O Brasil de hoje ainda é o país em que a PM assassinou o trabalhador rural Antônio Tavares
Passados vinte anos de um crime violento cometido por um policial em uma situação de repressão de manifestação legítima por direitos, espera-se, e é natural que seja assim, que os fatos tenham sido apurados, as responsabilidades identificadas e todas as providências adotadas, para que cenas similares não voltem a acontecer, para que manifestações públicas não sejam reprimidas com violência por agentes do Estado, para que as pessoas do campo tenham acesso à promessa constitucional de reforma agrária, para que os mais pobres sejam tratados com respeito pelas instituições do sistema de justiça.
Apesar dessa justa expectativa, no Brasil de 2022, a cada dia, somos surpreendidas com algo novo e assombroso. Com o arquivamento de 90% dos inquéritos sobre crimes cometidos por policiais militares (Pesquisa Violência e Cidadania - Fórum Brasileiro de Segurança Pública), a impunidade segue pujante e os índices de letalidade policial aumentam exponencialmente. Além da negligência em relação à investigação desses crimes, há hoje um fomento institucional e explícito à violência e à impunidade. Defender o direito à terra e ao território no Brasil é uma atividade cada vez mais arriscada e nosso país, um dos mais perigosos para ativistas em todo o mundo.
A luta por direitos é cada dia mais criminalizada pelo poder executivo federal e pelos incontáveis projetos de lei em trâmite no Congresso Nacional. A Reforma Agrária está paralisada desde 3 de janeiro de 2019, quando as superintendências regionais do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) receberam um memorando determinando a interrupção de todos os processos instaurados para compra e desapropriação de terras. O memorando também suspendeu a realização de vistorias em imóveis rurais, o que implica na impossibilidade de fiscalizar o cumprimento da função social da propriedade, primeiro passo no processo de desapropriação de imóveis rurais para fins de reforma agrária. De acordo com o Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) de 2021, a aquisição de terras para a reforma agrária teve corte de 94.6% em relação ao ano de 2000 e o monitoramento de Conflitos Agrários e Pacificação no Campo um corte de 82.3%, por exemplo.
O sistema de justiça continua operando de modo extremamente seletivo. De um lado, segue ineficaz na apuração da violência cometida contra os mais vulneráveis e contra aqueles que lutam por direitos. De outro, promove o encarceramento em massa de negros e pobres. Aos olhos do sistema de justiça, a vida das mulheres, das pessoas negras, e dos pobres continua valendo menos.
No Brasil de 2022 parecemos viver em um looping de terror. Dormimos assombrados com a impunidade do assassinato cometido pela PM contra Antônio Tavares Pereira e da violência contra centenas de Sem-Terra no interior do Paraná, e acordamos com as imagens da execução de Genivaldo de Jesus Santos pela polícia rodoviária federal no interior de Sergipe, além de relatos frequentes de vítimas assassinadas “por engano” ou “balas perdidas”.
O assassinato de Antônio Tavares ocorreu em 2 de maio de 2000, há mais de 20 anos, quando o governo do Paraná organizou uma operação de guerra para impedir que integrantes do MST chegassem ao centro da cidade de Curitiba. O objetivo da marcha era denunciar ao INCRA a violência que vinham sofrendo em ações de despejos e reivindicar direito à terra, alimentação, saúde e moradia. Os trabalhadores não conseguiram chegar à capital, foram barrados na BR 277 que dá acesso à cidade. Sofreram os mais variados tipos de violência e mais de 200 pessoas ficaram feridas. Nem mesmo a presença de crianças freou a ação violenta da polícia. O autor dos disparos que matou Antônio Tavares não foi responsabilizado, o uso abusivo da força não foi sequer investigado. As pessoas voltaram para casa e não receberam qualquer apoio do Estado. Antônio Tavares não retornou, faleceu no mesmo dia 2 de maio. Muitas das pessoas que eram acampadas na época seguem acampadas até hoje, aguardando que o braço não-armado do Estado os alcance e seja feita a Reforma Agrária.
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Mais de 22 anos depois, o Estado brasileiro é colocado no banco dos réus e vai a julgamento perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos por conta desses fatos. É difícil justificar porque continuamos a falar desse episódio tanto tempo depois. Então, no mesmo mês em que ocorreu a audiência sobre o caso em São José da Costa Rica, Genivaldo Santos foi assassinado por policiais rodoviários federais, também à luz do dia e perante várias pessoas. Duas décadas separam esses dois episódios, mas, do que se sabe, a execução de Genivaldo segue a mesma trilha de impunidade do crime que tirou a vida de Antônio.
As versões oficiais mentirosas, a suposta (e impossível) resistência das vítimas à ação policial, as teses estapafúrdias de confronto utilizadas para “justificar” a execução de opositores políticos na ditadura civil-militar são novamente invocadas. Imputa-se às vítimas a pecha de perigosos, inimigos públicos, desordeiros para, assim, “justificar” a ação violenta do Estado. A mesma estratégia é usada contra quem luta pelos direitos, pelo acesso à terra, pela regularização de seus territórios, pelo direito de discordar: criminalização, estigmatização e violência. Quando não sobram mentiras, as autoridades afirmam que a pessoa morreu de um “mal súbito”, como fizeram em relação a Genivaldo.
Mesmo quando a pessoa tem sua festa de aniversário invadida e é executada por motivação flagrantemente política, a gramática do “confronto” volta à tona, distorcendo os fatos, “justificando” a violência, promovendo a impunidade, deixando-nos presos a mentiras e a uma história social de violência e desigualdade.
Para sair desse looping, precisamos desvelar como operam as engrenagens da impunidade que alimenta a violência policial e cujas vítimas são bem definidas e conhecidas: as pessoas negras periféricas, defensores da floresta, aqueles que reivindicam direitos e que, por isso, são considerados e rotulados como inimigos por alguns agentes do Estado. Vale dizer que a conivência e associação de parte das Polícias e das Forças Armadas às ameaças golpistas do presidente da República, e ao seu fomento à violência, reforçam a importância de promover uma reforma institucional das forças de segurança no Brasil.
Além disso, precisamos romper com as estratégias institucionais de torção da história e de apagamento da memória, lembrando e honrando nossos mortos, repisando a frase que inspira a atuação do MST: “Por nossos mortos nenhum minuto de silêncio, mas uma vida inteira de luta”.
Para sair desse looping, em que as notícias parecem se repetir a cada dia, é preciso parar essa máquina de moer gente em que se converteu o Estado brasileiro. E saber que , sem lidar com o passado de violência (que hoje é tão presente), não é possível construir amanhãs diferentes.
* Camila Gomes – assessora jurídica da Terra de Direitos
** Josiane Grossklaus - advogada popular e integrante do Setor de Direitos Humanos do MST/PR
Ações: Defensores e Defensoras de Direitos Humanos
Casos Emblemáticos: Antonio Tavares
Eixos: Democratização da justica e garantia dos direitos humanos
Tags: Antônio Tavares,Corte Interamericana,MST,Justiça Militar