vara Agrária de Santarém, no Pará, reconheceu, em ação possessória de interdito proibitório, o direito a posse coletiva, agrária e tradicional a uma família da comunidade tradicional do Jacarezinho, no Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE) Lago Grande, localizado na zona rural da cidade. A ação foi articulada pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais e Agricultores e Agricultoras Familiares do Município de Santarém (STTR/STM) e pela Federação das Associações de Moradores e Comunidades do Assentamento Agroextrativista da Gleba Lago Grande (FEAGLE), com assessoria jurídica popular da Terra de Direitos.

A estratégia jurídico-política adotada no caso surgiu no contexto de paralisação da política nacional da reforma agrária pelo governo federal, ocorrida no ano de 2019. E é neste contexto que no PAE Lago Grande, território destinado ao assentamento agroextrativista desde 2005, aumentam os conflitos pela posse da terra. A morosidade para finalização do processo de regularização do projeto de assentamento gera insegurança jurídica e vulnerabiliza as famílias agricultoras diante de assédios de grileiros e empresas no território.

Segundo o STTR de Santarém e a FEAGLE, tem aumentado muito o número de situações de venda ilegal de terra no PAE Lago Grande, grilagem, desmatamento e extração ilegal de madeira dentro das comunidades, assédio de empresas mineradoras e madeireiras que querem entrar no território e promover cooptação e ameaças às lideranças comunitárias. Os sujeitos antagonistas ao projeto de Reforma Agrária, ambientalmente diferenciada, promovem discursos de deslegitimação pública e tentativa de criminalização das organizações que atuam no PAE Lago Grande.

A estratégia jurídica popular não anda só 

Assim, a estratégia jurídico-política pensada para a situação da comunidade do Jacarezinho tinha como objetivo, a partir da judicialização do conflito, ter o reconhecimento pelo Poder Judiciário da defesa da manutenção da posse coletiva, agrária e tradicional da comunidade. E, no plano da articulação e incidência política, atuar junto com a comunidade na campanha “Não Abra Mão da Sua Terra”, que traça uma série de ações que cumulam formação política por meio da educação popular nas comunidades e incidência no sistema de justiça e demais órgãos com atribuições funcionais no PAE Lago Grande, como INCRA e a Secretaria Municipal de Meio Ambiente (SEMMA), por exemplo. Além das entidades organizativas dos trabalhadores rurais, também integram a campanha o grupo de jovens articuladores Guardiões do Bem Viver, Tapajós de Fato (mídia popular e independente da região) e a FASE – Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional.

A ação possessória ajuizada foi a de interdito proibitório que, em síntese, busca garantir à/ao possuidora/or o direito a segurança da sua posse quando esta estiver ameaçada, como no caso de expulsão ou desapropriação. Historicamente, o interdito proibitório tem sido utilizado para criminalizar lideranças e fragilizar mobilizações sociais em ações de greves sindicais e em manifestações públicas, por exemplo.

Na prática da assessoria jurídica popular é recorrente o acionamento de outros instrumentos jurídicos, numa função reativa, para reverter decisões de criminalização e desmobilização como reflexo de ações de interdito proibitório. No entanto, a partir da análise coletiva da situação na comunidade de Jacarezinho, chegou-se à conclusão que, subvertendo a prática para qual o interdito proibitório é acionado, ele poderia ser utilizado para garantir a posse coletiva, agrária e tradicional de uma comunitária que vinha tendo a sua posse ameaçada.

Em recente sentença, o juízo reconheceu à comunitária o direito à posse coletiva, agrária e tradicional, além de determinar a abstenção de atos atentatórios contra sua posse pela outra parte. Reconheceu ainda, o Plano de Utilização das Comunidades do PAE da Gleba do Lago Grande, documento formulado pela entidade gestora – a FEAGLE –, em diálogo com as comunitárias. O reconhecimento pelo Poder Judiciário local de outras fontes de direitos, além das legais, foi um avanço político importante, que considerou a autonomia e a construção própria da comunidade na gestão, uso e definição das diretrizes do território coletivo.

Em paralelo, foram sendo concretizadas as várias ações de mobilização, comunicação, espaços formativos e discussões no âmbito da campanha “Não Abra Mão da Sua Terra”. A campanha visa, entre outros objetivos, realizar um diagnóstico dos principais conflitos e demandas possessórias do PAE Lago Grande, além de dialogar com as/os comunitárias/os sobre a importância de se defender o território, e de construir pontes com os atores do sistema de justiça e os orgãos com atribuições funcionais que dialoguem com as demandas elencadas pelas/os comunitárias/os. 

Reflexões sobre a luta popular e o sistema de justiça

Se por um lado, a estratégia jurídico-política não estava inteiramente definida desde o início, tendo passado por modificações após avaliações coletivas e sendo impactada também por momentos de maior aceleramento e/ou refreamento das lutas no território, foi a partir do diálogo constante, das atividades formativas nas comunidades e no planejamento das ações que a estratégia foi sendo mais bem definida.

Por outro lado, uma sentença favorável para uma comunitária que garante o direito a posse coletiva, agrária e tradicional em um contexto político de várias ameaças no território é um ganho político importante no cenário de lutas do território e dá um novo ânimo para a atual fase da campanha “Não Abra Mão Da Sua Terra”: a realização das audiências públicas no território.

A judicialização de questões agrárias e territoriais por vezes carrega ainda a lógica da individualização dos conflitos, o que é comum em casos agrários em que se opõem um fazendeiro contra um representante de uma família ou vários representantes de várias famílias. No entanto, esse caso demonstra que os conflitos podem ser coletivizados, o que é diferente de ter múltiplas partes. Judicializar demandas que, em uma primeira análise, podem parecer individuais, mas que, na verdade, refletem um contexto político e social do território significa repensar as perspectivas de atuação no sistema de justiça quando o conflito é concreto e urgente.

Coletivizar questões individuais e avançar na luta coletiva, por meio da educação popular, litigância estratégica e incidência política, é um dos direcionamentos em que a atuação da assessoria jurídica popular da Terra de Direitos tem buscado contribuir no PAE Lago Grande, em conjunto e em diálogo com comunitárias/os e movimentos sociais. Contra as várias ameaças ao território do Projeto de Assentamento Agroextrativista Lago Grande, a defesa ativa do território, a produzir lutas e resistências. 

 

*Luísa Câmara Rocha - Assessora jurídica popular da Terra de Direitos

**Pedro Martins - Assessor jurídico popular e coordenador do Programa Amazônia da Terra de Direitos

 

 

 

 

 

 



Ações: Conflitos Fundiários
Eixos: Terra, território e justiça espacial
Tags: PAE,Lago Grande,Posse coletiva,Direito a terra,Território,Santarém